Sobre gelo fino

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 31/10/2020)

Miguel Sousa Tavares

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1 O que torna os tempos actuais verdadeiramente terríveis para tomar decisões — sejam decisões políticas, económicas, empresariais ou até pessoais — é que ninguém conhece ao certo um factor determinante em qualquer tomada de decisão: o timing adequado para cada medida, quando deverá ser tomada e por quanto tempo. Em relação à tão esperada vacina, por exemplo, dizem os optimistas que antes da próxima Primavera não haverá uma vacina eficaz e segura, pronta a ser distribuída à escala global; dizem os realistas que isso não acontecerá antes do final do ano; e dizem os pessimistas que nem mesmo a existência de uma vacina significará o fim do problema. E sem saber quando e como é que o problema terá fim, não é possível escolher medidas para o combater, desconhecendo-se a necessidade da sua duração e as suas consequências. É por isso que todos os governos parecem paralisados ou, na melhor das hipóteses, navegando à vista, sem bússola nem rumo fixado.

O dilema mais óbvio é o da escolha entre a economia e a saúde das pessoas. Diz-se que uma vida humana não tem preço, mas também se diz que matar a economia é uma outra forma de matar pessoas — e ambas as coisas são afirmações incontestáveis. Só que isso não facilita qualquer opção. O economista francês Patrick Artus resolveu fazer um exercício politicamente incorrecto, que foi o de calcular o custo de cada vida humana salva pela decisão de confinamento geral tomada pelo Governo de Emmanuel Macron na Primavera passada (e num momento em que a França, se não acontecer um milagre até lá, se prepara para regressar ao confinamento na próxima quarta-feira). Partindo dos dados dos epidemiologistas que calcularam que cada um dos dois meses de confinamento em França evitou 20.000 mortes, e calculando, por seu lado, que um mês com a economia parada custou à França 5% do PIB e 2,5% de aumento da taxa de desemprego a longo prazo, ele chegou a um número representativo do custo de uma vida humana salva pelo confinamento. Um número arrasador: seis milhões de euros! Não sei se as suas contas estão certas ou erradas, mas são contas semelhantes a estas que os governantes de toda a Europa têm em cima da mesa, na hora de decidir o que fazer.

Porém, ouvindo e lendo as opiniões sobre o assunto (e os comentários online a essas opiniões), parece que os portugueses, em geral, estão carregados de certezas absolutas, mesmo que de sinal oposto.

Todos acreditam saber mais do que os outros sobre a covid, as medidas que já deveriam ter sido tomadas e não foram, ou aquelas que foram tomadas e não deveriam ter sido, porque tudo isto, afinal, não passa de um embuste, as máscaras não servem para nada e o que o Governo quer é “roubar-nos o Natal” (não por acaso, Trump diz o mesmo de Biden), como se algum Governo ganhasse popularidade estragando o Natal aos governados.

Uns indignam-se com a Fórmula 1 na Mexilhoeira Grande, outros acham-na essencial para relançar o turismo no Algarve. Mas em duas coisas, pelo menos, todos parecem concordar: estão todos fartos da covid — o que é uma boa pista para encontrar uma solução; e todos já teriam despedido a ministra Marta Temido, incluindo um colunista que, alicerçado nos seus invocados 120.000 seguidores no Facebook, o faz em linguagem de carroceiro, que explica, afinal, porque é importante a frequência da tal disciplina liceal de Cidadania. E, no fim, não tendo mais desabafos nem verdades evidentes para descarregar nas redes sociais, vão às dezenas de milhares fazer fila para votar nas eleições do Benfica ou ver as ondas gigantes do canhão da Nazaré. Horas a fio, em dias de semana e em horário de trabalho: a vida como sempre, o antigo normal.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

2 De facto, já era madrugada aqui e regressava eu do meu fuso horário das eleições americanas, como sempre carregado de espanto, angústia e pavor, quando faço um zapping final pelas nossas televisões. Nada menos do que seis canais — seis! — estavam em directo do Estádio da Luz, transmitindo o desfecho das eleições do Sport Lisboa e Benfica. No nosso late night news era o único, rigorosamente o único assunto que ocupava as televisões: nem covid, nem Orçamento do Estado, nem eleições americanas, nem a tensão Turquia-França, nada mais — só as eleições no Sport Lisboa e Benfica. Subiu ao palco dos seis canais o candidato derrotado com 36% dos votos, que falou como um vencedor e como falaria um futuro primeiro-ministro da nação: agradeceu ao pai, à mulher e aos filhos, e, como político sabido, respondeu à pergunta sobre se voltaria a recandidatar-se dizendo que prometera que não à família mas que nunca diria que não aos benfiquistas. Depois, as televisões foram em directo até à ‘sede de campanha’ do terceiro candidato: um fulano que viveu nos últimos anos a vomitar ódio aos rivais nos programas de futebol gritado das televisões, julgando com isso angariar popularidade entre os benfiquistas, mas recolhendo, afinal, uns humilhantes 1,6% dos votos. Compreensivelmente, o candidato bem-falante não estava à vista e regressaram ao Estádio da Luz, onde o candidato vencedor se preparava para tomar posse para o que, avisadamente, prometeu ser o seu último mandato, no final do qual terá cumprido 22 à frente do S.L.B. — ainda longe dos 42 de Pinto da Costa à frente do F.C.P. E cada um deles recandidatando-se ao arrepio das melhores teorias políticas, não por causa dos seus êxitos, mas justamente por causa dos seus fracassos: o primeiro, para conseguir que o clube deixe de ser uma anedota desportiva, em termos europeus; o segundo para tirar o clube da falência a que a sua gestão o levou. Mas, nessa altura da noite, já tinha visto o suficiente e também não fiquei para ouvir o discurso de vitória do candidato apoiado pelo primeiro-ministro, pelo presidente da Câmara de Lisboa e pelo líder parlamentar do CDS.

3 Depois do atentado terrorista que causou vários mortos na redacção do jornal francês “Charlie Hebdo”, foi moda de bom tom todos se declararem “Je suis Charlie”. Fizeram-se T-shirts, toalhas de praia e cartazes, organizaram-se manifestações, proclamações e abaixo-assinados. Nunca me apeteceu aderir: je ne suis pas Charlie. Não que tenha a menor complacência com o terrorismo, seja qual for a sua motivação, a sua justificação ou a sua desculpa. Uma coisa é a guerrilha, a luta armada, a resistência, certa ou errada, contra um inimigo armado, outra coisa é o terrorismo cobarde contra inocentes desarmados. Mas o que o “Charlie Hebdo” faz hoje não é jornalismo nem é um exercício de liberdade de imprensa: é pura provocação gratuita e ofensa às crenças religiosas alheias: é terrorismo jornalístico. Ainda a semana passada trazia uma caricatura do primeiro-ministro turco, Erdogan, sentado numa retrete a defecar. Ora, Erdogan, é um dos tiranos europeus da actualidade, um homem decerto sinistro, que se toma pelo novo sultão otomano e que tem planos perigosos para toda a região do Oriente próximo. Fruto — mais um — da ausência de uma visão de política externa de Donald Trump, ele vem conquistando espaço e influência na região, passo a passo e com intenções que são uma ameaça à segurança da Europa e dos seus vizinhos, e a que só a França tem tido a coragem de se opor. Certamente que ele merece ser atacado e confrontado, mas não como o “Charlie Hebdo” o fez. E, pior ainda: acrescentando à caricatura uma referência ordinária ao Profeta — o que é uma obsessão do jornal.

Ora, atacar o Islão desta forma é ofender gratuitamente centenas de milhões de fiéis seguidores do islamismo, cuja fé a França laica respeita, por imperativo constitucional. Mas não apenas isso: o Islão representa também uma civilização e uma cultura que fazem parte da nossa história de povos do sul e que foi absolutamente extraordinária. Os meninos do “Charlie Hebdo”, que brincam aos jornalistas, não sabem o que fazem nem do que falam: deviam ir visitar o Alhambra, em Granada, para começarem a perceber a imbecilidade das suas caricaturas.

Isto posto, resta dizer que Emmanuel Macron tem toda a razão quando diz que a França está sob ataque aos seus valores republicanos fundamentais. Se alguns, infelizmente, usam o valor inalienável da liberdade de expressão para ofender a fé e a cultura de outros, a solução não é abolir a liberdade de expressão. E se os outros, sentindo-se ofendidos, não entendem esses valores e julgam que a resposta se dá degolando pessoas ou colocando bombas para matar inocentes, se são eles próprios que transformaram a ideia luminosa do Islão na ideia sinistra do regresso à barbárie e às trevas e se são eles que escolheram fazer do “Alcorão” um manual de assassínios, a França tem o direito e o dever de se defender por todos os meios — todos — desta gente que não merece viver nas nossas sociedades. E todos nós temos o dever de ser solidários com a França.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


9 pensamentos sobre “Sobre gelo fino

  1. ?????????Charada????????? O Covid vem dOnde:
    dos animais,
    da internet,
    de outro planeta ou aliens,
    De laboratórios de bioquímica ou
    de lado nenhum, não existe, e é uma conspiração que nunca mais acaba.
    Adivinhem, :P:D <<<<<<>>>>>>>

  2. “Matai-os onde quer que os encontreis. E expulsai-os de onde vos expulsarem. O erro é pior que a matança… Combatei-os até que não haja mais idolatria e que prevaleça a religião de Deus “
    (Surata 2.190, 191 e 193).

    O problema de ofensas e religiões é que as religiões também ofendem.

    A Bíblia e o Alcorão estão cheio de incitamentos ao terrorismo.

    Eu posso sentir-me um bocadinho ofendido com uma religião que manda matar infiéis. E não brinquemos, isso está nos livros de todas as religiões monoteistas.

    Para proibir o Charlie de fazer humor também temos de proibir esses livros que são muito mais gravosos que umas piadas.

    A escolha é simples. Ou relativizamos e aprendemos a viver com umas caricaturas e com os livros da religião ou vivemos na idade média.

  3. A questão da bola ocupar todos os espaços televisivos é das maiores faltas de respeito pelas outras pessoas e até pela inteligência.

    O telejornal não deve ser uma sala de chuto dos viciados naquela porcaria.

  4. Do texto de Miguel Sousa Tavares:
    Vou só me referir à parte desportiva que ele invoca. É a primeira vez que as televisões dedicam várias horas às eleições de Benfica e ao Benfica? Não fez o mesmo com Porto, Sporting e outros? Também acho demasiado. Há questões mais importantes no País. Mas não vejo o Miguel a censurar os Big Brother da TVI. Que gastam horas e horas com este programa e quando vai uma figura do Governo ou de outra instituição a uma entrevista o tempo é limitado. Fazem as perguntas e quase que não deixam responder. Sabe-se que o futebol é para os canais de televisão o abono de família.
    Depois alude no último parágrafo sobre o futebol: Mas, nessa altura da noite, já tinha visto o suficiente e também não fiquei para ouvir o discurso de vitória do candidato apoiado pelo primeiro-ministro, pelo presidente da Câmara de Lisboa e pelo líder parlamentar do CDS. E que mal tem Filipe Vieira ser apoiado pelos intervenientes. Acaso não pode?
    Se olhasse para o que se passa no seu clube talvez fizesse melhor. Porque se António Costa fosse um benfiquista a sério já tinha comunicado à CMVM ou ao organismo que compete fiscalizar o comportamento das empresas para exigir ao F. C. Porto a sua insolvência por ser uma empresa que deve mais que o seu valor.
    E quando uma pessoa é imparcial não olha há cor do clube. Ou o Miguel acha que os defeitos dos outros nos seus são virtudes!?
    Termino dizendo: o futebol é paixão e não razão. E, Miguel Sousa Tavares tem carradas de paixão e zero de razão.

    • Caro Pacheco.

      Graças a deus os noticiários ainda não dedicam metade do tempo aos concursos, como fazem com a porcaria da bola.

      A menos que sejam crimes de faca e alguidar, despacham as noticias a correr, para poderem começar a falar da bosta da bola.

      Então o tempo parece que pára.

      Enquanto crises e tendências mundiais formada dadas a despachar quando chega a bosta da bola os jornalistas ficam mais à vontade, começam a falar mais devagar e a analisar calmamente todos os pormenores – afinal tempo de telejornal não lhe falta. Porque cortaram nas verdadeiras noticias.

      Começa então uma fina, calma e demorada análise de tricas de balneário, de cobertura de treinos, de entrevistas a ex-jogadores reformados de clubes da terceira divisão, pormenores sobre intrigas e detalhes administrativos.

      Last but not least milhares de comunicações pré-jogo ao pais de treinadores que nos informam da espantosa novidade que gostavam de ganhar o jogo!!!!

      Seguidos logo de milhares de comunicações pós-jogo da não menos espantosa novidade de os que ganharam gostaram de ganhar e que os que perderam gostariam de em vez disso terem sido eles a ganhar em vez dos outros que ganharam mesmo!!!

      Ah! E não esqueçamos as gloriosas chegadas e partidas de jogadores ao aeroportos e a passagem de autocarros da equipa, tudo filmado demoradamente ao pormenor, para o que até se interrompem entrevistas a politicos.

      Ficamos ali a ver uns marmanjos a passar com as malas ou um autocarro no pára-arranca do trânsito, por vezes durante dezenas de minutos como se fosse a coisa mais importante do mundo.

      Que o vosso mundo da bola consista essencialmente em encher chouriços para fanáticos embevecidos perante a demorada análise dos vários ângulos nem que seja um peidinho de um jogador suplente que passou o jogo no banco é uma opção vossa de como gostam de desperdiçar o tempo.

      Que imponham isso ao país, contribuindo para a estupidificarão geral da população é que já é criminoso.

      • Pedro. Sublinhei que acho muitas horas de programação. Só que Miguel Sousa Tavares não tem razão. Dos clubes mais beneficiado é o F. C. Porto. Do Benfica falam só para dizer mal. Repare que não sou benfiquista. Sou pela imparcialidade. Havia motivo para vir com bicadas com o Primeiro-ministro e Presidente da Câmara de Lisboa e até de parlamentar do CDS. Não são benfiquista e sócios? E quando Miguel Sousa Tavares tem a “casa” a arder bem com estas questões. É só para desviar atenções.

    • O que Miguel Sousa Tavares não diz é que as 6 televisões também não falaram do prejuízo de 116 milhões do Porto – o clube dele – que oportunisticamente se serviu desse monopólio noticioso para dar conhecimento e para os papalvos adeptos não se aperceberem nem criticarem.

  5. Bem, Hoje de jejum por engano+engoli louvaDosejaDiabo, lol, e de ler os caros colegas em linha, Dou assim as minhas dias do dia:
    tv+todasasreligioes criam dependência,comem o vosso cérebro, se gostam continuem. :P:D

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