(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/04/2019)

A novela das famílias do PS já está, como costuma acontecer nestas polémicas, a rapar o tacho dos casos. É o que acontece com Fernando Medina. Com ele nasce uma nova regra: não podes iniciar uma relação com alguém com quem já trabalhes. Mesmo que a pessoa decida, exatamente por isso, sair do lugar que ocupa é nepotismo. A campanha da direita, que alguns jornais publicam sem fazer perguntas aos visados, não será mais do que isto. Já não interessa se é verdade, o que interessa é manter o tema na cabeça das pessoas e dar a sensação de quantidade. A maioria não vai verificar se se está a ser rigoroso.
Quando surgem polémicas destas devemos tentar discutir o fundo das coisas. Acrescentar qualquer coisa à sua compreensão. Mas a cultura de trincheira é difícil de vencer. No caso das famílias do PS isso é evidente. Uma excelente oportunidade para discutir muito do que corre mal neste país e as suas origens profundas. Claro que em campanha eleitoral é difícil fazer debates sérios, mas há alguns limites para o simplismo.
Lendo vários colunistas da direita portuguesa, fica-se basbaque com o primarismo maniqueísta. No “Observador”, um jornal pago pela oligarquia para fazer a retórica contra a oligarquia em defesa da oligarquia, sucederam-se textos sobre a natureza familiar do PS. Não vou distinguir uns dos outros porque não há propriamente uma individualidade na opinião publicada naquele jornal. Com exceção de uma ou duas vedetas, raramente nos lembramos do nome de cada um dos colunistas, tirando o facto de grande parte deles ter apelidos que nos são familiares, o que não deixa de ser curioso tendo em conta o seu discurso neste tema. Eles são uma massa que se move para o mesmo lado, com a mesma retórica e o mesmo discurso. Que poderia ser resumido assim: o PS é o regime, os pecados do regime são os pecados do PS e é no PS, ou no conjunto da esquerda, que o que está errado neste país tem a sua origem. Assim, fica simples manter a coerência discursiva.
Neste caso, a regra geral traduz-se desta forma: o PS vive dentro do Estado porque representa a oligarquia pendurada no dinheiro dos contribuintes e por isso está isolado do resto da sociedade. E é este isolamento que se manifesta nesta coisa absolutamente inédita das dinastias políticas. E se um tipo tenta mostrar que esse particularismo não é do PS, mas do país, logo se chocam porque estamos a tentar desculpar o mal de um com o de outros. Ou seja, o debate é uma ratoeira.
No Expresso, Henrique Raposo desenvolve uma tese de que a esquerda socialista e republicana (não apenas a partidária) é feita de parentescos desde ainda antes do 25 de Abril. Reconhece que o regime do Estado Novo tinha a mesmíssima característica. Claro que num país miserável, com exceção de algum recrutamento popular feito com risco da própria vida, a oposição recrutava quadros no mesmo espaço que o regime: a elite, por cá bem pequena. Aqui e em todas as ditaduras ou democracias, é da elite que vêm a maior parte dos políticos, estejam no poder ou na oposição. E que não há nisso qualquer particularidade socialista.
O alargamento do espaço de recrutamento acontecido depois do 25 de Abril, resultado da democratização da política e do ensino, não chegou para que Portugal deixasse de ser desigual. E é aí, e não na natureza do PS, da esquerda ou da direita, que está o problema. Mas isso não impediu António Barreto, um dos mais ferozes defensores da universidade elitista, vir-se queixar da endogamia da nossa elite. Elite a que ele pertence e que os vários desdobramentos familiares que lhe conhecemos são bem portugueses.
Como bem explicou Pacheco Pereira, quando contou o conhecido episódio de Marcelo Caetano fazer a chamada na Faculdade de Direito fazendo referência aos pais dos alunos, a elite era minúscula. E apesar da enorme mudança, agora é apenas pequena. E isso vê-se nas grandes empresas, nas faculdades, na medicina e na política. Não é uma particularidade do Estado, da política, dos partidos ou do PS. Como é evidente para quem não esteja na pura guerrilha de campanha.
A esquerda representa o regime e por isso os problemas do regime são os problemas da esquerda. Uma tese impossível de sustentar historicamente, mas que alimenta a cultura de trincheira, resumindo a solução de todos os problemas nacionais ao aniquilamento do adversário. Este estalinismo intelectual que tomou conta de uma parte da direita portuguesa é sinal de decadência, não de vitalidade
Há imensos debates interessantes a fazer sobre a elite portuguesa e a sua pequenez, a consanguinidade em todos (mesmo todos) os círculos de poder em Portugal, a desigualdade de oportunidades, o amiguismo como forma de vencer essa desigualdade, a hereditariedade e o suposto mérito (no acesso ao poder e à riqueza), o círculo cada vez mais fechado em que vivem os partidos. Mas esse debate fica interdito quando se quer assumir um problema nacional como um problema de facção. Não por causa de injustiça, mas pela irracionalidade. Porque se o problema é de fação quer dizer que não é estrutural. E se não é estrutural então ele resulta apenas da imoralidade de uma força ou pessoa.
Ou então, faz-se a síntese fácil à “Observador”: a esquerda representa o regime e por isso os problemas do regime são os problemas da esquerda. Uma tese impossível de sustentar historicamente, até olhando para a permanência de alguns problemas que costumam ser referidos na monarquia, Primeira República, Estado Novo e democracia. Mas que alimenta a cultura de trincheira, resumindo a solução de todos os problemas nacionais ao aniquilamento do adversário. Derrotado o adversário o problema está resolvido.
A verdade é que o programa político da direita neoliberal é muito difícil de vender num país pobre e desigual. E isso torna pouco recomendável para esse espaço fazer o debate em torno de grandes opções políticas. Resta a desqualificação ética da esquerda. É o que está a acontecer em muitos países. O problema da esquerda é ser desonesta, corrupta, clientelar. Ser de esquerda é ser um criminoso em potência. E para que este caminho se faça é preciso diagnósticos políticos e sociais simplistas que arrasam toda a inteligência e seriedade. Que acaba por dar espaço aos que navegam mais facilmente nessas águas. Se tudo o que está mal na política se resume a questões ética isto só lá vai com uma limpeza. E as limpezas exigem, já se sabe, mão forte que segure a vassoura. Mesmo que não seja esta a conclusão a que querem chegar os que optam pela estratégia maniqueísta, é a ela que acabam por chegar os eleitores. Votando depois em que tenha mesmo mão forte.
A mim, não me passa pela cabeça defender a ideia de que a corrupção é uma particularidade da direita. Consigo imaginar formas de corrupção mais propícias à direita e outras mais propícias à esquerda, tendo em conta culturas políticas e posições ideológicas distintas. Mas tirando forças que agem no espaço da criminalidade política, não atribuo características éticas a um determinado espaço político. Custa-me, por isso, lidar com esta estupidificação da política.
Tenho uma dificuldade perante o sucesso crescente dos que à direita preferem desistir de qualquer reflexão fora da sua trincheira, excomungam os que no seu espaço se atrevam a fugir a este tom e mergulham o debate no mais embrutecedor maniqueísmo político: como não lhes seguir o exemplo e, mesmo assim, não permitir que desequilibrem totalmente a balança da perceção da realidade? Como mostrar que o particularismo de falta de ética que tentam atribuir à esquerda é falso sem aparecer como aquele que diz “vocês fizeram o mesmo”? Como não os deixar sozinhos sem ficar como eles? Como impedir que aquela trincheira vença sem me enfiar noutra trincheira? Sei que nem sempre consigo resistir à tentação de não os acompanhar. Mas devo, devemos todos.
O estalinismo intelectual que tomou conta de uma parte da direita portuguesa, mesmo que possa ser passageiramente eficaz, é sinal de decadência e não de vitalidade. Ele devora sempre as suas próprias crias.
Se considerarmos que, neste século, a direita portuguesa só consegue subir ao poder quando a “esquerda” (confesso que tremo sempre um pouco quando tenho de usar esquerda e PS na mesma frase, mas vá, esquerda por oposição à nossa bem conhecida direita) faz cocó à grande, é perfeitamente natural que, na ausência de temas fracturantes ou qualquer outra linha de argumentação eficaz, a oposição, ou melhor, aquilo que hoje quer passar por oposição, se limite a estas manobrazinhas de distração infantis. Porque o Durão só foi eleito porque o Guterres não aguentava mais e o Passos só subiu ao poleiro porque o Sócrates finalmente cedeu à sua costela de “centrão” e, ingénuo ou talvez não, decidiu enveredar pelos mesmos becos escuros onde a direita se movimenta tão naturalmente. O resultado todos nós conhecemos, goste-se ou não do personagem.
Porque enquanto o António Costa não for apanhado às costas da Catarina Martins e do Jerónimo a tentar roubar nêsperas ao vizinho, a nossa direita pode muito bem montar a tenda na secção da oposição parlamentar pois tão depressa não vai sair de lá.
A direita anda desesperada por mais um Sócrates ou, na falta deste, um Guterres que ceda às pressões infantis a que a sua argumentação encontra limitada. Sempre o disse e volto a afirmar: a direita portuguesa só governa quando a “esquerda” (seja ela quem for) se torna demasiado complacente.
Hoje é a treta das famílias políticas (não digo que o PS seja desculpável neste assunto, mas quem têm telhados de vidro…), ontem foram os incêndios e o relógio da Catarina Martins. Amanhã é bem provável que o Observador dedique metade dos seus “jornalistas” a investigar se o Jerónimo apanhou todos os cocós do seu cão na rua. Porque quando não há argumentos para contrapor, resta-lhes atirar punhados de areia para os olhos dos portugueses, capitalizando na sua fraca memória e pouco mais.
Bom comentário! 🙂
Nota. Discordo, e acho que bem. Eis o que observa o Vicente Jorge Silva no P. de Domingo, por exemplo, ou poder-se-ia escolher o que escreveram a Ana Sá Lopes e o Manuel Carvalho, num work in progress e ontem, pois este é que é o verdadeiro ponto da situação. O resto é atirar areia para o ar como fazem os bichos, num estilo blogosférico que teve a sua época com a firma Valupi, Tangas & C.ª, Limitada… um Tudo Ao Molho E Fé Em Deus sendo que o Altíssimo antes era o José e imagine-se, por emulação propagandista, agora é o António Costa que já tem idade para ter juizo.
[…]
Ora, Portugal tornou-se
um dos exemplos mais recentes
dessa tendência, com a
concentração obsessiva do debate
político em torno das redes
familiares em que o Governo
socialista se deixou aprisionar,
ameaçando mesmo tornar-se o
tema central das próximas
campanhas eleitorais.
Como seria totalmente previsível,
um punhado de comentadores
vocacionados para a polémica
doméstica chamaram um Ægo a esta
oportunidade servida numa
bandeja pelo PS e o seu Governo.
Mas o que surpreende ainda mais
(ou talvez não) é a facilidade quase
patética com que os socialistas
expõem os seus calcanhares de
Aquiles, fazendo mesmo gala dessa
exposição e encontrando para ela
os argumentos mais abstrusos. Um
deles é o de que o rufar de tambores
contra o grau inédito das conexões
familiares no actual Governo se
destina a desviar as atenções do que
vem sendo apresentado como a
medida “revolucionária” por
excelência do PS: os passes sociais
para os transportes.
O problema com o PS — e
porventura com os partidos
portugueses — é o de que o seu
autismo o leva a ser incapaz de um
esforço de reÇexão crítica sobre si
mesmo, atribuindo a campanhas
maldosas ou “teorias de
conspiração” toda e qualquer
discordância sobre o seu
comportamento político. Não que
essas campanhas não existam,
obviamente. Mas elas existem
também na medida em que o PS,
refém do “umbiguismo” ou do
cinismo desse comportamento, as
favorece e até inconscientemente as
promove, como se vivesse à margem
do escrutínio democrático. Por mais
detestável que seja a demagogia das
“cruzadas” a que a direita (e não só)
recorre para comprometer as
ambições maioritárias a que aspira o
PS, isso tem sido possível por obra e
graça da ligeireza, da inconsciência
e da cegueira persistente — dir-se-ia
por vezes incurável — dos
responsáveis socialistas.
A sobranceria de que usa e abusa
o PS — ou, mais concretamente,
António Costa — reÇectiu-se, por
exemplo, nos critérios que levaram
à escolha de Pedro Marques como
cabeça de lista às eleições
europeias. Como já aqui lembrei e
alguns comentadores também
sublinharam, o ex-ministro da
propaganda, que se destacou em
sucessivos anúncios megalómanos
vazios de conteúdo, foi preferido a
Maria Manuel Leitão Marques, uma
personalidade conhecida pelo seu
trabalho consequente de
modernização e simpliÆcação
administrativa do Estado. Além
disso, Costa parece imaginar Pedro
Marques como futuro comissário
europeu responsável pelos fundos
estruturais — esse tesouro mágico
de que Portugal tanto depende para
investimentos fundamentais na
renovação do país. Não se tratará,
porém, de um gritante erro de
casting, tendo em conta o passado
propagandístico de Marques e
também o Çagrante conÇito de
interesses a que Æcaria exposto se
quisesse beneÆciar excessivamente
Portugal através da sua pasta
europeia?
António Costa parece apostado
em colher os frutos da experiência
da “geringonça” como um dos
dirigentes socialistas hoje mais bem
cotados no clube europeu de um
centro-esquerda em crise de
identidade, programa e liderança.
Mas os seus passos em falso podem
rapidamente trocar-lhe as voltas
quando chegar o momento da
verdade
Fonte: P., 31.3.2019, p. 32.
Ah, o que escreve o Daniel Oliveira sobre o assunto interessa-me tanto como servir copos de vinho ao dono de uma taberna (há excepções alcoólicas, claro). O estilo é o do Alfredo Barroso em algo que me enviaram ontem, esmerou-se o tipo em atirar a matar ao Paulo Rangel sem ter percebido que este, sabiamente, saiu de cena enquanto o PS se enterra.
Convém espreitar para a rua antes de sair, senhores/as, nomeadamente para saber se está de chuva, ou se faz sol.
Um eurodeputado mata-mouros
Por Alfredo Barroso, cronista, no jornal «i» em 01/04/2019
Entretanto, num país distante.
Secretário de Estado que nomeou o primo demitiu-se. “Entendo que o assunto pode prejudicar o Governo”, diz Carlos Martins
Miguel Santos Carrapatoso
Filipe Santos Costa
04.04.2019 às 12h24
Carlos Martins, secretário de Estado do Ambiente que nomeou o primo, demitiu-se esta quinta-feira, poucas horas depois de o próprio ministro [sublinhado, please] o ter defendido, garantindo que tudo estava “resolvido”.
Carlos Martins, secretário de Estado do Ambiente que nomeou o primo para seu adjunto, apresentou esta quinta-feira a demissão. Na carta que enviou ao Ministério garante que agiu sempre de “boa-fé”, mas reconhece que a sua conduta pode “prejudicar o Governo, o Partido Socialista e o senhor primeiro-Ministro”.
[…]
No Expresso, online.
Nota, prévoa.
ASL no P., hoje (apesar de ter sido ultrapassada pela realidade, a tese está lá clarinha como a água para quem souber ler… e tiver cabeça).
EDITORIAL
Os primos e amigos do PS e as europeias
Se as eleições para o Parlamento Europeu são em regra pouco simpáticas para os governos, não lembra ao diabo que Costa tenha feito uma lista encabeçada por um ex-ministro que ninguém conhece.
4 de Abril de 2019, 6:38
Esta quarta-feira, um primo de um secretário de Estado foi afastado do Governo. O governante, que decidiu nomear um membro da família, manteve o lugar. Foi uma simples tentativa de conter os estragos. Eventualmente, António Costa começou a perceber que a overdose de relações familiares entre o Conselho de Ministros e os gabinetes pode criar sérios danos a curto prazo. E o curto prazo já tem data – as eleições europeias de 26 de Maio.
Se as eleições para o Parlamento Europeu são em regra pouco simpáticas para os governos, não lembra ao diabo que Costa tenha feito uma lista encabeçada por um ex-ministro que ninguém conhece, Pedro Marques – e que, pelo menos até ao momento, não parece dotado de um talento político entusiasmante. Mas há pior: a presença de Pedro Silva Pereira no terceiro lugar da lista tem o condão de trazer à memória colectiva o pesadelo Sócrates, a última coisa de que o PS tinha necessidade.
Costa pode-se ter distanciado do antigo primeiro-ministro socialista, mas Pedro Silva Pereira esteve lá, até ao fim. A mensagem subliminar é a pior que havia para passar. É curioso como Costa, que se esforçou tanto para fazer uma ruptura com Sócrates, decide agora promover na lista às eleições europeias a sua eterna sombra. Silva Pereira já tinha estado nas listas há cinco anos, mas era o número 7. A sua promoção para o terceiro lugar é um interessante “prémio carreira” que não parece trazer qualquer vantagem eleitoral ao PS.
[…]
O problema de Costa é que vai apanhar na crise a mesma dívida privada de 2007 com menos estabilizadores automáticos e menos (ou mesmo zero) meios legais para fazer alguma coisa. Daí ao PEC V é um passinho.