SEF: é preciso mudar tudo

(José Soeiro, in Expresso, 18/12/2020)

José Soeiro

Já quase tudo foi dito sobre o bárbaro assassinato de Ihor Homenyuk nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto de Lisboa, às mãos das autoridades portuguesas. Além da punição exemplar dos torturadores, das condolências e da indemnização à família, é preciso questionar profundamente o modelo político de acolhimento que temos e a estrutura institucional que permitiu que este crime ocorresse. Deixo quatro notas para esse debate urgente.

1.

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Parece que se está a chegar finalmente a um consenso sobre o absurdo que é tratar a relação entre o Estado e as pessoas migrantes como se fosse uma questão de polícia, em que pessoas que não cometerem qualquer crime podem ser detidas, privadas de liberdade sem qualquer garantia de apoio e proteção jurídica, e submetidas a todo o tipo de arbitrariedades, humilhações e agressões. Há anos que é assim e não faltaram denúncias das associações de direitos humanos e da Provedora de Justiça sobre o tema. Não basta, pois, encerrar estes “centros de instalação temporária” nos aeroportos, nem basta garantir – coisa que aliás devia ter sido assegurada desde sempre – o acesso imediato a advogados nos aeroportos. Pequenas adaptações humanizadoras do modelo policial não chegam. É preciso acabar definitivamente com a ideia de que a relação entre os imigrantes e o Estado português é estabelecida através de uma polícia (tratando as pessoas, à partida, como criminosos em potência) e não de uma autoridade administrativa.

2.

O caso de Homenyuk não é um caso isolado, embora nem todos os abusos e maltratos nos Centros de Instalação Temporária tenham tido consequências tão trágicas. Além disso, os disfuncionamentos do SEF não são apenas nestes centros. Milhares de imigrantes que trabalham em Portugal e fazem os seus descontos para a Segurança Social ficam anos à espera de ver os seus documentos emitidos. Ao longo dos anos privilegiou-se o reforço do corpo policial, em lugar de se ter apostado em reforçar o pessoal administrativo. Esta decisão fez com que hoje em dia seja quase impossível obter uma marcação, o que deixa milhares de pessoas sem acesso aos documentos mais básicos. Ao SEF faltam meios, mas abunda, também na componente administrativa, uma incompreensível arbitrariedade e injustiça.

Portugal deve ter uma polícia para investigar as redes de tráfico e essa é uma boa missão para o SEF, em relação à qual não falta o que fazer. Basta pensar, por exemplo, na dimensão do trabalho forçado na agricultura nos campos do olival intensivo do Alentejo, ou nas vindimas, a norte. Essas missões de investigação e combate às redes de tráfico e exploração, para as quais não basta a atuação da Autoridade para as Condições de Trabalho, precisam de mais meios e de um corpo profissional com a experiência que equipas do SEF acumularam. Por outro lado, existe uma dimensão policial do controlo da fronteira que o Estado assegura. Mas o acolhimento de migrantes e de requerentes de asilo não é competência para uma polícia. Como não o é a renovação dos vistos ou autorizações de residências, que têm de ser feitas nas mesmas lojas dos cidadãos ou conservatórias onde qualquer cidadão português renova o seu cartão de cidadão. Lidar com uma polícia para assuntos administrativos é um absurdo que tem de ser definitivamente eliminado. Esperemos que seja desta.

3.

Infelizmente, a discriminação, a xenofobia e a violência racista não são casos isolados nas polícias portuguesas. A Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância tem produzido relatórios em que acusa explicitamente a hierarquia da PSP e a Inspeção-geral da Administração Interna de serem tolerantes ao racismo, apelando mesmo a que estes organismos parem de “relativizar a violência grave” contra as pessoas racializadas e migrantes, bem como a “pôr termo ao sentimento de impunidade que prevalece entre os seus agentes”. Este organismo do Conselho da Europa tem insistindo que o Estado português deveria por em marcha uma política de tolerância zero relativamente ao racismo nos seus serviços. O SEF tem sido também objeto de várias denúncias deste tipo de comportamentos de violência racista, encontrando-se alguns sob investigação pelo Ministério Público. A morte de Homenyuk não foi, infelizmente, um mero acidente de percurso em instituições que seriam exemplares.

Também por isso, a proposta de Magina da Silva, no encontro com o Presidente da República, de fusão do SEF e da PSP numa grande polícia nacional é duplamente disparatada. Em primeiro lugar porque não cabe ao chefe da PSP anunciar decisões políticas desse tipo, por mais que sonhe em liderar uma super-polícia com um corpo militarizado. Em segundo lugar, porque isso tenderia a reforçar o próprio modelo policial na relação com os estrangeiros, o que é um erro absoluto. Não é a primeira vez, aliás, que Magina da Silva brinda o país com um discurso irresponsável de pistoleiro, como quando defendeu a compra de carros blindados como os que foram usados na Guerra do Iraque para intervir nos “bairros de risco”. É exatamente deste tipo de discursos que precisamos de nos libertar.

4.

A reação das instituições ao assassinato de Ihor Homenyuk esteve muito aquém do exigível. O Presidente da República, conhecido pela abundância dos seus telefonemas e notas de felicitação e condolências, utilizou a esfarrapada desculpa de não querer “interferir na investigação” para justificar não ter tido uma palavra para a família do cidadão ucraniano assassinado por agentes do estado português. A direção do SEF esteve meses sem assumir que havia responsabilidades, parecendo mais empenhada em encobrir o sucedido do que em ser motor de uma transformação profunda na instituição. E o Ministro da Administração Interna – que, reconheça-se, abriu de imediato um inquérito e processos disciplinares aos envolvidos – não contactou a família, resistiu meses a pagar a indemnização e só por arrasto e sob altíssima pressão política e mediática substituiu a direção do SEF (cuja saída foi, no entanto, apresentada como “voluntária”) e anunciou uma reestruturação cujos contornos são ainda desconhecidos.

Este caso trágico, contudo, tem de ser a oportunidade para mudar tudo no SEF. O modelo de relacionamento do Estado com as pessoas migrantes e refugiadas não precisa de uns remendos ou alterações cosméticas. Tem de ser integralmente substituído. E haverá pouco quem acredite que Eduardo Cabrita tem ainda condições para conduzir tal empreendimento.


23 pensamentos sobre “SEF: é preciso mudar tudo

  1. Os serviços de estrangeiros e os tribunais nos países esquerdistas é que são buéda fofos com os estrangeiros.

    https://youtu.be/YaZe6Z8pfko

    Reportagem sobre cidadão britânico com problemas mentais executado na China por tráfico de droga ao fim de um julgamento que durou MEIA HORA (!!!!!).

    Nota, escolhi esta de propósito, porque é um cidadão britânico de origem indiana.

    Tem portanto o grau de melamina suficiente para despertar a ternura “racializada” dos esquerdistas.

  2. De facto não consigo perceber o que esta gente quer da justiça e forças da autoridade!

    Se alguém coloca o tema da pena de morte na ordem do dia, relativamente à qual afirmo desde já que sou contra, fala-se logo em retrocesso civilizacional e barbárie. Se se defende a prisão perpétua, existente em vários países civilizados, idem idem aspas aspas. Aumento das penas, que horror…

    Assim sendo, só posso chegar à conclusão que por estes imbecis não havia penas, nem prisão, nem autoridade – todos os crimes são justificáveis – então se forem cometidos por gente das ex-colónias, eternos explorados, acabam por ser justiça poética – e as vítimas olha, azar, no fundo até merecem.

    E crimes de guerra, também não se punem? E terrorismo puro e duro? Lembro-me perfeitamente da esquerda bem pensante carregar nos “mas” aquando do 11 de setembro, do Charlie Hebdo, de Nice…

    São todos partidários do nacional-porreirismo e das reconciliações instantâneas (por vezes penso que por estes energúmenos podiam 2 povos estar em guerra anos a fio, depois chegava a paz, e logo a seguir era só beijos e abraços entre os anteriores inimigos como se nada se tivesse passado, ofendendo assim a memória de todos os mortos/estropiados no conflito). As vítimas só têm de comer e calar, provavelmente até são elas as culpadas.

    Portugal é de facto um país muito fofinho.

    • Não sabe porque não quer, e acha que uma sociedade com 0.7% de pessoas na cadeia, muitas vezes a trabalho forçado, faz sentido. Que a primeira e a única resposta deve ser a mais violenta. Que não deve haver fiscalização sobre a actuação de quem tem o monopólio da força. Que é mau para todos ter essa quantidade de pessoas practicamente não terem possibilidade de reabilitação por serem inempregáveis.
      É só querer ouvir para descobrir.

    • Caro marosca.

      O que mais dá náusea é a hipocrisia.

      A maior parte dos que gritam defund the police defendem ditaduras policiais com pena de morte, prisão perpétua, trabalhos forçados etc.

      É só ver a ternura com que falam de um Che, que fuzilou uma data de gente no parédon e até homossexuais mandou para campos de concentração.

      Querem proibir o Chega por supostamente ser ditatorial mas celebram abertamente a revolução de Outubro, que na Rússia derrubou violentamente uma democracia e instituiu a ditadura soviética que causou milhões de mortos.

      A policia soviética era muito fofinha, a Cheka, o NKVD o OGPU e a KGB tinham mesmo reputação de extrema fofice. Principalmente no que toca a execuções em massa e campos de concentração com milhões de prisioneiros.

      A fofice chegou ao ponto de vários chefes da policia soviética terem sido executados pela própria polícia que comandavam.

      Beria, Yezhov, Yagoda, nada menos que TRÊS chefes da polícia soviética assassinados pelo sistema policial/judicial esquerdo-fofinho.

      Mas não é ser antidemocrático defender estes regimes…

      • E na mesma penada acabam por admitir a lei da selva (se as forças da autoridade não podem recorrer ao uso da força para fazer cumprir a lei, devidamente mandatadas pelo poder democrático, é cada um por si e salve-se quem puder), a mesma lei da selva que tanto abominam na economia…

        Tudo isto assusta-me cada vez mais porque à minha volta, e moro numa zona longe de poder ser considerada de classe média/classe média alta, só escuto gente a dizer que vai votar no chega, mesmo pessoas que habitualmente votam pcp ou que não votam sequer.

        Muito cuidado!

      • Não há hipocrisia nenhuma em defender um sistema que tem as três, e inventar que os outros defendem regimes por inteiro e não partes. Nenhuma.

          • ?????

            Quem é que defendeu o Beria ?

            Eu acho que ele merecia a pena de morte.

            O que estou a dizer é que a policia dos regimes socialistas era um milhão de vezes mais brutal que a policia das democracias ocidentais.

            Mas os defensores desses regimes brutais estão sempre a queixar-se da brutalidade das muito mais softs policias das democracias ocidentais.

            Uma vez tive uma discussão na rua com um esquerdista que me garantia que só um fascista pode ser a favor da pena de morte.

            O gajo que mo garantia estava vestido com uma camisola do Che Guevara.

            Perguntei-lhe, a rir, para que tinha ele uma camisola do Che vestida.

            Não percebeu a ironia da pergunta e respondeu orgulhosamente que considerava o Che como um exemplo que todos os paises deviam seguir.

            O Che, que comandou um tribunal que condenou centenas de pessoas à morte…

            Isto é não só o cumulo da estupidez como é andarem a gozar com as pessoas.

    • Como gosto muito de aprender, queira por favor Vossa Excelência explicar-me como uma força de autoridade pode, por exemplo, executar uma decisão de um tribunal se do outro lado não houver a mínima vontade de a acatar. Será fascismo admitir o recurso à força, desde que com a devida proporcionalidade?

      Será fascismo não concordar que se destrate de forma reiterada as forças da autoridade, com o beneplácito dos oliveiras, cãncios, tavares deste mundo?

      Será fascismo vislumbrar um futuro sem polícia mas com crime e achar que esse futuro não me inspira, mas antes me assusta?

      Qual a solução? Despedir todos os polícias e substituí-los por andróides que andam pelas ruas e pelos aeroportos a recitar frases de ordem do género “roubem, merecem-no”, “o racismo é pior que violar”, “desculpem termos construído prisões quando vos devíamos ter dados palmadinhas nas costas”?

      Então sim, sou fascista.

      Ide-vos todos foder. Apanhem covid até à boca e morram.

      • Será democracia haver um conjunto de pessoas legitimadas pelo estado para aplicarem violência a seu bel-prazer com rara fiscalização? O Movimento Zero, a que estão associados muitos agentes, acha que sim.
        É isso que está em questão. Badamerda para o respeitinho, isso era o argumento da PIDE. Preferia que agissem em conformidade e fossem recompensados pelo risco com salário e não pela impunidade.

  3. É preciso é mudar a cabeça a pessoas que vivem da hipócrisia politica e vivem destes expedientes para arrecadar mais uns votos que a vida está má para o lado do B.E. vivem da polémica ,tudo está mal coitado do emigrante que morreu ,que não sabia que havia gente para o defender como o do post ,deixem terminar o inquérito e então os culpados que sejam julgados ,agora querer mudar tudo só porque sim ,NÃO , deixemo-nos de hipócrisias em todas as policias do mundo existem casos semelhantes Portugal não será um país de virgens é um país como os outros.

    • Exato, aborrece-me profundamente (ao ponto de perder a compostura – peço desde já imensas desculpas pelos excessos de linguagem e desejos pouco-natalícios 🙁 ) não podermos questionar minimamente a brandura das nossas leis e sistema penal sem que sejamos logo apelidados de fascistas!

      Faz-me muita confusão que Portugal passe a vida a meter-se em bicos de pés para ser o país mais permissivo e fofinho do mundo no que diz respeito a estas temáticas, quando temos várias democracias – Canadá, Austrália, etc. – com políticas muito mais rigorosas e o clamor não é de todo generalizado.

      Crimes de guerra, crimes de alta-traição, não podemos considerar aumentos de penas para estas pessoas que atacam violentamente uma comunidade? Se países como Angola podem ser severos nas entradas, e muito bem, não podemos ter o mesmo cuidado? Até quando o passado colonial justifica tudo? Mais dia menos dia estão como o Brasil, independente há 200 anos e ainda a desculpar-se com a herança colonial para justificar os seus fracassos.

      Enfim…

    • Nota. Tu, entre outros eventualmente, tens uns problemas com os acentos, pázinho, para te ler correctamente faz de conta que eles estão a saltitar de letra em letra e que, no fim, os que sobrarem caem ao chão… Atina, pá!

    • Nota. Toma lá, ó carente de hipotálamo e divide a metade com o lindinho do Aspirina B!

      Pomba Branca
      22 DE DEZEMBRO DE 2020 ÀS 12:29

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      Cabrita e a tralha do Costismo continental tal como o gangue do Carlos César e do filho, nos Açores, vêem assustados a luz ao fundo do túnel, como diz o outro: a luz do OLHO DA RUA!

    • Vivem da polémica… falando em Março, altura em que ninguém ligou nenhuma? E só se ligou quando a direita acordou porque o capital meteu a coisa nos jornais?
      Quem é que anda à caça de vantagem política?

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