Quando o jornalismo ajuda a esconder

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 21/12/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

Quando escrevo este texto, o bloqueio anónimo iniciado nas redes sociais pela extrema-direita parecia ser um absoluto flop. A comunicação social é, neste momento, o maior motivo de piada nacional. Deve-se ter escrito mais artigos esta semana do que o número de pessoas presentes no protesto. Quem se deu ao trabalho de se infiltrar em grupos de WhatsApp destes movimentos sabe que ainda há uma semana ele se estava a desintegrar por dentro, com tensões entre vários grupelhos de extrema-direita e alguns ingénuos. Que estava a definhar. Até que, no início desta semana, depois da PSP anunciar uma grande mobilização para grandes protestos – baseada em nada, como se viu, já que ao contrário de todas as outras manifestações não há uma estrutura organizada que lhes possa dar informação –, a comunicação social passou a dar notícias diárias sobre o que iria acontecer.

Compreendo o interesse perante um protesto anónimo, tenho mais dificuldade em compreender a confusão entre informação e mera divulgação. Para a divulgar sem filtro os jornalistas não são precisos. Diariamente, foram sendo publicadas listas de locais de encontro, com horários, e manifestos contraditórios com reivindicações igualmente contraditórias. Devia ser ao contrário, mas as fontes, se forem anónimas, têm acesso facilitado aos media. Até podem, mesmo estando a convocar uma manifestação pública, continuar anónimas sem que ninguém veja nisso um problema. Nem os jornalistas.

Muito poucos fizeram o óbvio: dizer quem eram os promotores disto. Eles tiveram reuniões com a PSP. Têm identidades. Sendo a coisa mais estranha deste movimento o anonimato, essa é que é a informação relevante. A comunicação social não tem de ser cúmplice desse anonimato. Quando foi o “Que se Lixe a Troika” havia signatários do manifesto inicial e eles foram, com toda a legitimidade, escrutinados. Os jornalistas quiseram saber, e bem, quem eles eram e que filiações políticas tinham. Porque é isso que diz qualquer coisa sobre as motivações do protesto. Muito mais do que manifestos escritos em cima do joelho em que se dizem generalidades. Generalidades que, ainda assim, foram temperadas com expressões que qualquer pessoa com alguma cultura política identifica com a extrema-direita. Sentem o povo português a exigir um referendo sobre o Plano Global das Migrações, constante numa das listas de reivindicações? Identificam expressões como “ideologia de raça” e “ideologia de género”?

O que eu esperava que os jornalistas me dessem não era horários, locais de encontro e manifestos colados com cuspo. É o que eles não queriam que eu soubesse: quem esteve a preparar um movimento

Durante uma semana, a comunicação social fez muito menos do que informar. Promoveu e convocou uma manifestação sem identificar os seus autores e sem ter a menor ideia da sua real dimensão. Nunca, que me recorde, qualquer manifestação teve esta cobertura antes de acontecer. Incluído manifestações que tiveram centenas de milhares de pessoas. Sempre com promotores conhecidos. O pânico de ignorar uma coisa que poderia ser relevante fez com que os media a tentassem transformar em relevante. Quase à força. Para que se tornasse numa profecia autorrealizável. O que eu esperava que os jornalistas me dessem não é o que estes grupos anónimos me davam nas redes sociais: horários e locais de encontro, manifestos colados com cuspo. É o que eles não queriam que eu soubesse: quem esteve a preparar este movimento e porquê. Isso é que é jornalismo. Sobretudo quando não há um rastilho claro que explique o nascimento do protesto.

Tirando o “Diário de Notícias”, que identificando um dos grupos iniciais tornou evidente as ligações à extrema-direita, ninguém o fez. Limitaram-se a comprar, ao preço que lhes foi vendido, a transposição oportunista dos coletes amarelos para Portugal. Ontem, na véspera, lá foi um tipo à SIC Notícias dizer umas barbaridades desconexas e foi o primeiro e único rosto dos que “espontaneamente” escreveram manifestos e “espontaneamente” reuniram com a PSP que conhecemos. Sem nada sabermos sobre ele, na realidade.

Os próximos movimentos já sabem como ganhar o interesse da comunicação social: quanto menos transparentes forem mais atenção terão. Não de jornalistas que lhes queiram retirar a opacidade, mas de jornalistas que colaborem ativamente com ela. Basta qualquer partido ou movimento radical esconder-se atrás de um falso movimento inorgânico e logo terá a ajuda de uma imprensa demasiado sedenta de mistério e modernidade para se atrever a fazer perguntas. Terão promoção gratuita.

E, um belo dia, um dos jornalistas que fez esta triste figura vai perguntar, ao ver um Bolsonaro ou um Trump no poder: “Como raio chegámos aqui”? Nunca se lembrará do dia em que desistiu de ser desconfiado.

3 pensamentos sobre “Quando o jornalismo ajuda a esconder

  1. Isso não tem nada a ver com o anonimato e tudo a ver com o reaccionarismo do donos, os “criadores de emprego” que “pagam impostos a mais”.

    • Mais um artigo de servico do daniel oliveira a toda a direita distanciando a de uma manifestacao que apoiou e culpando apenas a extrema direita pelo seu fiasco! A sic noticias referida no artigo como apesar de tudo salvadora do convento, paga bem!

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