COIMBRA, MARÉ BAIXA

(José Gabriel, 07/08/2018)

coimbra
Quando era professor na E.S. Jaime Cortesão, dizia que tinha o privilégio de trabalhar num monumento e ter o melhor pátio de recreio que podia desejar, a Baixa de Coimbra. Já nos meus tempos de estudante e durante muitos anos foi a minha “sala de estar”, como a de muitos amigos. Os cafés e esplanadas – onde todos éramos democraticamente promovidos a doutores a partir dos dezoito anos – , onde as palavras voavam livres e aprendíamos mais que nos bancos da Universidade – e, por vezes, os mestres eram os mesmos -, mesmo em frente da porta de algumas das melhores livrarias do país, os livros lidos à sombra benévola dos velhos prédios da Ferreira Borges e da Visconde da Luz – “Faltou a luz na rua Visconde da mesma”, lembram-se? -, às vezes encadernados para não despertar curiosidades duvidosas, o copo e o petisco num daqueles lugares que talvez não passasse hoje numa vistoria da ASAE, enfim, um habitat propício ao desenvolvimento mental da espécie. Tudo quanto foi importante, passou por ali: manifestações, lutas, festas, vida, enfim. Até há não muito tempo.

Dou por mim, agora, a evitar o mais que posso essas paragens. Não porque me comova a nostalgia – sou pouco dado a saudosismos – de tempos idos, mas porque me custa ver aquilo que, antes, era considerado um espaço nobre da cidade, no estado deplorável que dia a dia se agrava. Ocorre-me este desabafo porque acabei de chegar de uma ida, por obrigação, a esses lugares e, entre lojas, serviços, bancos e até caixas multibanco, tudo fechou. As livrarias e discotecas, essas, já tinham partido há muito. Tudo apresenta um ar sujo, decrépito. Restam apenas algumas lojas resistentes, taipais e papéis nas montras e janelas, multiplicam-se os comedouros e lojas de “true portuguese souvenirs”.

Alguns cafés clássicos ainda resistem, mas o largo da Portagem está transformado numa pocilga de esplanadas que, por excesso de ocupação, apresenta um ar abominável, com lixo pelo chão que a brisa que corria fazia passear pela calçada. Furgões de cargas e descarga a horas absurdas, tuc-tuc com condutores “chega p’ra lá” agravam a paisagem. Até os músicos de rua – como que fazendo corresponder a sua falta de arte ao ambiente – que me couberam hoje, eram intragáveis – ó gente, se querem tocar e cantar para os passantes convinha que acertassem alguns acordes.

Não, não vou culpar a multidão de turistas que por lá circulava, de nariz no ar, talvez interrogando-se porque raio aquela cidade lhes tinha sido tão recomendada. Não, a culpa não é de quem visita, é de quem recebe.

Coimbra queria turistas. Tem-nos. Mas não mexe um dedo para merecê-los. Saca deles o que pode e trata-os, e aqui é que bate o ponto, tão mal como trata os seus cidadãos. E uma cidade que não cuida da felicidade dos seus habitantes, não cuidará da dos visitantes, mesmo que pareça fazê-lo. E está destinada a perder o melhor de uns e outros.

Ou, dos que ficam, restarão os que se retiram para uma espécie de “Vale de Lobos” urbano. E descobrem que, por lá, se reencontram amigos e companhia, lugares habitáveis, enfim, reinventam a cidade que amam.

Sei que há “muitos factores que explicam o que se passa” e de todas as justificações da ementa de desculpas habitual. Mas também sei que se as cidades não podem impedir o inevitável podem remediar, podem resistir. Podem, até, superar e transformar os problemas em oportunidades. Mas isso exige lideranças de outra tempera. Assim seja – um dia.

4 pensamentos sobre “COIMBRA, MARÉ BAIXA

  1. Subscrevo esta visão das coisas. Nasci e vivi em Coimbra muitos anos, e agora, quando lá vou, fico incomodada. As ruas da Baixa deixam-me deprimida. Fico com muita vontade de ir embora.
    Queria apenas fazer uma correcção gramatical, se me permite, da frase “Têm-os”. A forma correcta é “Tem-nos” (o sujeito é singular – Coimbra – daí não ser preciso o acento circunflexo; e o pronome, por estar antecedido de m, fica com um n). )

  2. Chi, até fiquei com uma lágrima (de crocodilo…) quando li o texto, exuda saudosismo, do antigamente é que era bom, sou coitadinho não pude (ou não quis por comodismo) fazer nada para contrariar a mudança. Paciência, os tempos mudam mudam-se as vontades e o estado das coisas, cidades que eram relevantes deixam de ser, e queixamo-nos que as cidades nada fazem, quando elas são o que as pessoas querem, e quando elas nada fazem as cidades de certeza deixam de ser o que elas gostariam que fossem. E é assim, Coimbra ainda é algo por causa dos turistas e de uma universidade cada vez menos relevante e cada vez mais anquilosada e presa no passado. Viveram sempre à sombra da universidade, perderam o monopólio, deslizam lentamente mas seguramente para a insignificância, sem indústria e empregos. E não caem da cadeira porque as cidades não se sentam em cadeiras…

  3. Bom, eu sou de Coimbra… Moro na cidade já faz décadas. O que sei é que a cidade hoje é muito melhor do que ha 20 ou 30 anos. É-o sem a menor dúvida em muito campos, desde as infraestruturas à higiene e mesmo em termos da recuperação do edificado. Percebe-se que numa cidade com tão poucos habitantes muito do comércio tradicional não se sustente na mesma quantidade de lojas de outros tempos quando os centros comerciais impuseram as suas leis. Pergunto eu: o que pode o poder político municipal ou mesmo nacional, nos destinos da propriedade privada? Gosto de gente que é coerente na defesa da intervenção publica no património privado se for comunista… não sendo comunista, este texto mais não é que um ataque politico à atual gestão camarária. Ha formas menos rebuscadas para o fazer e se calhar mais honestas do que esta abordagem pseudo-intelectual ao estado da cidade.

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