(Francisco Louçã, in Expresso, 28/12/2019)

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Os números são assustadores: a taxa de vacinação contra o sarampo em Itália, França ou Sérvia é inferior à do Burundi, do Ruanda ou do Senegal. Sucesso da política de saúde pública em alguns países africanos? Sim, também, mas o seu progresso é menos notável do que a regressão das normas de cuidados em alguns países europeus. Pode notar-se, além disso, que a reacionária campanha antivacinas tem algum efeito nesta estatística, mas o essencial desta degradação resulta da decadência dos serviços de saúde, do subfinanciamento das suas atividades, da crise de pessoal qualificado e da mercadorização de serviços, que conduz a maior desigualdade de acesso.
O moderno serviço de saúde foi inventado como uma norma democrática, ou de bem comum assegurando o acesso universal, mas tem sido transformado pelo mercado. O problema é que esse processo não assegura nem o investimento em saúde nem resultados que permitam confiarmos que, quando a nossa mãe ou o nosso filho precisarem, ou nós mesmos, o atendimento e o cuidado seja o adequado. O caso dos medicamentos é talvez o mais evidente.
A FALÊNCIA DAS FARMACÊUTICAS
Um artigo recente do “New York Times” traça um retrato sombrio do futuro da investigação em antibióticos, dado que há bactérias que se vão tornando mais resistentes e é necessário mais investimento, mais tempo e mais capacidade tecnológica e científica para obter resultados, o que deixou de convir às grandes empresas. O jornal cita o caso do sucesso de um medicamento, Zemdri, para infeções urinárias, que foi desenvolvido por uma empresa de biotecnologia, Achaogen. A empresa gastou mil milhões de dólares, durante 15 anos, até conseguir obter a autorização para o uso e venda do medicamento. A Organização Mundial de Saúde concluiu que se trata de um medicamento essencial e recomendou-o. Mas a empresa já tinha falido.
O mesmo aconteceu a outras empresas inovadoras em biotecnologia, como a Aradigm. A Melinta Therapeutics, uma grande empresa de antibióticos, anunciou estar em dificuldades. O problema é que as maiores empresas, que dominam a indústria, como a Novartis ou a Allergan, que têm tantos produtos no mercado que lhes garantem um fluxo de rendimentos confortável, estarão a abandonar a investigação em antibióticos, por entenderem ser cara, demorada e arriscada.
O PRIMADO DO PÚBLICO EM SAÚDE
A “Lancet”, uma revista científica de referência em medicina, resumiu esta crise apresentando os números: dos 42 antibióticos atualmente em teste, é possível que só um quinto deles venha a ser aprovado, mas há 700 mil pessoas a morrer por ano com infeções resistentes. Com o agigantar do risco das bactérias resistentes, será necessário um investimento de cinco mil milhões de dólares por ano para novos medicamentos, o equivalente ao gasto do Fundo Global da ONU no tratamento de VIH, tuberculose e malária. Ora, os incentivos à indústria farmacêutica não têm resultado e as grandes empresas não estão dispostas a arriscar. Abandonaram esta investigação, mesmo que saibam que é fundamental. Sobram os Estados e as universidades. Só eles defenderão os nossos filhos.
Os lucros da saúde e a sinecura da esposa do banqueiro
Talvez não se tenha notado muito, no meio das filhoses do Natal, mas tivemos direito à enésima campanha pela entrega de hospitais públicos à gestão privada. Um relatório do Tribunal de Contas ajudou à festa e foi citado como a mais definitiva das referências canónicas sobre o assunto (depois de outros relatórios do mesmo tribunal que concluíam exatamente o contrário). Houve editoriais sorumbáticos, opiniões empolgadas e lamentos vários, tudo destinado a um propósito muito imediato, o de condicionar o Governo a renovar contratos, aumentando os proveitos das empresas financeiras que gerem parcerias que estão nos seus últimos dias, ou pelo menos, mais estrategicamente, procurando abrir a porta para que outro governo, ou mesmo o atual, se liberto da pressão da esquerda, possa relançar este tipo de operação, que movimentava recentemente dois mil milhões de euros por legislatura. Esta campanha de comunicação responde a uma estratégia bem pensada. Não é tanto pela afirmação da bondade da gestão privada, embora se evidencie sempre esse discurso salvífico, mas antes um grito pela acumulação de renda, com a vantagem de acelerar a reconfiguração do sector da saúde. De facto, o que estas agências financeiras pretendem antes de mais é assegurar que estabelecem um mercado de cuidados de saúde, para o que precisam de recrutar pessoal médico e de enfermagem e de reduzir o Serviço Nacional de Saúde no longo prazo.
Em si, a coreografia do sucesso do privado baseia-se num discurso aflito, que é torpedeado cada dia pelos próprios arautos da virtude do mercado. Esta semana, o pequeno episódio dos dois mil euros pagos por mês à mulher do presidente do Crédito Agrícola, em prol do seu contributo para a “estabilidade emocional” do banqueiro, pode ter entrado no anedotário nacional lembrando o facilitismo dos liberais, mas se acrescentarmos vários zeros à direita notaremos fenómenos comparáveis que fizeram a história recente, em particular na última década.
Em todo o caso, esta alegoria do privado como o melhor gestor é uma artimanha e só quando o seu atrevimento chegar à proposta de entregar a gestão da Universidade de Coimbra a uma qualquer Universidade Moderna (era um sucesso financeiro e político no seu tempo, lembra-se de quantos ex-governantes ilustravam os seus cursos?) é que poderemos concluir que a mercadorização dos serviços essenciais da vida se tornou um êxito ideológico. Até lá, teremos somente a guerrilha de cada contrato e haverá sempre um banqueiro que não resiste e nos revela com quantas mordomias é feita a tal superioridade do privado.
A exuberante virtude antissistémica
Donald Trump foi passar o revéillon na sua propriedade de Mar-a-Lago, em Palm Beach, na Florida, um resort de luxo que acolhe hóspedes bem pagantes. Levou com ele, como sempre, a comitiva familiar, os assessores, os seguranças, os amigos. É a 26ª visita às suas propriedades em três anos de mandato e a soma paga pelos contribuintes já se eleva a 118,3 milhões de euros, dado que as autoridades são forçadas a pagar a instalação de todo o pessoal (as suas viagens são preferencialmente para as suas próprias propriedades, já tendo visitado os seus resorts de Bedminster, em New Jersey, Doral, também na Florida, Turnberry, na Escócia, e Doonbeg, na Irlanda). Os lucros líquidos embolsados pessoalmente pelo dono do empreendimento, o próprio Trump, elevam-se a vários milhões de dólares, num total desconhecido dado que a fatura cobrada pela estadia dos seguranças e conselheiros é secreta.
A opacidade ainda é mais sofisticada, dado que os serviços da Casa Branca não revelam quem são os parceiros de golfe de Trump durante estas estadias. Não deixa de ser um assunto relevante: o atual Presidente já passou 227 dias em campos de golfe desde que foi eleito (Obama, por esta altura do mandato, tinha passado 88 dias e Trump criticou-o por perder muito tempo em divertimento trivial) e muitos assuntos são tratados com os parceiros selecionados para o acompanhar. Mas o mais curioso será lembrar que o inquilino da Casa Branca foi eleito com um aguerrido discurso contra o “sistema” e contra Washington, a capital descrita como o centro de malévolas maquinações de uma oligarquia habituada ao mando. A reivindicação da virtude antissistémica foi elevada ao ponto de Trump prometer não cobrar o salário presidencial, dado ser muito rico (mesmo que continue uma dura batalha judicial para impedir a divulgação das suas declarações de impostos, que poderiam revelar ou privilégios, que são banais nessa tal oligarquia, ou que os seus proveitos são menos geniais do que o que sugere).
No entanto, como lembra um jornal norte-americano, os hotéis de Trump já cobraram ao governo o equivalente a 296 anos do salário do Presidente. Em todo o esplendor, o Presidente revela assim a profundidade do seu impulso antissistémico: uma vez chegado à Casa Branca, aproveitou-se para fazer um lucrativo negócio em proveito próprio e para embolsar os lucros. Dificilmente se poderia pensar numa Washington-Jericó mais interesseira e corrompida.
Tres pequenas notas no que respeita a:
1. Diminuta taxa de vacinação na Europa vs. África
Também é explicada pelo enorme sucesso que as vacinações tiveram ao quase eliminar algumas dessas doenças, o que levou a que em vários casos o risco da vacinação se sobrepusesse ao benefício pelo que a) muitos pais optassem pela não vacinação e b) deixassem de ser obrigatórias.
2. Novos antibióticos / bactérias multi-resistentes
Como em tudo na natureza, as bactérias também se adaptam ou, basicamente as que resistem aos antibióticos proliferam. De há muito tempo nos países de Leste optou-se por um outro tipo de abordagem: os fagos (vírus que “comem” as batérias). São específicos para certas bactérias e também se adaptam. De há alguns anos a esta parte algumas farmacêuticas “ocidentais” começaram a testar esta nova abordagem que ainda não tem “produtos” no mercado.
3. A Gestão privada dos hospitais é melhor
Porventura alguns onde terá havido interferência política na nomeação. Mas desculpem o desabafo, já chega deste trocadilho. Se os hospitais públicos tivessem os mesmos tipos de contrato que os concessionados os resultados seriam semelhantes. Os condicionalismos são tantos…. desde a sub.orçamentação que leva a soluções ineficientes, à impossibilidade de transferência de verbas de uma rubrica para outra do orçamento, a disponibilização do orçamento a conta-gotas, o atraso crónico das decisões e sua posta em prática por interferência da tutela…