Eu sou administrador de Serralves pelo que tenho um conflito de interesses em falar aqui sobre o “caso” da demissão do antigo director do Museu de Serralves e curador da exposição Mapplethorpe (duas funções diferentes e com regras diferentes), que todos podem (e devem) ver para não falarem de cor. Não falarei do “caso” por muita vontade que tinha (e tenho) de o fazer.
Mas posso falar dos contorni, expressão italiana para designar os “acompanhamentos” do prato principal — porque os contorni são muito reveladores de algo que não é de agora: a insuportável presunção e arrogância de muitos “homens e mulheres da cultura”, “artistas” e “intelectuais”, e jornalistas “culturais” que face a eles têm todas as complacências e são incapazes de um reporting que siga as regras de distanciamento e equilíbrio da profissão. Todos acham que só eles podem falar da “cultura” e da “arte” e sem ser eles só há ignorantes, boçais, provincianos, censores, que violam uma frase bíblica que serviu de mote para vários quadros renascentistas: “Noli me tangere.” (Que ninguém me toque.) Querem citações eruditas, também sei fazer.
Sucede que uma das coisas piores deste mundo é esta arrogância, a que se associa muita inveja e ressentimento, que é, como se sabe, uma combinação muito poderosa. E, se pensam que o mundo da política é o protótipo de intriga, facas nas costas, má-língua, pequenas cortes que se digladiam e geral mediocridade, então, se conhecerem melhor os meios “culturais”, tudo isso empalidece face às práticas dominantes nas casas dessas cliques. Seria injusto dizer que não há ninguém que escape, mas são a excepção à regra.
Sou defensor de um “Estado mínimo” nas áreas em que as opções de financiamento derivam de opções de gosto, e gostaria de ver o Estado (e os governos) bem longe dessas opções, como acontece em particular na tradição anglo-saxónica. Nunca fui um defensor da política Malraux-Lang, para transformar (como governos e muito autarcas sabem) a cultura como instrumento intocável de propaganda nacional, política e local. Eles sabem bem usar o noli me tangere, para fazer muita coisa sem que haja escrutínio e crítica.
Eu, por estranho que pareça, até sou defensor do “1% para a Cultura”, só que talvez não o gastasse nos mesmos sítios e nas mesmas coisas, e sou de há muito defensor de uma política, reaccionária sem dúvida, sobre a concentração dos recursos escassos na salvaguarda do nosso património artístico e cultural, num país que tem muito património construído a “desconstruir-se”, faz pouca arqueologia, e não tem sequer um corpus da sua grande literatura disponível quer em edições críticas, quer em edições populares de qualidade e dá pouca atenção ao ensino artístico, quer nas escolas de Arte, Design e Arquitectura, quer nos conservatórios.