O juiz e a antifeminista

(Por Anselmo Crespo, in Diário de Notícias, 26/02/2019)

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(Parece que ainda vivemos na Idade da Pedra, permitindo que os cavernícolas façam o seu percurso mas, pior ainda, que imponham o seu perfil primário ao resto da sociedade .
Decidir o que é justo ou injusto, correcto ou incorrecto praticar numa sociedade civilizada pode não ser tarefa fácil. Mas, convenhamos, que há requisitos mínimos que, quanto mais não seja, relevam do senso comum.

Mas, ao que parece, este juiz não cumpre sequer tais requisitos. E, o mais triste e dramático, é que tem quem o defenda e lhe mantenha o lastro do cargo, continuando a ser o que é: um verdadeiro troglodita.

Comentário da Estátua, 26/02/2019)


Se a segunda-feira já é um dia difícil – e já devia ter sido abolida do calendário -, levar com um acórdão do juiz Neto de Moura e com um artigo de opinião de Joana Bento Rodrigues (quem?), logo no início da semana, não é azar, é uma pena demasiado pesada, até para o pior dos criminosos. Ou como diria Neto de Moura, uma penitência excessiva até para o pior dos pecadores.

Por partes. O juiz, que acha que ainda vive na Idade Média, voltou a “atacar” e decidiu brindar-nos com mais um dos seus acórdãos num outro caso de violência doméstica. Não ignoremos, nem por um segundo, o facto de este senhor continuar em funções depois de ter escrito num acórdão que “sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte” e que “na Bíblia a mulher adúltera deve ser punida com a morte”, como se fossem razões para ver atenuantes num crime de violência doméstica. Ainda não há muito tempo, continuou Neto de Moura, “a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse ato a matasse”. Não ignoremos, já agora, que, como castigo por ter escrito tamanhas enormidades num acórdão judicial, este juiz recebeu uma “advertência registada” – seja lá o que isso for – do Conselho Superior de Magistratura.

Claramente assustado com o castigo que poderia vir a receber (e que só ficou decidido em fevereiro deste ano), Neto de Moura continuou a dar largas à imaginação e a gozar literalmente com a justiça. Desta vez, num acórdão de outubro do ano passado, decidiu retirar a pulseira eletrónica que mantinha o agressor longe da vítima, deixando-a completamente entregue à sua própria sorte.

Mas o juiz foi mais longe e voltou a não resistir a mais um pequeno apontamento, da sua autoria, pois claro, no final do acórdão: “Se, durante muito tempo (…) a vítima de violência doméstica sentia que o mais provável é que a sua denúncia acabasse em nada (…), a verdade é que, nos últimos tempos, têm-se acentuado os sinais de uma tendência de sentido contrário, em que a mais banal discussão ou desavença entre marido/companheiro/ namorado e mulher/companheira/ namorada é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente, o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido.”

Já voltaremos ao juiz Neto de Moura porque, ao nível das pérolas, a que se segue tem o mesmo potencial de náusea. Joana Bento Rodrigues (quem?), que alinha no Tendência Esperança em Movimento (TEM) – uma corrente de opinião democrata-cristã do CDS -, decidiu insurgir-se publicamente contra o feminismo. Até aqui, tudo bem. É novamente a democracia a funcionar, com tudo o que tem de bom e de imperfeito.

Escreve Joana Bento Rodrigues que “o potencial feminino, matrimonial e maternal” são as “três características mais bonitas da mulher”. A abstração da frase não evita a primeira crítica: se as mulheres não quiserem casar e ter filhos já são feias? O problema é quando ela começa a elaborar sobre o assunto. Diz esta médica do CDS que “a mulher gosta de se sentir útil, de ser a retaguarda e de criar a estabilidade familiar, para que o marido possa ser profissionalmente bem-sucedido, porque esse sucesso é também o seu sucesso”.Conclusão? A mulher – e Joana Bento Rodrigues acha que fala por todas – “não se incomoda em ter menos rendimentos do que o marido, até pelo contrário. Gosta, sim, que seja este a obtê-los, sendo para si um motivo de orgulho” até porque – pièce de résistance – “lhe confere a sensação de proteção e de segurança”.

Num paternalismo (ou maternalismo?) patético, a autora do artigo recorre, depois, à sabedoria popular para explicar às mulheres deste país que “não se pode ter tudo”. Claro que há menos mulheres nos cargos políticos e em posições de poder. Não é porque os homens não deixam, é porque as mulheres não querem. É porque “a mulher escolhe-o naturalmente” – dedicar menos tempo do que o homem às causas partidárias.

É por tudo isto – e por mais um conjunto de boçalidades – que o feminismo, conclui Joana Bento Rodrigues, retira à mulher – imaginem só – “a doçura e ​​​​​​a candura.” E os movimentos que o representam deviam era “inquietar-se com a conciliação da vida laboral com a natureza da mulher e as suas reais preocupações”. Leia-se, tratar da casa, dos filhos e, não esquecer o mais importante, cuidar muito bem do maridinho, para ver se ele nunca se irrita, se tem muito sucesso profissional e se nunca lhe falta com nada em casa.

Não é preciso ser mulher para sentir uma profunda vergonha na leitura de um texto destes, no século XXI. Basta ser humano e acreditar, como eu acredito, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Um princípio que esta médica do CDS, claramente, nunca leu.

Como também não é preciso ser mulher para perceber que ainda há, na nossa justiça, quem continue a cultivar uma mentalidade retrógrada e machista, indiferente ao facto de deixar desprotegidos aqueles que merecem ser protegidos e de punir aqueles que merecem punição.

Mas estes dois exemplos, de Neto de Moura e de Joana Bento Rodrigues, devem fazer-nos refletir porque dizem muito do país que ainda somos. O país dos misóginos (pouco) envergonhados que se escondem atrás da lei e dos seus mais próximos, para nos fazer retroceder civilizacionalmente. Ou das falsas moralistas que não aprenderam nada com a história e que se escudam num conservadorismo bacoco para defender o que defendem.

Neto de Moura e Joana Bento Rodrigues estão aí para nos lembrar, todos os dias, que há uma luta para travar e que esta batalha está longe de estar ganha. Porque são os misóginos e os falsos moralistas que ajudam, direta ou indiretamente, a potenciar fenómenos como o da violência doméstica.

2 pensamentos sobre “O juiz e a antifeminista

  1. Grandes talibãs, o Moura e a Joana e o Observador (que lhe dá espaço)!! Que horror, estamos a voltar à idade das trevas! Louvo a coragem e dignidade de uns quantos democratas e humanistas que ainda ousam contrariar as tendências ditatoriais de uns quantos.

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