O QUE SE PASSARÁ COM A CABEÇA DO CARDEAL?

(In Blog O Jumento, 12/02/2018)
cabeca
O argumento posto a circular, a propósito da proposta de continência sexual sugerida aos “casais irregulares”, pelo cardeal patriarca de Lisboa é o de que se trata de um assunto interno da Igreja Católica Apostólica Romana, que só diz respeito aos seus membros. Este argumento defendido por algumas vozes que vieram em defesa do cardeal, faria algum sentido se a Igreja não se sentisse no direito de considerar os seus valores como devendo ser de todos, tentando impor as suas regras em matéria como divórcio, homossexualidade, adoções, eutanásia, interrupção voluntária da gravidez a católicos e não católicos, sob a forma de código penal, impondo a todos o seu próprio código moral. Mal estaria o mundo se os valores só pudessem ser questionados pelos membros de cada clube.
Não há na nossa sociedade duas escalas de valores e, a Igreja, que se sente no direito de condicionar toda a sociedade não pode levantar muitos em sua defesa, quando tenta evitar que a sociedade a influencie.
Seria interessante conhecer em que circunstâncias a Igreja admite o divórcio ou, para ser mais preciso, a nulidade do casamento, excluindo, é claro, a cunha, coisa que também existe nos divórcios da Igreja. No passado houve mesmo um ex-embaixador junto do Vaticano que já depois de reformado ainda ocupou um alto cargo no Estado, nomeação feita por um ministro agradecido pela ajuda que recebeu do embaixador na anulação do seu casamento.
A verdade é que os motivos que levam quase 100% dos casais a divorciarem-se não são contemplados no direito canónico. A partir do momento em que um casamento se realiza em condições normais e seja consumado quase nada é aceite como motivo de divórcio. Seria interessante se o cardeal apresentasse estatísticas de divórcios canónicos, por exemplo, em casos de violência doméstica. Aliás, todos sabemos qual a posição dos padres em relação a uma mulher que se queixe de violência doméstica, não é certamente a proteção da vítima.
Uma mulher que se divorcie por ser violentada ou mesmo violada pelo marido e volte a casar dificilmente conseguirá anular o seu casamento celebrado pela Igreja Católica, por aquilo agora ficámos a saber ou a mulher continua a aceitar a violação e a violência santificada pelo sacramento do casamento ou é forçada à abstinência sexual, sob pena de ficar excluída da Igreja, isto é, fica condenada a uma exclusão que não sendo equivalente à excomunhão corresponde a uma marginalização caluniosa no seio da Igreja.
Na telenovela “Tieta do Agreste”, baseada num romance de Jorge Amado, há uma personagem que se chama Modesto Pires que sendo casado mantinha uma “teúda e manteúda”. A determinada altura a amante e a esposa decidiram fazer uma greve de sexo que levou o Modesto Pires ao desespero. O desespero era tanto que o Modesto perguntava aos amigos se não havia o risco de “aquela coisa” lhe subir à cabeça.
Começo a achar que os receios do Modesto Pires tinham alguma razão de ser, a obsessão dos padres da Igreja Católica em relação ao sexo marca tanto a Igreja, estando no centro de tantas das suas decisões, que a explicação só pode corresponder aos receio do Modesto Pires, aquela coisa não sai por via das relações sexuais e sobe à cabeça dos nossos padres ciosos da sua castidade.

Um pensamento sobre “O QUE SE PASSARÁ COM A CABEÇA DO CARDEAL?

  1. Como declaração de interesses, afirmo que sou cristão católico apostólico romano. Ao contrário da maioria, olho para a Igreja não como seu mero seguidor, obrigado pelo código eclesiástico, mas com a permanente desconfiança que se deve ter com quem traiu no passado. Foi por isso que assisti à lufada de ar fresco que representa o Santo Padre, que muitas vezes constato ser um efectivo seguidor dos passos de Cristo, seja na quebra do protocolo, abeirando-se da população para a acarinhar num afago simples, dando alento aos que sofrem, atento a tudo e a todos; seja no discurso integrador e aglutinador. Para o Santo Padre, todos são poucos para espalhar a Palavra. Para a Igreja, poucos mas bons seguidores, só não sei para quê, porque essa não é a Palavra que Cristo nos deixou. Um Igreja que justifica a permanente e duradoura punição com a existência de códigos de conduta, comuns a todas as actividades sociais. Só tem um problema, é que de acordo com esse código de conduta, Cristo teria sido punido, excomungado, muito antes de ter sido entregue pela Igreja para a sua crucificação. Dizia o código que os leprosos deviam ser expulsos da comunidade. E que fez Cristo? Deu-lhes a mão, curando-os. Sentou-se com eles convivendo; também as mulheres de má vida deviam ser apedrejadas, por serem adúlteras. E que fez Cristo? “Aquele que não está em pecado, que atire a primeira pedra” disse. Temos uma Igreja mais preocupada em observar e fazer observar o direito canónico, do que em cumprir e fazer cumprir os ensinamentos do Senhor, desde logo em ser tolerante, misericordioso, como se concluisse que qum não observa os códigos, deve ser afastado da comunidade como os leprosos o eram.
    Repare-se que a Igreja, depois de um casamento ser anulado, ainda se acha com poderes e capacidade fiscalizadora para voltar a olhar para um caso decidido pelo Vaticano (o que desde logo diz muito do respeito pela Cúria e pelo Santo Padre) e decidir se havia justificação válida para a decisão, punindo aqueles que considera não terem, com a sanção de proibição de contactos sexuais para o futuro. Curiosa a justificação, segundo a qual o contacto do corpo e a intimidade pode constranger e carece de uma relação mais profunda antes de consumar a relação. Ou seja, primeiro tentem o amor platónico para ver se a relação é duradoura e sobrevive à provação da inibição de relações. Se sobreviver, então podem casar de novo. Para todos eles uma provação grave ainda: a inibição de comungar em Cristo. Ora aí está uma violação aos códigos que cometo frequentemente. Se o Pai me considera elegível para o receber, não é de certeza a Igreja que o vai impedir, tal como no silêncio da intimidade, só a Cristo o casal deve observar a Sua vontade. Mais uma decisão da Igreja que peca por ser inexequível, pois não pode obrigar a cumprir a decisão por ausência no acto, o que só faz aumentar quem dela não gosta e quer ver ferida de morte.
    O problema da Igreja é que está politicamente órfã. Desde sempre adoptou uma forma de estar com um severo código de disciplina moral, de que são exemplo a própria traição a Cristo; a atribuição de bruxos a quem a não venerava, com a consequente queima na pira; a junção aos valores da direita. E essa orfandade impede que acolha e defenda os valores de Cristo, como se fossem valores tendentes a acabar com ela. Para a Igreja, qualquer valor diferente do que ela defende, é uma ameaça à sua integridade, quando a Igreja tinha muito mais a ganhar com o acolhimento de todos.

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