(Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, 11/11/2016)
Nada fazia prever a derrota de Hillary Clinton, embora se admitisse que a sua eventual vitória não obtivesse um resultado impressionante. Aconteceu, com surpresa, o contrário. Agora, os analistas andam com a cabeça aos roldões, tentando perceber a natureza dos resultados. Os Estados Unidos alimentam estes sobressaltos. Desde a Comissão de Actividades Antiamericanas, nos anos de 60, dirigida pelo senador do Wisconsin, Joseph McCarthy, acolitado por Roy Cohn, os sobressaltos não param, com pequenos intervalos. Nesse período, o medo foi uma instalação permanente, levando à ignomínia nomes consideráveis, e à fuga para a Europa de criadores como Chaplin, entre dezenas de outros mais.
Nesses anos tempestuosos, eu era um jovem repórter indignado e escrevi dezenas de crónicas em O Século Ilustrado. Por esses tenebrosos tempos, publiquei dois livros, “O Cinema na Polémica do Tempo” e “O Filme e o Realismo”, de que me orgulho e resguardo. Mal ou bem, marquei o meu tempo, e o Diário da Manhã da época, assim como O Tempo Presente, revista assustadoramente fascista, denunciavam-me com persistente cuidado. Um desses perseverantes acusadores era um tal Domingos Mascarenhas, coitado, já lá está.
A crítica de cinema, por exemplo, tornara-se num baluarte da Resistência, e guardo desses tempos a terna recordação de um combate perigoso, imperioso e necessário. Conservo, ainda hoje, a amizade por José Vaz Pereira, que costumava rever na Versalhes, fins de tarde, um ou dois bolos e um bule de café com leite, atenuando, talvez, a discreta nostalgia desses tempos ominosos. Não há, nesta modesta confissão, nada de grandioso: apenas o relatório de um facto e a memória das amizades. Foi um tempo difícil por prolongado. Mas já foi.
O meu desprezo por gente como Reagan ou W. Bush advém do meu desejo imaculado de ser feliz. E a ascensão de Donald Trump, como manigância de uma ordem imperial, não me assusta. Cá estou, acaso cheio de desgostos e de idade, mas sempre prestes ao regresso dos sonhos, embalados desde miúdo.
O mundo está, outra vez, cheio de grandes esquecimentos e de lacunas culturais indesejáveis. Temos de nos recauchutar com as memórias pessoais e afectuosas, reabilitando os sonhos que ainda não se perderam. Queria também dizer-vos que as ameaças veladas ou declaradas do novo Presidente norte-americano são reedições do que outros disseram. Os outros já foram, levados pela graça do Senhor. Também tocados pela mesma graça, ou por outras, tanto faz, nós cá vamos indo. Na memória residem as coisas que não renegamos, e embalando no pensamento caloroso todos aqueles que nunca traíram.
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