Temos dois primeiros-ministros?

(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 05/12/2016)

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Quem o disse não foi nenhum dirigente ou militante do PS, Bloco ou PCP. Quem o disse foi um destacadíssimo militante do PSD, que por acaso já foi presidente dos social-democratas e que primeiro-ministro, embora por um período curto. Quem o disse foi Pedro Santana Lopes: “Acho que Marcelo Rebelo de Sousa escusa de fazer de conta que às vezes é primeiro-ministro. Não é. Ele é Presidente da República, são planos diferentes”. E mais à frente: “às vezes mete a foice um bocadinho em seara alheia”. Ora olhando para o comportamento do Presidente da República no dossier Caixa Geral de Depósitos, a pergunta é mais que legítima: Portugal é neste momento governado por dois primeiros-ministros?

Desde a escolha de António Domingues que o Presidente da República foi dando pequenos sinais de que não estava de acordo com a forma como o processo estava a decorrer. Fê-lo no preâmbulo do diploma que assinou, retirando os novos administradores da Caixa do estatuto de gestor público. Mas antes de assinar terá dito ao Governo, que tinha aceite essa condição exigida por António Domingues, que não assinava. Depois recuou e assinou o diploma, mas a partir daí a sorte de Domingues começou a ser traçada.

O diploma, publicado em pleno Verão, passaria eventualmente despercebido. Eis senão quando o comentador televisivo Marques Mendes, também destacado militante do PSD, levanta o caso no seu comentário televisivo dominical na SIC. A direção do PSD, a atravessar um trimestre difícil do ponto de vista dos dados económicos para poder atacar o Governo, agarra-se com unhas e dentes ao dossier Caixa e à questão da isenção da entrega das declarações de rendimentos e património no Tribunal Constitucional por parte dos administradores da Caixa. E volta à questão do nível salarial do presidente da CGD.

Curiosamente, também Marcelo faz críticas ao salário de Domingues. E poucos dias depois de Marques Mendes ter falado na SIC, e quando a polémica já ia alto, a 4 de Novembro, faz algo verdadeiramente inusitado para quem habita Belém: publica uma “Nota do Presidente da República sobre a Caixa Geral de Depósitos”, onde na prática se substitui ao Tribunal Constitucional e à decisão futura dos juízes, afirmando, preto no branco, por um lado que o decreto-lei nº 39/2016 que ele próprio promulgou “nada diz sobre o dever de declaração de rendimentos e património ao Tribunal Constitucional” (então porque foi alterado o estatuto de gestor público, senão exatamente para atingir esse objetivo?”) e que, por outro, “a Lei n.º 4/83, não foi revogada ou alterada pelo Decreto-Lei n.º 39/2016, de 28 de Julho”, pelo que “a obrigação de declaração vincula a administração da Caixa Geral de Depósitos”. Mas Marcelo acrescenta mais. Acrescenta nomeadamente que se o Tribunal Constitucional tiver uma “interpretação diversa da enunciada” e esta “vier a prevalecer, sempre poderá a Assembleia da República clarificar o sentido legal também por via legislativa”.

Ou seja, de uma penada Marcelo tirou o tapete às garantias que o Governo tinha dado a Domingues sobre a não obrigatoriedade da entrega das declarações de rendimento e património no Tribunal Constitucional; tentou condicionar as decisões do Tribunal Constitucional; e passou a mensagem aos deputados de que se o Tribunal Constitucional viesse a dar razão a Domingues e aos seus pares, a Assembleia da República sempre poderia fazer aprovar uma nova lei no Parlamento para obrigar à entrega de tais declarações. E foi o que o PSD fez de imediato, conseguindo, com o apoio do CDS e do Bloco, uma lei estabelecendo essa obrigatoriedade, mesmo antes do Tribunal Constitucional se pronunciar (o que ainda não aconteceu até ao momento).

Marcelo está neste dossiê em plena roda livre. Após a demissão de Domingues e a escolha de Paulo Macedo, o Presidente da República insiste em intervir sobre o tema. Hoje há frases para todos os gostos: “o segundo vinho é o melhor” (o que são palavras assassinas e de mau gosto para com Domingues, que negociou todo o processo muito complexo de recapitalização da Caixa); o processo de transição (de Domingues para Paulo Macedo) “está a correr muito bem” (como se estivesse a ser informado a todo o momento sobre o assunto); e “decide quem pode…” numa nova referência à decisão do Governo de manter os salários dos futuros gestores da Caixa idênticos aos da administração cessante, mas com os quais Marcelo não concorda.

Ora isto está muito, mas mesmo muito para lá dos poderes de um Presidente da República. Fazer declarações genéricas sobre a necessidade da estabilidade do sistema financeiro português é uma coisa. Imiscuir-se a fundo sobre uma questão que é da estrita responsabilidade do Governo (a nomeação da administração da Caixa Geral de Depósitos e as condições para o exercício do cargo) é outra bem diferente.

E a pergunta é porque o Governo tem contemporizado com esta situação. Pode ser por razões conjunturais: para Marcelo e António Costa, por motivos diversos, Pedro Passos Coelho é o homem a derrubar da liderança do PSD. E é indiscutível que o Presidente da República tem suportado a atual solução governativa e dado um inestimável apoio ao Executivo, quando salienta os bons dados económicos ou factos positivos em detrimento de indicadores menos favoráveis ou acontecimentos negativos.

A lua-de-mel, contudo, está a levar o Presidente a entrar nos terrenos do Governo. Por enquanto, ainda não há fricções. Mas quando as coisas começarem a correr mal – e um dia vão inevitavelmente correr – aí se verá que este conúbio lunar não é um bom caminho. É que se o Presidente se convence que também pode fazer uma perninha como primeiro-ministro, então é bom que alguém lhe lembre que o nosso regime não é presidencialista mas semi-presidencialista (coisa que ele sabe muito bem). Traduzindo em linguagem africana, cada macaco em seu galho. E neste momento há quem ande a saltar para o galho do outro.

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