Quando as palavras não servem para nada

(Pacheco Pereira, in Público, 24/10/2020)

Pacheco Pereira

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Há muito tempo que penso que as classificações assentes na dicotomia esquerda-direita não servem para grande coisa e, bem pelo contrário, têm um efeito contraproducente. Mas o seu peso na linguagem política é hoje tão forte que muitas vezes concedo ao seu uso, por economia de explicações, mas sempre contra vontade.

O próprio facto de o seu uso ter altos e baixos mostra até que ponto não se trata de classificações unívocas, mas de modas e ciclos semânticos que dependem do léxico corrente que, por sua vez, remetem para o modo como se desenvolve a conflitualidade política e o seu contexto. No pós-25 de Abril, mais do que a dicotomia esquerda-direita usavam-se classificações como “socialista”, “comunista”, social-democrata”, “fascista”, “democrata-cristão”, “progressista”, reaccionário”, “revolucionário” (“conservador” e “liberal” não eram muito comuns) quer como autoclassificações, quer como invectivas a adversários. Foi a reciclagem do CDS em PP e da extrema-esquerda em Bloco de Esquerda que levaram ao actual uso corrente da dicotomia esquerda-direita, ou seja, Paulo Portas e Francisco Louçã. Em ambos os casos, houve um elemento de ocultação nesse processo, em particular no caso do abandono do maoísmo e do trotsquismo por parte dos grupos fundadores do Bloco, a favor da mais cómoda e vaga e politicamente correcta designação de “esquerda”.

Mas hoje o uso de “esquerda-direita” é um dos aspectos do geral empobrecimento do debate político, da sua dependência crescente de palavras gastas e de um simplismo analítico. Esquerda-direita é mais uma nomeação, uma invectiva, um enunciado simplista do que uma análise e, por isso, é mais fruto da preguiça do que do rigor. Em tempos de radicalismo e tribalismo, estas palavras condicionam de tal maneira o debate que ficamos presos a elas, contribuindo assim para erros políticos.

Veja-se o modo como se classifica o actual Governo, e por arrastamento o PS. É possível passar horas a ouvir numa reunião do PSD os intervenientes a classificar o Governo como sendo de “extrema-esquerda”. Não se trata sequer de dizer que o Governo, pela sua política de alianças, colabora com a extrema-esquerda, ou concede à extrema-esquerda, mas que “é” de extrema-esquerda. É uma classificação errada e todas as políticas que derivam dessa classificação são-no igualmente. Veja-se, do outro lado, o que o PCP diz do mesmo Governo, classificando-o como sendo de direita ou concedendo à direita. É igualmente errado, mas num certo sentido é menos errado.

Veja-se, na discussão do projecto do Orçamento, o que leva a direita (cá estamos presos nas palavras) a dizer que é de esquerda o Governo. Há duas razões principais: uma, que diz que o Orçamento não dá o papel central na recuperação da economia às empresas; e a outra, porque distribui “benesses” pelos funcionários públicos e por certos grupos sociais que seriam a “clientela” do PCP e do BE. Deixando de lado o aspecto interpretativo do Orçamento, nem uma nem outra coisa são especialmente de esquerda, a não ser quando se ligam uma à outra; quando se diz que, por exemplo, o aumento do salário mínimo é uma opção em detrimento dos apoios às empresas, ou quando se diz que há uma contradição entre os apoios ao Estado (a que agora se chama “socialismo”, pobre palavra…) e às empresas. Ora alguns dos países cuja intervenção estatal é maciça são também aqueles em que o mesmo Estado disponibiliza recursos gigantescos às empresas e as duas coisas estão interligadas, como, por exemplo, a Turquia e os EUA. Não se estranhe incluir os EUA, cujo Estado gasta biliões para apoiar o sector privado por via dos gastos militares, ou agora na indústria farmacêutica. E alguém pensa que a “bazuca” europeia não vai disparar para o privado? E desde quando aumentar o salário mínimo, ou as prestações sociais, como fizeram Marcelo Caetano, Sá Carneiro, Soares, Guterres, Cavaco, Sócrates, é especialmente de esquerda? De facto, como classificação a dicotomia esquerda-direita serve-nos de pouco.

E ainda menos nos serve quando vamos ao PCP como classificador, embora o PCP tenha mais razão em dizer que o Governo é de direita do que o PSD, quando o classifica de extrema-esquerda. (O Bloco de Esquerda diz algo de semelhante mas de forma menos clara que o PCP.) Na verdade, as chamadas “linhas vermelhas” do Governo são todas na fronteira da economia capitalista; o resto é apenas uma questão de repartição de recursos, ou de estatismo, que não é de esquerda nem de direita. Refiro-me à recusa de incluir legislação sobre despedimentos que corresponda ao slogan do cartaz do Bloco “Quem tem lucros não pode despedir” e a tudo o que diz respeito ao Novo Banco, mesmo que de forma ambígua. Aí o Governo pára na propriedade e nos mecanismo da economia capitalista e ao colocar aqui as “linhas vermelhas” (que não coloca noutros sítios) mostra aquilo a que o PCP chama “posição de classe”, que justifica a classificação de direita.

Confuso, não é? É, confuso e inútil. Teria mais sentido analisar, medida a medida, o grau e veemência da recusa de negociação, onde há “abertura negocial” ou não, em vez de uma classificação geral que acaba por dizer mais sobre quem classifica do que sobre o que é classificado. Por exemplo, quando no PSD se diz que o Orçamento é de extrema-esquerda, está-se a deslocar quem classifica muito para a direita, e no caso contrário, no PCP, muito para a esquerda.

O resultado é que as classificações ajudam ao radicalismo no debate político e dão asneira. E dificultam o caso a caso, mais útil numa negociação, manietando as partes no medo de estar a comprometer princípios, quando estão apenas a comprometer classificações, de um modo geral erradas.


21 pensamentos sobre “Quando as palavras não servem para nada

  1. Não é assim tão confuso; quem se borrifa para os trabalhadores não é de esquerda, ponto final, quer mantenha a sanidade de manter algum controlo na economia ou não.

    • Em princípio sim, mas não necessariamente.

      O regime de um Pol Pot estava a borrifar-se muito mais para os trabalhadores do que a nossa direita “civilizada”.

      E a malta do PC e do bloco defende ou já defendeu regimes desse tipo, o que explica que muitos trabalhadores não tenham aderido à esquerda.

      E a tendência geral da esquerda para considerar tudo o que seja branco e ocidental de “privilegiado fascista, racista e machista” está a mostrar um borrifamento bastante injusto e ofensivo para os trabalhadores que tenham o azar de nascer com pele branca. Que se vêem assim traídos pelos seus supostos “representantes” o que explica uma viragem á direita a favor de Tump, Bolsonaro, Ventura e quejandos.

      • O Bloco, onde? Uma coisa são políticas, outra são regimes.
        Isso morreu praticamente com a União Soviética, e, em larga medida, só acontecia porque um país mais pequeno não sobrevivia a um golpe sem essa aliança, que tinha contrapartidas. E quase sempre (e quase só para não me enganar), a escolha era entre ser uma república das bananas ou impedir a CIA a qualquer custo.
        Quanto ao resto; e, no entanto, a discriminação existe.

        • Caro Marques.

          A malta do bloco hoje é muito correta, mas veio de organizações maoistas e trotskistas, sendo que Mao e Trotsky eram praticantes do terrorismo de estado contra a oposição. Incluindo a interna, dentro dos próprios partidos.

          Quanto às imaginárias perseguições raciais com que insultam o povo português que até votou num “preto” para o governar…

          Sim, essas calúnias afastam muitos trabalhadores dos partidos da esquerda. E a vossa insistência numa campanha completamente fake apenas confirma a cegueira ideológica e o fanatismo que relembra outros tempos e outros regimes.

          Basta fazer a junção das duas questões.

          Repare…

          A malta do bloco veio de partidos que defendiam regimes praticantes do terrorismo de estado. Para justificar esse terrorismo usavam calúnias, como chamar “fascista” a toda a gente como pretexto para assassinatos até dos próprios camaradas.

          Ora a vossa campanha contra o povo português, acudando-o de perseguir os pretos implica necessariamente que a maior parte do povo seja “racista e fascista” .

          Exatamente as mesmas calúnias que os ditadores esquerdistas usavam para assassinar milhões do seu próprio povo.

          Está a acompanhar ?

          Apenas como exemplo de delírio esquerdista. A Joacine até já acusou os gajos do livre de serem fascistas e machistas, o Manuel Oliveira já foi acusado de ter um “discurso de extrema direita”.

          Um dos participantes desta caixa até já ofereceu uma cruz de ferro ao estátua.

          Não está a perceber ?

          A irresponsabilidade com que a esquerda espalha essas calúnias em grande escala coloca-vos a VOCÊS próprios em perigo.

          Você pensa que está livre dessas calúnias por ser de esquerda ?

          Engano. Para os seus camaradas você passa de bestial a besta num piscar de olhos. Porque este género de histeria de massa foge a qualquer controlo.

          Para a Joacine não há ninguém que não seja fascista e não a persiga… basta discordar dela seja no que for. Mas ela não é caso isolado.

          É o habitual do discurso da esquerda. Apenas como ela é burra já quer começar as purgas contra os camaradas ainda antes de tomar o poder, quando o habitual é os esquerdistas fazerem isso depois.

          Sim, isso afasta muita gente que fica com medo de ver uns tarados que vêem fascistas em todo o lado e são adeptos do terrorismo possam um dia tomar o poder.

          Isto descredibiliza a esquerda.

          • Fundado incluindo em 1999 != programa de 1999 != programa em 2020.
            Tou-me a borrifar para a Joacine e a sua promoção acima da competência. É a vida. Quem foi expulsa foi ela, mas quem continua a ter medo da negra é o Pedro. Coisas.

            • Caro Marques.
              O bloco pode ter sido fundado depois. Mas as pessoas não se esquecem do que os seus fundadores fizeram antes.

              E o que fizeram foi apoiarem algumas das ditaduras mais sangrentas da história.

              Quanto à Joacine que citei apenas como exemplo da falta de ética da esquerda, só foi expulsa porque TAMBÉM dirigiu a sua falta de ética contra o próprio partido.

              Se tivesse continuado a dirigi-la exclusivamente contra o resto da sociedade vocês aplaudiam todos os seus excessos, insultos e calúnias.

              Aliás até nesta sua resposta você não hesita em levar a coisa para o
              ” machismo e o racismo” dando a entender que eu terei algum problema por ela ser mulher negra.

              Nope. Ela é apenas um exemplo da vossa irresponsabilidade de andarem a caluniar toda a gente para provocar conflitos entre as pessoas e as comunidades. E a sua atitude nesta resposta é um bom exemplo disso.

              E isso assusta o eleitorado. Eu apesar de insultado por vocês todos os dias ainda tenho conseguido votar à esquerda. Embora cada dia a vossa arrogância me custe mais e qualquer dia volto à abstenção.

  2. N0 fund0 0 ser human0 seja p0bre, ric0 ou assim-assim, está-se “marinbando” para os outros, porque é egoísta, indiferente e no final de contas extremamente burro, se quer sobreviver deve eVoUliR = mentE abertA.
    :P:D

  3. Já estou farto de ver políticos do centrão tentarem acabar com a ideia de que a classificação esquerda/direita não serve para nada. Isso só é válido para quem só olha para os partidos do centrão. Aí, sim, a classificação esquerda/direita perde muito do seu sentido. Mas quando se olha para todo o lado, basta comparar PCP/BE com CDS/Chega para se perceber que a classificação esquerda/direita ainda tem sentido.

    E, francamente Pacheco Pereira, os ataques políticos de deputados do PSD a acusarem o governo de ser de extrema esquerda ou do PCP a acusá-lo de ser de direita, não passam disso mesmo, de ataques políticos que não têm relevância nenhuma para o caso, e você sabe bem disso.

    • Qual centrão ?

      Temos sido sempre governados à direita.

      O que se passa é que por razões tácticas muitas vezes a direita não admite que é direita.

      • Se olhar para a Assembleia da República o PS e o PSD estão ao centro, daí serem chamados o “centrão”.

        Você tem todo o direito de achar que o PS é de direita, mas isso é discutível.

  4. Eu não sou de esquerda nem de direita.

    Mas que existem existem.

    Normalmente é o pessoal de direita liberal mais fanática que insiste em dizer que não existem.

    Embora estranhamente depois não hesite em chamar “comunista” a tudo o que saia nem que seja um poucochinho dos parâmetros estreitos da direita liberal mais radical.

    Assim como a esquerda costuma chamar “fascista, machista e racista” a tudo o que mexe fora dos seus partidos.

    É precisamente por causa dessas mentalidades de mer… que não sou de esquerda nem de direita. Apenas nesse sentido especifico da aldrabice e da falta de ética concordo que são bastante equivalentes.

    -Relativamente ao PS, evidentemente que o PCP tem razão. O PS só pode ser de direita.

    Foi o partido que mais privatizou, que mais liberalizou o mercado de trabalho, que mais CMEC’s e PPP’s fez. Ora isto são as principais bandeiras da direita e é o PS o orgulhoso porta-bandeira que as desfralda ao vento…

    Não esqueçamos que foi Soares quem entregou a economia aos capitalistas do antigo regime que tinham fugido do PREC. E que falta nos estava a fazer gente como o Ricardo salgado…

    Também fez coisas de esquerda, como o SNS. Mas quem investigue a história do SNS percebe que o aparelho do PS nunca teve grande entusiasmo pela ideia.

    Pela maior parte dos dirigentes do PS aquilo nunca teria avançado e ficava na gaveta, como a reforma agrária que estava no programa do PS e que nunca ninguém viu.

    Aquilo foi uma casmurrice do Arnaut a que o Soares aderiu, contra a vontade de muitos quadros do PS, talvez para retirar apoio popular ao PC.

      • Precisamente caro Marques. Tinha-me esquecido de referir essa.

        O Mário Soares foi “o nosso homem em Lisboa” (da CIA) e o PS foi a grande plataforma da luta pela imposição do projeto do consenso de Washington em Portugal.

        O PS tem mesmo todos os requisitos para ser de esquerda… nem falta esse…

    • Convinha não confundir a esquerda com o MRPP (por acaso faz 50 anos hoje). Sim há gente de esquerda com esse comportamento mas não são a maioria. Eu sou de esquerda e não me comporto assim.

  5. Há anos que não faz sentido esq/direita.
    Não se defendem as ideias com nenhuma das mãos, mas sim com o cérebro.

  6. Nota. Não li, mas o título não me parece apropriado para um dia como hoje (pois há outras palavras que servem, e muito)

    Vasco Cordeiro e Carlos César deveriam ter-se interrogado sobre o que aconteceu nos Açores, ontem.

    – Tu não achas que já chulámos demasiadamente a autonomia?

    PS perde maioria absoluta. Direita tem mais mandatos do que a esquerda

    PS perdeu cinco deputados e falha a maioria absoluta. Chega tem dois mandatos e é a quarta força política. CDU perdeu o único assento no parlamento regional. No conjunto, a direita tem mais mandatos do que a esquerda e o PSD não fecha a porta a uma coligação de governo alargada.

    […]

    No DN, online.

    Fernando Medina, António Costa, e o seu governo de merda, &etc., é qye é já a seguir.

    • Adenda.

      Da série “Grandes títulos da imprensa de hoje” (especial #Açores)

      A César o que já foi de César? Francisco na calha para a sucessão de Vasco Cordeiro

      É líder parlamentar e foi diretor da campanha eleitoral do PS. É também filho de Carlos César.

      No Observador, online.

    • De uma assentada, normaliza-se a extrema-direita salazarista e neo-nazi e assiste-se à decapitação da narrativa da usurpação passista.
      E este em “coligações alargadas”. Sintomático, e nada surpreendente, só é pena estragar-se a bela imagem de um murro no estômago de César porque só pode piorar com esta gente.

      • Adenda da adenda.

        Olha, Paulino, vai-te queixar à Fernanda Câncio qu’ela deve andar no #Twitter no quentinho do flirt. Assim, se o fizeres, matas três coelhos de uma cajadada: 1. Matas tu e as tuas obsessões desmioladas com o Pedro Passos Coelho; 2. Matas tu e mata ela, que bastante responsabilidade tem na emergência de uma personagem como o André Ventura qu’é filho dos escândalos do Socratismo e da CMTV (assobiando para o lado a moça, como de costume, atira-se aos gajos do Chega! como se tivesse chegado virgem às férias em Formentera e, virgem !, de lá tivesse saído e num estado virginal assim continua até hoje…); 3Mata ela que tem oportunidade de praticar um dos seus prazeres favoritos: dizer mal dos seus colegas jornalistas, assim a modos como uma corporação de putas e de panilhas à excepção de quem lhe dá nos cornos. Boa sorte!

        • E, no entanto, que faz olhinhos ao Chega é o RFC e o seu querido contabilista, formado, bem como o seu colega dos Açores, no partido mui sério e mui social democrata, onde nem o maior mito pagava o que devia.

    • […]

      «Enquanto nos Açores começava o princípio do fim (com a perda da maioria absoluta ao fim de 24 anos no poder), a líder fim do Bloco de Esquerda anunciava o voto contra o OE, pré-anunciando um fim de ciclo no governo da República. O PS é minoritário e, a menos que deseje governar em bloco central, o que já disse que não faria, está condenado a entender-se com o BE. O PCP, relativamente ao qual António Costa não esconde as suas preferências, não chega para fazer a maioria. PAN e deputadas independentes vão agora ajudar, mas no ano que vem não abemos.

      Costa contava com a maioria absoluta em 2019 e começou a descartar a “geringonça”, que formou para chegar
      ao poder, já no fim da última legislatura. Ao não aceitar novos cordos escritos, sonhou com aquilo que as urnas não lhe deram: um poder para fazer exactamente aquilo que quisesse, conforme os seus melhores interesses. À “humildade” de 2015 sucedeu a arrogância de 2020.», destaco.

      Nota. Convém começar a tratar da vida, apressem os golpes e rezem para que não sejam apanhados, fazer poupanças, pagar os créditos, adiar a compra da dtcha para a famelga e, importante, a fazer olhinhos e likar bué os amig@s e amiguinhos, flirtar alargadamente no #Twitter e no FB, reamigar os outrora inimigos, apostar num cavalo mais fotogénico, qu’isto do Costismo já era… ó gangues do PS, escutem!

      _______

      António, chame o Pedro Nuno

      Enquanto nos Açores começava o princípio do fim (com a perda da maioria absoluta ao fim de 24 anos no poder), a líder fim do Bloco de Esquerda anunciava o voto contra o OE, pré-anunciando um fim de ciclo no governo da República. O PS é minoritário e, a menos que deseje
      governar em bloco central, o que já
      disse que não faria, está condenado a
      entender-se com o BE. O PCP,
      relativamente ao qual António Costa
      não esconde as suas preferências, não
      chega para fazer a maioria. PAN e
      deputadas independentes vão agora
      ajudar, mas no ano que vem não
      sabemos.

      Costa contava com a maioria absoluta
      em 2019 e começou a descartar a
      “geringonça”, que formou para chegar
      ao poder, já no fim da última
      legislatura. Ao não aceitar novos
      acordos escritos, sonhou com aquilo
      que as urnas não lhe deram: um poder
      para fazer exactamente aquilo que
      quisesse, conforme os seus melhores
      interesses. À “humildade” de 2015
      sucedeu a arrogância de 2020. A
      relação estragou-se. Quem ouvisse
      Duarte Cordeiro e, no dia anterior,
      Catarina Martins, não acreditava que
      estes dois partidos tiveram um acordo
      durante quatro anos. Não vai adiantar
      grande coisa a fúria de vários dirigentes
      do PS contra o Bloco, criticando-lhe “a
      sua natureza” ou afirmando agora
      velhos ódios que nos últimos anos
      estiveram mais ou menos escondidos.
      Há um problema de base: a menos que
      o PCP suba muito — e infelizmente as
      sondagens não mostram que isso esteja
      a acontecer — o PS está condenado a
      entender-se com o BE, agora e no
      futuro, assim como o PSD está, desde
      os alvores da democracia, condenado a
      governar com o CDS. E isso também
      não é fácil: perguntem a Passos Coelho,
      que assistiu à “demissão irrevogável”
      de Paulo Portas. Ou a Marcelo — que
      não foi primeiro-ministro porque
      Portas acabou com a AD de 1999, na
      qual o próprio Marcelo também já não
      acreditava. A relação entre Costa e o BE
      está agora completamente deteriorada.
      Apesar de Duarte Cordeiro ser um dos
      melhores activos do PS da nova
      geração, é caso para perguntar se, caso
      fosse o “esquerdista” Pedro Nuno
      Santos a conduzir as negociações, as
      coisas teriam chegado a este ponto. Na
      altura, atribuía-se parte do sucesso da
      “geringonça” ao facto de o negociador
      ser um homem que sempre defendeu a
      coligação das esquerdas, por quem
      tinha apreço manifesto. Uma coisa que,
      em relação ao Bloco, há muito que
      Costa não tem. É claro que vai ser difícil
      para o Bloco explicar a parte do seu
      eleitorado por que é que vota contra
      um OE que tem uma forte componente
      social. O Bloco pode perder votos — e as
      presidenciais serão uma “grande
      sondagem”. Mas quem quer continuar
      a ser Governo até 2023 é o PS. E para
      que isso aconteça tem que rapidamente
      refazer as relações com o Bloco.

      Chamem o Pedro Nuno. Ele, que quer
      ser líder do PS quando Costa “meter os
      papéis da reforma”, sabe melhor do
      que ninguém que precisa do Bloco para
      fazer um Governo, se for caso disso. E
      vai matar-se para arranjar um acordo.
      – Ana Sá Lopes, hoje.

      Fonte: P., 26.10.2020, p. 6

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