Brasil: a ONU junta-se à desobediência civil

(José Sócrates, in Público, 21/08/2018)

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Eis o que vemos no Brasil: um regime completamente desmoralizado, sem parlamento, sem Governo, sem política, sem autoridade.


Numa decisão rara, o comité de direitos humanos da ONU decidiu, na passada sexta-feira, face à “existência de possível dano irreparável”, transmitir ao Estado Brasileiro “a adopção de todas as medidas necessárias para assegurar que o requerente (Lula da Silva) usufrua e exerça todos os seus direitos políticos enquanto está na prisão, na qualidade de candidato nas eleições presidenciais de 2018, o que incluiu o acesso adequado à imprensa e aos membros do seu partido político”.

Não se trata ainda do julgamento de mérito sobre o caso concreto, que está em apreciação, mas de uma decisão preventiva para defender o direito de Lula a candidatar-se e ainda o direito dos brasileiros a votar em quem desejam. O Brasil deve, pois, abster-se de qualquer decisão que impeça o antigo presidente de ser candidato.

As instituições brasileiras reagiram de cabeça perdida: o Ministério das Relações Exteriores dizendo que “as conclusões do Comité tem um caráter de recomendação e não possuem efeito juridicamente vinculante”; o ministro da Justiça afirmando que se trata de “interferência indevida”; a imprensa assustada ignorou escandalosamente a notícia, e o candidato Jair Bolsonaro aproveitou para dizer que se for eleito “sairá da ONU” que não passa de “reunião de comunistas”. Um velho jornalista dirá, desalentado: “A mesma reação que a ditadura tinha quando era condenada”

Vejamos. O Brasil ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos em 1992. Em 2009 decidiu ir mais longe incorporando na sua ordem jurídica interna o chamado Protocolo Facultativo através do decreto legislativo nº 311/2009 reconhecendo, desta forma, a jurisdição do Comité para analisar eventuais violações às disposições do Pacto. O Protocolo chama-se facultativo por isso mesmo – o país pode permanecer no Pacto sem o ratificar, mas, ao fazê-lo, passa a reconhecer voluntariamente a jurisdição do comité, obrigando-se a cumprir as suas decisões. Toda esta deambulação histórica para dizer com segurança o seguinte: a decisão é obrigatória e vincula todos os poderes públicos brasileiros – o poder legislativo, o poder executivo e o poder judiciário.

Viremo-nos agora para a política que, afinal, está no centro de tudo. Cada vez que penso na situação política brasileira vem-me ao espírito a biografia de William Pitt, que foi o primeiro-ministro inglês mais novo da história britânica, com apenas 24 anos. No primeiro debate parlamentar a sessão foi tumultuosa, com os deputados aos berros apontando-lhe a falta de experiência e de maturidade para conduzir os destinos do Império. Quando chegou a sua vez de falar levantou-se para lembrar os seus honoráveis colegas que tinha sido eleito pelo povo e nomeado pala rainha: “Não cheguei aqui pela porta dos fundos”, disse. A frase ficou. É uma daquelas frases que qualquer Chefe de Estado democrático deve poder dizer em qualquer momento e em qualquer circunstância: não cheguei aqui pela porta dos fundos. Pois bem, aqui está uma frase que nem o Presidente Temer nem nenhum dos seus ministros que agora se pronunciaram está em condições de dizer e muito menos em ocasiões solenes. Este é o problema do governo brasileiro e tem a ver com uma pequena palavrinha muito cara à democracia – legitimidade.

Ódio e escalada: primeiro, o impeachment, depois a prisão, depois a inelegibilidade, agora o desprezo pelo direito internacional. Eis o que vemos no Brasil: um regime completamente desmoralizado, sem parlamento, sem governo, sem política, sem autoridade.

Um regime entregue a personagens de opereta – um juiz que promove escutas ilegais e as divulga; um diretor da polícia que desrespeita a ordem judicial de soltura de Lula porque recebeu um telefonema ordenando-lhe o contrário;  um chefe militar que avisa  que não aceitará impunidade e que está atento  “às suas missões institucionais”; um Tribunal dito Supremo que se transforma subitamente em parlamento, aprovando, com recurso a estapafúrdias hermenêuticas jurídicas, verdadeiras alterações à Constituição, por forma a que se possa, sem sentença judicial transitada em julgado, prender um líder político.

Regressemos à ONU. Alguns dirão que esta não tem forma de fazer cumprir as suas decisões. Sim, não tem, mas tem do seu lado a arma mais importante: a legitimidade, isto é, a autoridade que dispensa a força. Do outro lado está apenas a força sem nenhum tipo de autoridade. Podem não cumprir, é certo. Mas não sei como, depois disso, ainda esperam que a ONU reconheça as eleições brasileiras como livres e justas.

Bem vistas as coisas, talvez o mais importante legado do mandato de Lula à política brasileira tenha sido a aprendizagem democrática de transformar velhos inimigos em leais adversários. Infelizmente estes não se têm mostrado à altura dessa herança, e essa é toda a desgraça da democracia brasileira.

Estamos já em campanha eleitoral e o antigo Presidente continua à frente das sondagens – e com percentagens acima da soma de todos os outros candidatos. O povo parece não acreditar que o seu processo judicial foi justo e não se dispõe a desistir dele. O antigo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, diz que “a desobediência civil está nas sondagens”. Agora, a 50 dias da eleição, a ONU resolveu juntar-se à desobediência.


O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

6 pensamentos sobre “Brasil: a ONU junta-se à desobediência civil

  1. Como sempre um pensamento e argumentação limpa escrita de forma incisiva sem o mínimo prejuízo da clareza na exposição política do caso.
    E, sobretudo, sem dar o mínimo indício de estar a escrever em termos comparados com o seu caso toda a argumentação e contínuo da exposição imediatamente nos remetem para as semelhanças com o seu caso.
    Tive um professor Engº. que um colega meu, sempre que saía de uma aula dele, dizia: Este gajo devia pagar-se-lhe tudo o que ele pedisse só para dar aulas e não fazer mais nada.
    Pois com Sócrates também se lhe devia pedir que fosse apenas político contudo, num país de oeirenses, os medíocres estão sempre em maioria para elegerem um entre eles.

  2. Honestamente era impossível pretender que uma figura política como sua excelência permanecesse inerte ante a “injustiça” cometida contra o iletrado Luís Ignácio Lula da Silva. Analisando seu artigo devo confessar que comemoro de forma honesta e transparente sua eloquência e capacidade literária…a falta de poder armado o poder da palavra e fundamental, mais ainda -no absoluto modelo Gramsci- entendendo que uma mentira bem formulada dever ser repetida mil vezes até transformá-la em verdade.
    Analisando de forma regressiva seu artigo me permito desenvolver alguma das suas afirmações, dando, inclusive uma justificativa que você, – por motivos óbvios-, evita expor. Cito: ” o mais importante legado do mandato de Lula à política brasileira tenha sido a aprendizagem democrática de transformar velhos inimigos em leais adversários (sic)”. Você está absolutamente correto na sua afirmação, o grande problema foi, a forma em que nosso iletrado amigo conseguiu isso. Você não consegue explicar como? Vou dar-lhe uma pequena ajuda: O Partido dos Trabalhadores (PT) engendrou um dos esquemas de corrupção mais intensamente elaborados dos últimos 50 anos em Latino América. Petrobras, entre outras estatais -geradoras de caixa, o seja, dinheiro- foi dividida como um “porco” entre os partidos que formaram a base de apoio do PT, cada um deles, com uma sede violenta e desesperada por recursos econômicos que permitissem amplificar não só suas ambições eleitorais, como, -obviamente-, as contas bancarias dos seus dirigentes. Este primeiro ponto está então resolvido: Comprando adversários até o diabo fica seu amigo.
    Em um segundo aparte sua excelencia cita: “…Ódio e escalada: primeiro, o impeachment, depois a prisão, depois a inelegibilidade, agora o desprezo pelo direito internacional. Eis o que vemos no Brasil: um regime completamente desmoralizado, sem parlamento, sem governo, sem política, sem autoridade…(sic)” Com tudo respeito gostaria de fazer uma segunda pergunta: O senhor João Pedro Stedile, braço direito do iletrado, quem em inúmeras oportunidades assassinou opositores e promoveu movimentos armados e invasões a terras de fazendeiros (casualmente nenhum deles militantes do seu partido) virou o Dalai Lama, quando? Ou José Rainha Jr. líder do Movimento sem-terra (MST) um dos braços sindicais do senhor Lula, indiciado em vendas ilegais de milhares de hectares de terra inclusive da Mata Atlântica…virou Santo Antonio de Pádua?
    Infelizmente seu iletrado amigo não passa de ser um encantador de serpentes profissional -como tantos outros-, que se aproveita da sua eloquência e domínio da palavra para convencer massas iletradas e miseráveis capazes de entregar um país por algumas poucas migalhas.
    O populismo, ferramenta fundamental do seu modelo político, serve primariamente para enriquecer a seus dirigentes, sustentados por massas ignorantes e necessitadas. Neste sentido, você poderia explicar, por favor, como o filho do iletrado conseguiu passar de um simples operário no zoológico de São Paulo a um dos homens mais ricos do Brasil em só quatro anos? Quando tenha a resposta agradeceria me iluminasse sobre o assunto, será uma aula magistral!

    Devo concordar que algumas migalhas chegam ao povo, obvio! Seria o cúmulo que entre tanta roubalheira nada chegue ao povo idiota, ao final, socialismo adora os pobres pois eles são a massa de manobra perfeita, ignorante, pobre e alienado, em resumo, o barro perfeito. Não se preocupe pois Portugal vai nesse caminho pois chega a ser engraçado a alienação que cada día consome a juventude portuguesa (são rappers, são staketistas, são funkeiros brasileiros -sem entender sequer que esta música e uma simples apologia ao trafego de droga e violência-, são corsários ingleses de barbinha e tatuagem, enfim, são qualquer coisa que passe na tv….qualquer porcaria que esté na moda). Agora, por favor, não subestime nossa inteligência, pelo menos a minha. Sua excelência mistura habilmente causas com consequências, fazendo parecer que o problema do Brasil radica na prisão do iletrado. O problema no Brasil e simplesmente uma absoluta CRISE ETICA E MORAL, consequência da corrupção generalizada e a perda de valores que minou absolutamente todas as instituições do país. Esta tal vez não foi engendrada nos governos socialistas do PT mais, sem dúvida, este partido a alimentou de forma exponencial e meteórica de forma que acostumaram ao brasileiro a perder qualquer respeito pela Lei e o dinheiro público. Tudo se corrompe e tudo se compra…inclusive a Oi brasileira, certo? O problema não e o iletrado estar na cadeia. O problema é que SÓ O ILETRADO ESTÁ NA CADEIA, quando devem ser muitos mais muitos mais.

    Finalmente posso lê recomendar que se abstenha de falar do que não conhece a fundo. Você não foi um dos 100.000 trabalhadores despedidos pela Petrobras quando esta empresa perdeu mais de 35 bilhões de USD (mais de 20% do valor total de mercado) em menos de um ano consequência dos sucessivos desfalcas financeiras dos governos socialistas, nem é família de um dos que morre nos hospitais cada minuto simplesmente porque não existem recursos (O Diretor do hospital, indicado pelo partido, desfalcou até o último centavo).. e isto são só trocados….

    Assim, tenha a decência de cuidar do seu cantinho e, finalmente, como um antigo professor de Yale (sim, eu teve uma boa educação -e o mais importante- sem dinheiro público), “a política e uma sarjeta…. ninguém escapa dela sem se sujar….”

    • Um pequeno ajuste, a falta de justiça e obvio, da aplicabilidade da mesma, foram decisivos neste processo de corrosão moral e ética. Reparei que existem pessoas que consideram a ética e moral como elementos determinados pelo regime econômico e social… Bom, isso justificaria então a Hitler, Idi Amin Dada, Maduro, Ortega, Fidel e por ai vai….

  3. Sua Excelência que pelos vistos é “Letrado” em oposição a quem cita que identifica de “Iletrado” refere que o problema do Brasil assenta numa crise Ética e Moral parecendo não saber que Moral e Ética são relativas aos costume e não passam na maioria dos casos de verborreia Metafísica ou Teológica ao serviço da fome e da miséria do povo que Sua Excelência procura justificar sem grande convicção cientifica pois que a Ética e a Moral são sempre determinadas pelo regime económico e social e não o contrário, é como andar de cabeça para baixo com os pés para cima tal é a figura que faz..

    • «Sua Excelência que pelos vistos é “Letrado” em oposição a quem cita que identifica de “Iletrado”», bastante bom (e a poesia é isto, afinal, sem muros nem fronteiras).

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