Não posso ir ao cemitério, mas posso ir ao cinema: perceba porquê

(Eugénia Galvão Teles, in Público, 29/10/2020)

Uma das grandes críticas que se tem ouvido em relação às medidas do governo em matéria de gestão da pandemia é sua falta de coerência. Porquê permitir casamentos de 50 pessoas e limitar os restaurantes a mesas de cinco pessoas?

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Veja-se o exemplo da Resolução do Conselho de Ministros nº89-A/2020, que proíbe a deslocação dos cidadãos para fora do concelho da sua residência habitual entre 30 de outubro e 3 de novembro. A razão de ser desta proibição é simples: evitar que a circulação de cidadãos para fora do concelho da sua residência habitual, típica do feriado de Todos os Santos e do Dia dos Finados, contribua como foco de transmissão da doença.

Até aqui, estamos todos mais ou menos convencidos. O problema está nas excepções – o problema está sempre nas excepções. Lendo excepções, conclui-se que se pode ir ao cinema ou ao teatro desde que se apresente o respetivo bilhete. Portanto, eu posso ir a Cascais ver o “Capitão Dentes de Sabre e o Diamante Mágico”, mas a minha mãe não pode ir a São Romão, Seia, onde o meu pai está enterrado. Está tudo doido.

Neste caso, talvez não esteja. Se alguém se der ao trabalho de ler e interpretar a dita Resolução, percebe que um dos objectivos da lei, talvez o principal, é evitar a circulação entre as grandes áreas metropolitanas e as terras mais pequenas.

Assim, se tivermos de trabalhar num concelho vizinho ou na mesma área metropolitana, só precisamos prestar uma declaração sob compromisso de honra – “eu juro que vou trabalhar, senhor guarda” -, não é necessária uma declaração da entidade empregadora. Da mesma foram que só posso ir ao cinema a Cascais se viver na Grande Lisboa.

Da minha experiência na A1 pela altura do dia 1 de novembro, juraria que é o dia com mais deslocações do ano. Nunca mais tentei ir em direcção ao Norte por volta desse dia. Na última tentativa, fiquei convencida da existência de um risco sério de ficar eu própria viúva, perante o estado apoplético do esposo preso no trânsito há mais de seis horas. Alguém que me parece saber mais disto do que eu, já me afiançou que, pelo menos há uns anos, era o dia com mais tráfego rodoviário em Portugal.

O mistério para mim é ninguém ter dito, alto e bom som: o que nós não queremos mesmo é gente a sair de Lisboa e do Porto e rumar à sua terra de origem. Para toda a gente perceber a razão de ser, não só da lei, como das suas excepções. Admito que me tenha escapado algum comunicado em que tal é claro como água.

Levo tão a peito a falta de explicações muito claras neste domínio por, neste momento, ser fundamental que todas as medidas tomadas sejam coerentes e a sua justificação cristalina para todos os portugueses. Convém não esquecer que andamos nos limites da inconstitucionalidade e estamos a falar da restrição de direitos, liberdades e garantias fundamentais.

Dar-se ao trabalho de esclarecer muito bem os objectivos de uma lei pode ainda ajudar a diminuir os casos de aplicação “burocratico-acéfala” da lei, que roçam muitas vezes o abuso de poder. Este tipo de leis é um terreno particularmente fértil para situações deste género.

O poder não se dar ao trabalho de explicar as razões por que limita a liberdade de circulação do comum dos mortais pode ainda ser visto como um sinal de arrogância. Infelizmente, o legislador – assim como os tribunais – parecem ter alguma dificuldade em aceitar que é normal prestarem contas das suas decisões à população.

Como se o direito fosse uma coisa de especialistas e não houvesse grande necessidade de ser percebido pelas cabecinhas ocas que votam, sendo suficiente o seu acatamento. Não, amigos, é só dizer de forma simples e clara e nós conseguimos perceber. E a maioria acata, mais ou menos boa vontade. Basta fornecer um mínimo de racionalidade e coerência para não desatar tudo a espernear ao som de “estão a gozar connosco”.

Já agora, talvez ter a coragem política de assumir frontalmente algo que está subjacente a todas estas regras: até a situação acalmar, vão ser usados todos os pretextos possíveis e imagináveis para evitar ao máximo que a população se desloque ou conviva, salvo para trabalhar ou para gastar dinheiro em actividades onde o resto da população trabalha. A maior parte das pessoas já é crescida o suficiente para encaixar esta verdade.


5 pensamentos sobre “Não posso ir ao cemitério, mas posso ir ao cinema: perceba porquê

  1. Concordo com o artigo, com exceções:

    Quer dizer que, morando no concelho de Oeiras, não fico impedida de ir visitar a tumba da minha mãe, no concelho de Almada nem passando, a bem dizer, pelo de Lisboa? Basta mentir e dizer, por minha honra, que vou trabalhar, é essa a proposta?
    E irem, de todo o país e estrangeiro, a Portimão, nos próximos dias 20-22 de Novembro, assistir ao próximo Grande Prémio de moto e depois do fiasco que foi o GP de fórmula 1, que lógica tem? A do referido consumo do que os outros produzem?
    O povo que ruma no dia de finados não consome o bastante, é? Não é bom esse turismo interno para a região norte (já li referências à corrida desenfreada para o centro), já que o externo continua livre que nem um passarinho e não enche estradas? Ou a de infetar o Algarve?

  2. « até a situação acalmar, vão ser usados todos os pretextos possíveis e imagináveis para evitar ao máximo que a população se desloque ou conviva, salvo para trabalhar ou para gastar dinheiro em actividades onde o resto da população trabalha.»

    E onde “não há dinheiro”(tm) para fazer nada. Além das manifestações políticas, por razões óbvias, é, basicamente, isso. Tal como foi abrir tudo à pressa para virem cá os estrangeiros adoecer, desde que deixassem também os €.

  3. Enquanto, o Dinheiro falar mais Alto e Nada o evitar, é Inevitável, o rumo constante e progressivo ao Ele, dourado abismo, que irá Levantar sempre a moral dos puros e limpos, pouco sãos. :P:D

  4. Pobre nação ardente,
    viraDa para o Mar
    o vento pula e foge
    o poder trabalha e conspira
    os cães ladram alTo
    os gatos miam suavemente
    o zé ninguém cagou-se
    mijou no tejo, abalOu.

    escrito pelo danix, o meu cão daltónico e tarado sexualmente latindo.

    :P:D

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