(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 10/11/2016)

Daniel Oliveira
Os jornalistas tendem a sobrevalorizar o seu papel nos fenómenos políticos. Nisso, não são diferentes de todas as classes, que gostam de sublinhar a sua própria relevância. Há hoje, no entanto, algum saber consolidado que os desmente. Sendo importante o que é veiculado na comunicação social, a experiência pessoal dos indivíduos é muitíssimo mais determinante para as suas posições políticas do que aquilo que veem nos media. Se todas as televisões, jornais e rádios venderem diariamente a um desempregado que ele vive num país perfeito nem por isso ele deixará de ter o quotidiano de um desempregado. E como nas suas redes sociais (as antigas) contacta com outras pessoas com experiências semelhantes sabe que não está sozinho e isso, muito mais do que os noticiários, determina o seu voto.
Uma das perguntas que os jornalistas fizeram a si próprios, aqui e no EUA, perante o choque da vitória de Donald Trump, é como não o conseguiram prever. O choque não é totalmente honesto. Foram muitos os jornalistas que, não o tendo propriamente previsto, puseram essa possibilidade. Até porque, ao contrário do que se diz, não era preciso andar com uma lanterna à procura de apoiantes de Donald Trump. Na realidade, os apoiantes de Trump eram mais visíveis do que os de Clinton. Mesmo no dia das eleições, os jornalistas da CNN, numa maratona de diretos, entrevistaram, nas filas para votar, mais apoiantes de Trump do que de Clinton. A história do voto escondido é uma treta.
O que chocou os jornalistas não foi a imprevisibilidade da vitória de Trump, que não sendo a mais provável era, nas sondagens mais sérias e mais recentes, uma possibilidade aceitável. Há muito que Hillary Clinton tinha perdido a larga vantagem que chegara a ter sobre Donald Trump. O risco existia e era conhecido. O que chocou os jornalistas foi o facto de, apesar do claro apoio que Clinton teve dos jornais e televisões de referência, isso não ter sido determinante. O que chocou os jornalistas foi a sua irrelevância.
Mas não se entusiasmem os teóricos da conspiração da elite mediática contra Trump. Ele esteve longe de ser um cavaleiro solitário. Apesar de lhe ter resistido antes da nomeação, a Fox News deu-lhe todo o respaldo quando ele passou a ser o candidato republicano e dedicou-se, com os meios e a falta de escrúpulos que se lhe conhecem, a destruir Hillary Clinton. E a Fox News tem mais poder do que todos os jornais de referência juntos. Até porque o principal poder da comunicação social não é determinar quem vence e perde uma eleição. É o caldo cultural que ajuda a criar. E é impossível compreender a vida política norte-americana e o que aconteceu à sua direita sem compreender o papel da Fox News e do telelixo na cultura de massas e na agenda política. Assim como é impossível compreender a incomunicabilidade entre as várias Américas sem perceber como as suas fontes de informação e formação nem se tocam.
Que se desengane quem pensa que este é um problema exclusivo dos media tradicionais. Pelo contrário, ele foi exacerbado pelas redes sociais, que aparentam dar-nos um retrato mais vasto da realidade e são, na verdade, o maior engodo para quem queira ter uma noção plural do lugar onde vive. As pessoas seguem quem concordam, leem quem diz o que querem ouvir, sentem as reações dos seus pares, partilham a informação que seja favorável ao seu ponto de vista. O único contacto que têm com opiniões diversas é na sua rede de contactos pessoais ou profissionais, tal como antes de haver Internet, o que as limita ao espaço social em que vivem. A ideia de que as redes sociais nos dariam a possibilidade de viver num mundo mais diverso e complexo é falsa. As redes sociais tornaram mais fácil fechar a bolha em que irremediavelmente sempre vivemos. As redes sociais permitem escolher quem ouvimos. O que quer dizer que permite construir a nossa própria fantasia sobre a realidade.
A comunicação social mainstream tratou Donald Trump como se trata a peste. A Fox News radicalizou e estupidificou a política norte-americana, enchendo de lama todos os que se travessem no seu caminho, com especial empenho em relação a Hillary Clinton. Mas dizer que a comunicação social foi de alguma forma derrotada, na terça-feira, é otimista. É pensar que ela é um elemento central neste jogo. Aconteceu na comunicação social o que está a acontecer, nas redes sociais, com a generalidade das pessoas: aqueles a quem a direita chama de “liberal media” e a poderosa Fox News falaram para alguns para lhes dizer o que eles queriam ouvir, ouviu alguns para que eles lhe dissessem o que ela queria repetir. E neste processo não podiam, porque não queriam, compreender a realidade.
O mesmo fizeram os apoiantes dos dois candidatos, que criaram páginas onde partilharam informação que alimentasse as convicções que já tinham. O mesmo fazemos todos nós, construindo realidades virtuais que nos agradam mais. Isto não se passa apenas na América. Sente-se mais na América porque os nichos são suficientemente grandes para nunca se ter de sair deles. Vivemos, mais do que nunca, em bolhas.
Não há uma América real que votou Trump e outra, imaginada e elitista, que votou Clinton. Até porque a candidata democrata teve mais votos do que o republicano. Há várias, todas reais, que não se conhecem e não se querem conhecer. A maioria dos entrevistados que ouvi no dia eleitoral da CNN disseram que pretendiam votar Trump e que não conheciam ninguém que não votasse como eles. Imagino que viam a Fox News e por isso eram insensíveis a todos os argumentos contra o seu candidato. E o mesmo se passou com quem, tendo outras fontes de informação, não se quis aperceber da bem visível possibilidade de uma vitória de Trump.
Num mundo onde as pessoas procuram amigos e amantes compatíveis por meios tecnológicos, fazemos o mesmo com a democracia. Deixámos de lidar com a incompatibilidade e a viver em bolhas sociais e políticas. A vista, parecendo alcançar mais, ficou mais curta. E sem o contacto com a diferença a democracia torna-se pouco operativa, resumindo-se a um confronto distante entre culturas e modos de vida. Sem comunidade, somos estrangeiros uns para os outros. Quando estas realidades se encontram, numa eleição, espantam-se com a sua própria ignorância.
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