(António Guerreiro, in Público, 18/12/2020)

A palavra “empatia” tornou-se recentemente de uso corrente nos media e, por essa via, entrou na linguagem quotidiana, à qual não pertencia. Hoje, fala-se de empatia por tudo e por nada, reclama-se o dever de empatia, enaltece-se o sentimento-virtude da empatia e especula-se com ela na bolsa de valores dos afectos da política.
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Não é que a política não tenho sido sempre um meio essencialmente passional e permeável a grandes arrebatamentos, mas as democracias modernas seguem, por definição, uma política racional e comunicacional que se deve aplicar em dominar comportamentos mais emocionais. Uma política sem a expressão dos afectos é da ordem das ideologias totalitárias; mas uma política dos afectos colabora activamente na lógica da despolitização. Sobre as armadilhas, incoerências e incompatibilidades de uma política que a si mesma se designa como “dos afectos”, temos tido, em Portugal, ao mais alto nível, exemplos eloquentes.
O uso imoderado que se faz hoje da palavra “empatia” conseguiu que se tenha substituído, nalguns contextos, outras palavras que pertencem à mesma família semântica e etimológica. De um político ou de uma outra figura pública já não se diz que são simpáticos, se acaso o justificam, mas que têm empatia (evita-se a palavra “empático”, por enquanto não soa bem). Muitas vezes, a palavra “empatia”, inflacionada, coloniza e absorve a “compaixão”, avança no lugar do “consentimento” e até se substitui à “paciência”. Apetece gritar: “Abaixo a empatia!”.
Antes de passar com armas e bagagem para a linguagem corrente, a empatia estava quase limitada a um uso conceptual em dois campos: o da psicologia e o da estética. No filme Blade Runner, de Ridley Scott, um caçador de andróides, para distinguir um ser humano de um organismo cibernético usa um teste para detectar quem é capaz de experimentar o sentimento de empatia: quem o experimenta é humano. Mas se quisermos remontar às origens de uma teoria da empatia, devemos pensar na célebre catarse ou purificação das paixões de que falou Aristóteles na sua Poética, a propósito das tragédias do teatro grego, que deviam suscitar no espectador um forte sentimento de piedade e de temor. É fácil explicar a grande difusão que a empatia teve num âmbito estético: ela tem a ver com o sentir, e estética, no seu significado primeiro, etimológico, é a disciplina da aisthesis, da sensação. E é uma sensação que está carregada de um conteúdo emocional, uma afecção onde ressoam imediatamente significados de orem psíquica. Com um sentido mais técnico, a “estética da empatia” foi introduzida por alguns historiadores de arte alemães, na viragem do século XIX para o século XX. Neste caso, a “empatia” é um conceito muito preciso, de tal modo que se prefere muitas vezes utilizar, por uma questão de rigor conceptual, a palavra alemã: Einfühlung. Por exemplo, o filósofo Benedetto Croce, apesar de italiano, escreveu um ensaio a que chamou L’estetica della Einfühlung. E os ingleses começaram por traduzir a Einfühlung por esthetic simpathy, e só mais tarde introduziram a empathy.
Falar de empatia significa inevitavelmente recorrer a termos relativos ao âmbito de actos psicológicos subjectivos, tais como a projecção, a transferência, a fusão. Experimentar a empatia significa a identificação perfeita, fazer com que duas coisas se tornem uma só coisa. É este sentido, aliás, que os italianos preservam rigorosamente na palavra immedesimazione, para dizer, num vocabulário mais comum, a erudita “empatia”.
A actual condição dramática da pandemia veio fazer com que a palavra “empatia” se tornasse ainda mais um lugar-comum, um estereótipo repetido até à exaustão. No domínio político, vamos todos soçobrar sob o peso de uma ditadura “empática” que já nem precisa de um objecto: é um puro complexo expressivo que tanto pode ser comovente como grotesco. Há dias, a ministra da Saúde, ao proferir um discurso público de elogio ao Instituto Ricardo Jorge, teve um momento em que começou a chorar. Foi uma irrupção desse sentimento-virtude que é a “empatia”, como logo se disse na linguagem da afectometria vigente, ou foi, pura e simplesmente, uma manifestação de cansaço extremo, de um estado próximo do burn-out, bastante plausível para quem tem estado sujeito a uma mobilização sem tréguas?
Livro de recitações
“Não sei”
Manuel Sobrinho Simões, em entrevista ao PÚBLICO, 14/12/2010
Dezanove vezes “não sei”, repetiu o consagrado patologista nas respostas a uma entrevista feita por Andrea Cunha Freitas. Obviamente, sempre que disse “não sei” Manuel Sobrinho Simões estava a responder a perguntas que não incidiam sobre aquilo que ele, enquanto médico e cientista, é suposto saber (seja-me permitido usar este anglicismo). Eram perguntas que implicavam dons oraculares ou, pelo menos, um grande teor de especulação sobre a situação pandémica que estamos a viver e os seus efeitos políticos e psico-sociais. O que ele não sabia, ainda ninguém sabe. Mas uma entrevista a uma pessoa de ciência coloca o entrevistado inevitavelmente na posição a que a psicanálise lacaniana, para explicar o transfert, chama “sujeito-suposto-saber”. Não ceder a esta regra, declinar dezanove vezes o estatuto que lhe está a ser concedido, implica perseverança e, sobretudo, a ética do cientista. O “não sei”, neste caso, é um momento de saber.
Nota. Epá, ó d’A Estátua, vi ontem um senhor nas TV’s com um discurso de edtadista a fazer voz grossa ao António Costa e ao PR acusando-os de serem demasiadamente cobardolas para reconhecerem os erros próprios na cena do SEF. E quw, não o fazendo, nos distraíram com o opróbrio da própria instituição envergonhando assim o país… Tu queres ver que o PS agora vai ser obrigado a atinar, qu’ainda vem aí borrasca da grossa? Estava sem óculos, não vi bem, quem era o tipo? Oposição interna no PS, finalmente?, um tipo da Iniciativa Liberal, um académico, uma nova esperança para o PSD?