Nós e a epidemia

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 27/02/2020)

Alexandre Abreu

Poucas coisas haverá mais deprimentes, e que mais façam para que a Economia mereça o epiteto de “ciência sombria”, do que discutir tragédias humanas que envolvem a perda de vidas em termos do seu impacto sobre o crescimento económico ou as bolsas de valores. Essa inversão de prioridades e confusão entre meios e fins é, infelizmente, relativamente comum no discurso económico.

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Faz no entanto sentido discutir os efeitos socioeconómicos da epidemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19) para além do seu impacto direto em termos de morbilidade e a mortalidade. E isto porque, como assinalou Daniel Oliveira aqui no Expresso ainda ontem, esta epidemia – como todas as epidemias com uma certa gravidade – tende a desencadear reações de ansiedade coletiva que abalam profundamente a nossa capacidade de organização social.

No verão passado, aquando da greve dos motoristas de matérias perigosas, pudemos aperceber-nos de como são relativamente frágeis as bases logísticas em que assentam as nossas sociedades, com a perspetiva de um cenário de imobilização generalizada e de risco de rutura parcial das cadeias de abastecimento. Quando olhamos agora para o que tem ocorrido em algumas das regiões em que esta epidemia tem vindo a declarar-se de forma mais precoce – na China e em Itália, em particular –, encontramos fenómenos análogos, mas elevados a um nível superior de perturbação: quarentenas forçadas de vilas e cidades, encerramento temporário de escolas e locais de trabalho, cancelamento de eventos públicos, fuga generalizada dos espaços públicos por parte das pessoas.

Nem sequer é certo que estas medidas tenham muita eficácia. Como escreveu também aqui Henrique Monteiro com base num excelente artigo publicado na The Atlantic, é bastante provável que esta epidemia não possa ser contida (dadas as suas características em termos de contágio) e que possa por isso estender-se a uma percentagem elevada da população mundial (40% a 70%, segundo uma estimativa) nos próximos meses. Num tal cenário, a resposta fundamental em termos de saúde pública deverá passar antes pela redução de danos e pelo desenvolvimento de uma vacina no menor espaço de tempo possível. E assim sendo, os atuais esforços de contenção apenas estarão a servir para ganhar algum, provavelmente não muito, tempo adicional.

No programa Choque de Ideias da RTP3, Ricardo Paes Mamede e Fernando Alexandre assinalaram na passada segunda-feira os impactos acrescidos desta epidemia que resultam da integração global das cadeias de valor. Já um documento de trabalho publicado há dias pelo think tank britânico Overseas Development Institute concentra-se nos efeitos sobre os países em desenvolvimento, identificando alguns dos principais canais de transmissão desta crise. Segundo esta última análise, os países mais vulneráveis são aqueles que apresentam maior nível de integração com a China, cujos sistemas de saúde são mais frágeis e que têm menos capacidade de resposta a nível institucional e orçamental: na primeira linha estão países como as Filipinas, o Sri Lanka, o Vietname e diversos países da África Subsariana, como Angola. Mas mesmo esta análise pressupõe um epicentro da epidemia na China que pode tornar-se rapidamente ultrapassado.

Em última instância, os impactos globais desta epidemia vão depender da sua evolução em termos de escala e virulência. Pode ser que o vírus se espalhe pela população mundial mas evolua no sentido de formas menos virulentas e menos fatais. Pode ser que, mediante uma conjugação improvável de esforços de contenção e fatores meteorológicos sazonais, a epidemia se dissipe sem chegar a tornar-se verdadeiramente global. E também pode ser que a atual taxa de mortalidade (case fatality rate), estimada em cerca de 2%-3%, se mantenha relativamente inalterada num cenário em que a epidemia chegue a 50% ou mais da população mundial no espaço de um ano, caso em que podemos estar perante algo não muito diferente da gripe espanhola de 1918 em termos do número total de vítimas.

Especialmente nos cenários mais graves, uma epidemia como esta tem o potencial de puxar tanto pelo pior – o egoísmo – como pelo melhor – a empatia e solidariedade – que existe em cada um de nós. Nem tudo será negativo se contribuir para recordar-nos a nossa humanidade comum, num tempo em que essa ideia fundamental tem sofrido tantos recuos e tantos ataques.

De Itália, país que se tem confrontado especialmente com estas várias questões, chega uma mensagem que deve fazer-nos pensar:

Tu, que compras vinte e oito pacotes de massa. Tu, que procuras desinfetante no mercado negro. Tu, que andas de máscara. Tu, que planeias a fuga do teu filho de uma região onde há dez casos positivos de coronavírus. Não desprezes nunca mais aqueles que fogem da guerra e da fome.

3 pensamentos sobre “Nós e a epidemia

  1. Choque e pavor, vacinas,máscaras e novos remédios … tudo isto ,monetariamente,interessa a quem?
    Laboratórios farmacêuticos ?
    Perguntar não ofende ,mas tanto terror avulso,porquê ?

    • Porque provavelmente vão morrer milhões de pessoas, o que, pronto, é a vida, mas se for toda a gente infectada ao mesmo tempo, não há sistema de saúde que tenha capacidade.
      Terror, terror não há, o que há são organizações a fazer o seu trabalho e a comunicá-lo, bem como média a tentar vender. Seria bom haver transmissão de segurança por parte dos governos, mas são todos tão maus que isso não existe.

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