A teoria do muro

(Francisco Louçã, in Expresso, 20/03/2018)

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(Este texto de Louçã merece reflexão e deve preocupar todos aqueles que, como eu, saudaram o surgimento do actual governo e o fim do guetto parlamentar a que os partidos à esquerda do PS estiveram votados durante 40 anos. Há vozes e forças dentro do PS que teimam em fazer emergir o  velho e relho centrão e não sei se Costa terá força – ou mesmo vontade -, de as conter. É essa a táctica e o plano da direita mais pragmática e inteligente e foi para isso que apearam o Passos do trono do PSD. Cabe aos democratas de esquerda frustar-lhes os desígnios.

Comentário da Estátua, 20/03/2018)


Numa curiosíssima investigação de ontem de um jornal de referência, o Público, uma “fonte” do ministério das finanças expende anonimamente uma teoria sobre o Orçamento para 2019, sob o título certamente expressivo de “Centeno não dá margem para aumentos na função pública”, que deve merecer toda a atenção. Essencialmente, a teoria é esta: não há dinheiro para repor o nível salarial perdido (cada funcionário recebe hoje menos 11,9% do que em 2010, em média) e o governo deve impor a manutenção do corte, até porque, faça o que fizer, o orçamento será sempre aprovado dado que os seus parceiros não querem uma crise política nas vésperas de eleições. Esta teoria tem, portanto, um discurso orçamental e um ultimato político.

Dirão os leitores, batidos nestas coisas: a política, sobretudo anónima, é feita de prosápia e, por isso, mais vale não ligar muito a cenários e pressões, até porque não consta que o Orçamento tenha começado a ser negociado (e bem devia). Talvez a leitora ou o leitor possam assim concluir um conselho aos partidos de esquerda: não liguem a fontes disfarçadas mais do que uma máscara merece, o Carnaval já passou, hoje é primavera, não reajam com nervosismo. A consistência é a força que move uma política e quem puder apresentar trabalho feito em negociações árduas e em soluções concretas será quem ficará a ganhar.

Ora, mesmo que predomine a cabeça fria, há que reconhecer que esta chantagem do não-dá-margem tem ainda uma outra implicação, além do jogo de sombras para condicionar uma negociação que o principal protagonista, o ministério das finanças, nem parece disposto a iniciar (alguém registará esta curiosa estratégia de suscitar um debate preventivo sobre um tema em que só fica assinalado que o governo não quer conversar sobre o assunto que traz a público). É que há nisto uma teoria, a teoria do muro.

A teoria do muro, como qualquer boa teoria, tem três axiomas: o primeiro é que o governo só vai até ao muro definido pelos acordos de 2015 com os partidos de esquerda; o segundo é que, em tudo o que importa, o governo decide como se tivesse maioria absoluta; e o terceiro axioma é que os dois primeiros são regras inquestionáveis. Além dos axiomas, a teoria ainda tem duas hipóteses auxiliares, que se chamam Rui Rio e Assunção Cristas: Rio mobiliza o entusiasmo do PS para voltar a acreditar numa maioria absoluta e Cristas ajuda o PS na divisão da direita.

A teoria é coerente, bem pensada e perfeitinha. E pode ser a condenação da estratégia de governo do PS, parece mesmo a armadilha que a bazófia coloca a si própria. Porque, além de axiomas e hipóteses auxiliares, há a realidade, tão aborrecida que ela é.

A realidade é que o PS está longe da maioria absoluta, o pouco que lhe falta é imenso. O PSD precisaria de cair mais – abaixo do que é já muito baixo – e o CDS de ficar insignificante, para que Costa possa sonhar com a maioria absoluta. Não basta o entusiasmo de um Júdice ou de um Soares dos Santos ou de outros que, descrentes da direita, saltam para o comboio esperançoso de um PS reforçado para por ordem na casa e devolver o regime de benefícios e mordomias que tantas saudades gera. Numa palavra, a teoria pede que o PS seja um muro contra a esquerda para ganhar votos à direita. Só que isso seria arriscar tudo na campanha eleitoral e para resultados perigosos: falhando, o PS ficaria dependente de Rio para o Orçamento de Estado e o PSD teria em breve a sua oportunidade de escolher o momento de “ir ao pote”, como Passos Coelho um dia elegantemente explicou. A teoria do muro é a única hipótese de sobrevivência de Rio depois de 2019.

Mas há ainda a realidade mais comezinha do dia a dia: a teoria do muro estatui que o governo só cede à esquerda no salário mínimo e nas matérias que estão escritas na pedra dos acordos de 2015. Ou seja, se o governo seguir essa teoria, não trata com os seus parceiros de nada de relevante dos problemas da governação, não estuda novas soluções, não se interessa por corrigir os erros, segue em frente como se não houvesse amanhã. Com a teoria do muro, para o governo a relação com os seus aliados basear-se-ia num minimalista contrato a prazo, desinteressado dos problemas que há que resolver. Saúde? Não interessa. A tal “fonte” nem sequer se dá à maçada de explicar como é que o concurso de centenas de médicos especialistas ficou retido um ano só porque sim. Segurança social? Regras para as carreiras longas? Contratação dos precários? A tal “fonte” não se perturba pelo facto de decisões acordadas demorarem mais um ou dois anos a executar do que estava definido, e nem se sabe se esses prazos serão cumpridos.

A teoria do muro determina que nas questões que importam, para além da restituição de rendimentos, fica tudo como está: o muro não deixa passar nada. Serviços públicos? Muro. Investimento? Muro. Transportes? Muro. Habitação para os jovens em cidades que se tornaram das mais caras da Europa? Muro. Bem-estar que as pessoas reconheçam? Muro. Garantias na saúde? Muro. Então, entusiasmado com Rui Rio, algum PS, capitaneado pela nossa “fonte” anónima, incha-se de satisfação com a teoria do muro: agora somos nós, basta o ultimato e acelerar. Em resumo, a teoria propõe um curso de ação que é a mais evidente garantia de que conduzirá ao falhanço, porque desiste de governar e assume que a prioridade é o jogo.

3 pensamentos sobre “A teoria do muro

  1. Isso é óbvio, é a razão pelo que a esquerda não se preocupou em ter tachos de governo de faz de conta. Além disso, duvido muito que o PS não se fracture a tentar manter a eurofantasia enquanto os portugueses, no melhor dos casos, não saem do sítio.

  2. Tão preocupados que estão em garantir o ressuscitar do “centrão”.
    Andam distraídos, a fazer de conta que têm o mérito divino de exercer o poder, sem nunca, jamais em tempo algum, no passado ou no futuro, pensarem sequer em explicar porque o poder de compra médio dos portugueses era o mesmo em 2015 que em 1998.
    Depois, quando passar a haver uma maioria de descontentes a votar fora do “centrão”, toca a alarmar com “populismo” e “extremismo” e “anti-Europa”, e basta, que o povo é de raciocínio lento e não precisa de explicações… depois, quando a maioria fora do “centrão” governar, depois é tarde de mais para arrependimentos.

    Foi por perceber isto, e a sua consequência principal que é o desaparecimento eleitoral de todos os partidos Europeus de centro-esquerda, que António Costa anda desde 2014 em “Congressos das Alternativas”, e desde 2015 em “Geringonças”. Mas tal como Louça avisa, A.Costa só o fará enquanto se achar que é necessário, que a vontade de “centrão” é muito e está no sangue da maioria dos “rosas de cima” (os dirigentes), que não representam nem de longe os “rosas de baixo” (os eleitores), pelo menos desde os anos 90.

    No final de contas, o aviso de Louça é como todos os seus comentários: útil. Caberá então à esquerda democrática (BE) saber aproveitar a utilidade de tais avisos, e conseguir fazer-se sentir necessária, pois só assim se evita o fim da “Geringonça” e o regresso do “centrão”, que é como quem diz, a confirmação do PS como o próximo partido de “centro-esquerda” a virar para o centro-direita e a desaparecer eleitoralmente.
    E porque é que isto não interessa ao BE, que lhe disputa os votos? Porque, como se tem visto por toda a Europa, este desaparecimento dos “socialistas” (mas só de nome) impossibilita as “Geringonças”, pois o seu eleitorado foge todo para os braços do populismo demagogo, ou da extrema-direita, ao som das promessas doces (demagogia) de quem sabe aproveitar a situação (os Beppe Grillos e Donald Trumps desta vida).

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