Este homem não vai sair de lá sem duas guerras: uma civil e outra (espera-se) regional

(José Pacheco Pereira, in Público, 04/01/2020)

Enquanto a gente por cá se entretém a fazer interpretações mais ou menos escolásticas de frases simplistas, dúplices, sibilinas, em dupla língua orwelliana, sem sentido ou com sentido, cínicas, lugares-comuns, disparatadas, ambíguas, explícitas, mas de um modo geral muito pouco importantes, proferidas pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro, o mundo está perigoso como nunca esteve desde a crise dos mísseis. Esta nossa capacidade para a irrelevância é ela própria assustadora e, embora isso pouco sirva de justificação, é também do conjunto da Europa “civilizada” da Europa do “meio” até ao Atlântico, passando ao lado do “Brexit”.

Este é um dos casos em que os actuais riscos mundiais têm uma interpretação pouco marxista, porque se devem à acção de um indivíduo: Donald Trump e a sua trupe e ao partido de serviçais em que se tornou o Partido Republicano. Claro que tudo em que ele mexe tem razões, racionalidades, explicações estruturais e conjunturais e pode ser interpretado, ou seja, tem um sentido implícito. Mas ele mesmo é irracional, criativo e carismático, no sentido genuíno da palavra cujo uso está muito abastardado, e, por isso, não explicável na sua irredutível singularidade.

Claro que homens racionais, frios, cerebrais, determinados podem ser também muito perigosos, como também o são homens de fé cega, que não conhecem limitações à sua crença, e às suas epifanias, e quase sempre à relação privilegiada que acham que têm com o Divino ou o Destino. Mas podem ser percebidos, interpretados e limitados pelo mundo exterior que os compreende. Trump não; é um caso em que um conjunto de idiossincrasias pessoais, a começar pelo seu narcisismo patológico e pela crença em virtudes próprias quase mágicas, assim como uma ignorância abissal, um simplismo grosseiro e uma agressividade sem limites, todos os defeitos de carácter, um comportamento errático e caótico, se associam a esta pequena coisa — ele é o homem mais poderoso do mundo.

A resposta a Trump é débil para o grau da sua perigosidade. É débil nos democratas nos EUA, é débil nos fracos que o compreendem, mas são cobardes para o defrontar, e é débil nos que o acham que o podem conter mantendo-o à distância. Mas, acima de tudo, é débil em todos os que ainda não perceberam duas coisas básicas: Trump não sai de lá com eleições e, numa esquina qualquer dos dias, na sua política errática, deita mais gasolina para a fogueira para se vingar, ou mostrar poder, ou gabar-se, e a fogueira pode não ser contida a tempo.

Na verdade, Trump nem sequer esconde a sua vontade de ser Presidente vitalício, com uma série de tweets em que os anos passam e ele permanece vestido de Capitão América. E também já disse mais do que uma vez que os seus apoiantes não permitiriam o seu afastamento, mesmo em eleições, que teriam de ser necessariamente fraudulentas, e isso provocaria uma guerra civil. E já disse mais: que com ele estão a polícia, as forças armadas e os cidadãos com armas. O que é que é preciso dizer mais?

Mas antes da “guerra civil”, Trump — que não tem uma política externa coerente, com excepção de ser um fantoche de Netanyahu e da extrema-direita israelita, e de M.B.S., o príncipe herdeiro saudita, e, num plano mais global, de Putin — envolve os EUA numa série de actos arriscados que servem os seus sinistros aliados, sem a prudência que eles, apesar de tudo, revelam. O assassinato de importantes generais iranianos, no solo de um país estrangeiro que é seu aliado, e com a violação de todas as regras internacionais, não vem na sequência do assalto à embaixada em Bagdad — vem na sequência da morte de um “contratado” americano, esta figura eufemística do mercenário, seguida de ataques da aviação às milícias pró-iranianas no Iraque e, por fim, à invasão da embaixada, que foi devolvida pelos ocupantes sem vítimas.

Vejamos as verdades, o mundo não-Trump. Que o Irão é um país que patrocina milícias em todo o Médio Oriente desde o Líbano ao Iémen é verdade. Que a sua capacidade de construir armas nucleares existe e é inaceitável por Israel também é verdade. Mas que o conflito com a Arábia Saudita, um dos países patrocinadores do terrorismo mundial, põe frente a frente dois adversários parecidos um com o outro, e com um fundamento religioso muito antigo pela hegemonia no islão, é verdade. Que os sauditas fazem o mesmo que o Irão, patrocinando milícias e combatentes clandestinos em todo Médio Oriente, mais uma vez é verdade. Que o Irão é uma teocracia, sem liberdades e democracia, é verdade. Mas na comparação consegue, imaginem, ganhar à Arábia Saudita, onde ainda há menos liberdades e muito menos diversidade do que no Irão. Por fim, quanto à questão nuclear, o acordo com o Irão obtido pela comunidade internacional com enormes dificuldades estava a ser cumprido, e os EUA acabaram com ele, numa das suas reviravoltas políticas que só tem uma explicação: dar cabo de tudo o que Obama tinha conseguido.

Face a este homem perigoso, deviam olhar para Churchill na Segunda Guerra e não para Chamberlain, porque é a falta de uma reacção forte e decidida das democracias que permite a Trump fazer o que quer. Um dia acordam com o fogo à porta e vão ler sobre o “estado do mundo” num tweet matinal com erros de ortografia.


5 pensamentos sobre “Este homem não vai sair de lá sem duas guerras: uma civil e outra (espera-se) regional

  1. Uma coisa é certa, este texto espremido quer dizer que trumo +e o inimigo publico nr. 1 e devia ser preso e julgado pelos actos criminosos e terroristas que comete, ou na melhor das hipoteses abatido à vista. A acontecer esta ultima situação era um favor ao mundo porque livrava o oplaneta de um perigoso terrorista, além de quem o conseguisse prestava um serviço publico.

  2. O que custa a acreditar, é como não existem senadores republicanos que se juntem aos democratas, para aprovar a destituição desta sinistra personagem. Se fosse um profeta do apocalipse, diria que personalisa o anticristo. Para alguém menos susceptível ao imaginário metafórico da bíblia, não podemos calar o repúdio sobre este homem perigoso.
    Só nos resta esperar pelo happy end que o povo americano vai dar, se não for antes, nas próximas eleições. Os americanos merecem outro líder que honre a tradição americana, que honre os princípios dos seus pais fundadores , que redigiram a sua constituição com base nos 3 ideais da revolução francesa:igualdade, liberdade e fraternidade.
    Julgo que este atual presidente, ainda que eleito, demonstrou que não está à altura do cargo que ocupa. E a sua presença é um cancro maligno que destroi os princípios das democracias ocidentais e democráticas.
    A única coisa que resta, é ter esperança que o próprio povo americano acorde, e retire a legitimidade democrática a este presidente, no respeito pelas regras americanas. O resto do mundo só pode rezar, infelizmente (receio que os milhares de artigos de opinião que são publicados fora dos EUA são irrelevantes para influenciar a opinião pública americana. E podem ter um efeito até contrário, que é votar outra vez nesta caricatura de presidente, apenas para sublinhar a soberania do povo americano) .
    Este filme não tem um argumento igual aos filmes de Hollywood, e não é certo que tenhamos um final feliz. É antes um livro em branco escrito por alguém sem postura de estado, sem um discurso coerente, e que promove o caos mundial, sem escrúpulos ou qualquer respeito pelas leis interncionais, ou sequer o direito americano.
    Toda a preocupação dos cidadãos de um mundo civilizado é pertinente. Anticristo ou perigoso, a verdade é que uns estarão a favor, outros contra(tal como a profecia) , e assistimos a uma involução dos valores e princípios da sociedade. É preciso combater também esta praga de outros líderes que alinham num diapasão do populismo fácil de uma direita radical, que apenas representa retrocesso a uma nova era de trevas, ajudada por notícias falsas, ignorância e iliteracia.
    Vamos aguardar que este ano de 2020 seja um ano de um novo renascimento, em que as luzes sejam mais fortes que as trevas, em que a razão impere numa nova Ordem Mundial, que tenha a paz e a prosperidade e o respeito dos direitos humanos como o foco da humanidade. Igualdade, fraternidade, liberdade e solidariedade devem estar novamente nos discursos dos líderes mundiais. E não o tamanho das bombas, ou muros entre os povos.
    Que 2020 seja um ano de uma mudança positiva!

    • Quem ache que o mais importante para republicanos (eleitos e eleitores) não é a suposta moral alegadamente cristã e meter os pretos no lugar não tem prestado atenção há muito tempo – e isto incluia-me a mim, até começar a comunicar com alguns.

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