Como o ressentimento e intriga pública vão destruindo a RTP

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 17/12/2019)

Daniel Oliveira

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Sobre a reportagem do “Sexta às 9”, a propósito do lítio, supostamente censurada pela direção da RTP, só posso dizer o que já escrevi quando me dei ao trabalho de investigar o conteúdo do que foi tratado: que ela não estava em condições para ir para o ar num órgão de comunicação social que se quer de referência. Não porque seja negativa para este ou aquele governante, mas porque qualquer pesquisa superficial, que passa por conhecer a legislação em vigor e consultar o contrato em questão, chegava para a desfazer. O bom jornalismo não é o que afronta o poder com acusações, é o que afronta o poder (ou a oposição, ou seja quem for) com factos indesmentíveis. Nesta era de triunfo da demagogia é difícil explicar que o papel dos jornalistas não é irritar os poderosos, é escrutinar os poderosos. Seguindo regras e métodos mais ou menos estabelecidos.

Mau jornalismo é mau jornalismo, seja agradável ou desagradável para o poder ou, como está na moda dizer, para o regime. Na realidade, o mau jornalismo é sempre bom para quem tem poder: porque, desacreditando-se, permite que se alimente uma cultura de trincheira, onde cada um acredita no que lhe der jeito. Foi o que aconteceu em relação à investigação sobre o lítio. Os que se opõem ao Governo usaram-na contra o PS, os que apoiam o governo não lhe deram, graças às suas brutais fragilidades, qualquer crédito. E é por isso que o mau jornalismo, mesmo que dê audiências à custa do escândalo e da polémica, não ajuda em nada a qualidade da democracia. Ajuda que cada um, à vez, reforce as convicções que já tem.

Sobre a suposta censura de que esta peça teria sido alvo, temos a palavra da direção e a palavra de Sandra Felgueiras. A jornalista responsável pela “Sexta às 9” diz que foi censurada para que a reportagem não saísse em tempo de campanha. A direção diz que o programa foi suspenso porque os compromissos resultantes da campanha deixavam praticamente todas as sextas-feiras ocupadas.

Não temos apenas a palavra de cada um. Temos factos que tornam a acusação de censura muito pouco verosímil. Primeiro facto: não foi apenas o “Sexta às 9” que foi suspenso. Foram o “Prós e Contras”, a “Grande Entrevista”, o “Tudo é Economia” ou o “Outras Histórias”. E a razão da suspensão foi a mesma e é facilmente verificável: nunca, em nenhuma eleição de que me recorde, houve tantos debates e entrevistas nas televisões. Segundo diz a direção, só havia agenda para um único programa a passar numa sexta-feira, o que seria absurdo. Segundo facto: nada impedia que a tal reportagem fosse para o ar nos espaços informativos normais. Sandra Felgueira e a equipa do “Sexta às 9” são jornalistas da RTP, não são jornalistas daquele programa específico. Solicitou a jornalista que o seu trabalho fosse transmitido noutro espaço de informação, já que a bomba era tão grande ao ponto de a quererem censurar? Terceiro facto: quem viu as duas partes da reportagem com atenção sabe que o fundamental da investigação, vamos chamar-lhe assim, passou em abril, muito antes das eleições. A segunda parte não acrescentou nada. A não ser que Sandra Felgueiras quisesse recordar o que já tinha sido dito em abril, mas agora em cima da campanha. Se fosse isso, não estaríamos perante critérios editoriais, mas critérios políticos.

Em resumo: o “Sexta às 9” foi só um dos vários programas da RTP suspensos por causa da programação pré-eleitoral; isso não impedia, se Sandra Felgueiras quisesse, que o trabalho fosse transmitido num telejornal; e o fundamental da investigação mal sustentada já tinha sido transmitido em abril. Se não chega o currículo de Maria Flor Pedroso, Cândida Pinto, Helena Garrido e António José Teixeira para afastar absurda suspeita de censura, chega a pouca solidez da gravíssima acusação.

Esclarecido o que pode ser esclarecido dos factos, e com o Conselho de Redação a condenar a direção, este episódio só não é compreendido por quem está muito longe do que é a RTP ou tem uma agenda política que se sobrepõe a tudo o resto

A acusação que surgiu depois foi a de que Maria Flor Pedroso informou a direção de uma instituição académica onde foi docente (o ISCEM) do conteúdo de uma investigação de Sandra Felgueiras. Mais uma vez, temos a palavra de Flor Pedroso contra a de Sandra Felgueiras, já que a diretora demissionária garante que se limitou a tentar, graças à sua proximidade com a instituição, recolher mais informação, que transmitiu a Cândida Pinto, a quem reportava Sandra Felgueiras. Nisto, apenas posso confiar mais numa do que noutra, partindo do perfil profissional de cada uma. E isso só tem valor para mim.

Mesmo sendo verdadeira a versão de Flor Pedroso, e eu acredito que sim, fez mal. A proximidade aconselha distância. Mesmo que numa redação os contactos informais sejam comuns, a diretora deu o flanco e é possível que isso obrigasse à sua demissão. Numa casa que não esteja viciada em conspirações, isto seria resolvido lá dentro, como acontece nos restantes órgãos de comunicação social. Mas o ambiente que se vive há anos na RTP não é normal. E Flor Pedroso tinha o dever de o saber. O facto de ter guardado a acusação de um acontecimento de outubro para agora insinua alguma má-fé.

Basta conhecer o currículo dos jornalistas desta direção para saber que o confronto não é político. A RTP precisa de estruturas que a defendam das guerras externas partidárias e da guerrilha interna, onde camadas de ressentimentos e purgas sabotam qualquer possibilidade de fazer da televisão pública um exemplo de qualidade e profissionalismo

Esclarecido o que pode ser esclarecido dos factos, e com o Conselho de Redação a condenar a direção, este episódio só não é compreendido por quem está muito longe do que é a RTP ou tem uma agenda política que se sobrepõe a tudo o resto. Assistimos ao enésimo episódio de luta de poder na televisão pública. Neste caso, vindo de quem acha que a RTP não pode ir buscar pessoas de fora. Basta recordar as reações à nomeação de Cândida Pinto, Helena Garrido ou António José Teixeira, que não levantam qualquer questão a qualquer jornalista sério, para perceber de onde vem o incómodo. E, ao contrário de João Miguel Tavares, interessam-me tanto os parentescos de Flor Pedroso (ele acha que ser prima ou sobrinha do padrasto é ser “familiar próxima”) como os parentescos de Sandra Felgueiras, que nunca a impediram, e bem, de ser jornalista de política e trabalhar sobre o partido que abandonou a sua mãe. Interessa-me um currículo profissional que fala por si e que explica a quantidade de jornalistas que juntaram o seu nome a um voto de confiança em Flor Pedroso.

O que está em causa não é um confronto político, o que mais uma vez se ilustra com a abrangência dos jornalistas que colocaram o seu nome no abaixo-assinado. Só não conhecendo o currículo de Maria Flor Pedroso, Cândida Pinto, António José Teixeira e Helena Garrido isso pode ser sequer uma suspeita. O que poderá estar em confronto é uma discordância geral, que nem me parece que tenha sido determinante neste episódio específico, sobre o que deve ser o jornalismo numa televisão pública. Há os que defendem que se deve produzir jornalismo de referência, sustentado pelo cumprimento das regras que lhe dão credibilidade, e os que acham que ele deve concorrer com o estilo tabloide, onde o rigor da informação difundida é substituído por uma suposta “coragem” que não se preocupa com os factos, mas com audiências e impacto político. O papel de diretores e editores é o de garantirem, no exercício legítimo das suas funções, o rigor do que sai. Isso não é censura, é o seu trabalho.

Perante uma direção que segue a primeira linha, há jornalistas que acham que não pode haver direção editorial na RTP. E usam o fantasma da censura para tentar, por via do ruído político-partidário, fazer cair editores e diretores que não são do seu agrado. E é por isso que acho que a direção da RTP fez mal em ir ao Parlamento – jornalistas não prestam contas da sua independência a políticos, sejam do Governo ou da oposição, como muito bem escreveu João Garcia. E que Gonçalo Reis fez mal em mais uma vez lavar de tudo as suas mãos, reforçando a sua confiança na direção e na jornalista Sandra Felgueiras. Uma posição que parece equilibrada mas é um abuso: a administração só tem de confiar ou retirar a confiança na direção, não tem de confiar ou desconfiar de jornalistas concretos.

A RTP vive em guerra há anos. E cada guerra é rapidamente transportada para o espaço público e daí para o espaço partidário, criando um clima onde é impossível fazer jornalismo em equipa, que é como ele se faz. A televisão pública precisa de estruturas que a defendam das guerras externas partidárias e da guerrilha interna, onde camadas de ressentimentos e purgas sabotam qualquer possibilidade de fazer da televisão pública um exemplo de qualidade e profissionalismo. E precisa disso urgentemente.


15 pensamentos sobre “Como o ressentimento e intriga pública vão destruindo a RTP

    • Tão amiguinho da filha da Fatinha, porque não lhe perguntas quando faz uma investigação ao maior mafioso do país, que até tem ministros e secretários de estado a defendê-lo?

  1. Extra-extra!

    «Esta direção de informação não guarda notícias na gaveta.» – Maria Flor Pedroso.

    Nota. Uma vergonha, Daniel Oliveira, tenho alguma esperança de que agora digas que estás, final e eloquentemente, esclarecido.

    vs.

    […] Sobre guerras internas na RTP, só uma certeza: entre as jornalistas Maria Flor Pedroso e Garrido, de um lado, e Sandra Felgueiras, do outro, não hesito em quem acreditar.

    Em resposta a @danielolivalx
    Adenda. Ó Daniel, como te referes a um dos mais sonsos artigos que publicaste no Expresso, da tua longa série quando beliscam os teus amigos, deixa-me evocar o Albert O. Hirschman com as paixões e os interesses. Neste caso, andas num círculo sem encontrares uma saída…

    https://pbs.twimg.com/media/ELBnsCuW4AII-yR?format=png&name=360×360

    1/2

    «Não foi para o ar antes das eleições porque não estaria ainda pronta. Não faço ideia o que aconteceu, mas seremos esclarecidos brevemente.», …?!

    Adenda da adenda. Eis o link da sonsice de quem se entretém a fazer exercícios de estilo, eloquentes.

    _____

    Nota. Xô-xô, galinha! Li o bicho, que latosa….

    • Adenda, para ser guardado na Monumenta Historiae Oliva.

      «Esta direção de informação não guarda notícias na gaveta.» – Maria Flor Pedroso.

      Nota. Uma vergonha, Daniel Oliveira, tenho alguma esperança de que agora digas que estás, final e eloquentemente, esclarecido.

      vs.

      Daniel Oliveira, em 4.12.2019.
      Na realidade, não havia notícia. E sobre isso já escrevi de forma mais informada que Felgueiras, que nem o contrato consultou. Sobre guerras internas na RTP, só uma certeza: entre as jornalistas Pedroso e Garrido, de um lado, e Felgueiras, do outro, não hesito em quem acreditar.

      […]

      Nota. Aula prática da cadeira optativa de Arqueologia ocorrida na pós-graduação de Ciência Política ministrado no #Twitter, poupo-vos ainda o Hirschman e o provérbio sobre o amigo João Galamba. «Sobre a reportagem do “Sexta às 9”, a propósito do lítio, supostamente censurada pela direção da RTP, só posso dizer o que já escrevi quando me dei ao trabalho de investigar o conteúdo do que foi tratado» etc., cite-se. Ou seja, percebe-se mais uma vez que os dois pombinhos foram jantar, ou assim, antes do vergonhoso frete borrado no Expresso, portanto.

      #pardalitos

  2. Revisitei, hoje, por curiosidade a pagina da Estatua/RFC. Encontrei uma casa abandonada, com o RFC a falar sozinho, nao diz coisa com coisa, num estado de loucura avancado, a precisar de tratamento mental! Coitado dele!

  3. Oi meu nome é Wellington e sou editor especializado em Gameplay e Também sei fazer thumb chamativas e atrativas para seus vídeos. com apenas R$59,99
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