SORRI, ESTÁS NA TV

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 22/10/2016)

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                      Clara Ferreira Alves

Se Trump disser uma vez que as eleições estão a ser manipuladas por um grupo de clones numa caverna submarina, a CNN passa dias a discutir a asserção. Mantém a asneira à tona, de modo a que o próprio inventor da asneira se convença e a boutade passe a facto histórico.


Devia haver um imposto por cada asneira produzida em televisão. Na América, sobraria para sustentar todos os pobres e excedentários. A quantidade de asneiras produzidas nas generalistas e nos canais de notícias importantes, a CNN e a Fox News, daria não só para arranjar emprego a todos os eleitores de Trump que o perderam por causa da globalização e da automatização na idade pós-industrial como asseguraria a pensão e o alimento, a saúde e a atividade de todos os desempregados. Daria ainda para resgatar a dívida americana das mãos dos chineses, embora neste caso o dinheiro regresse aos Estados Unidos em consumos patrimoniais e patrocínios institucionais. A universidade de Harvard está cheia de pavilhões novos. Pavilhão do Conhecimento Li Xau Pi, Pavilhão da Inteligência Artificial Ming Ping, e por aí fora.

Escrevo antes do debate, mais exatamente na manhã do dia do debate de Las Vegas, promovido na TV como um combate de boxe entre Mike Tyson e Muhammad Ali, que nunca aconteceu por deficiência cronológica. Há uma excitação no ar. A televisão é o espelho da vida americana e teme-se a apoplexia em direto. Na CNN (americana) emite-se em histeria. Para uma cadeia de televisão com as receitas e audiências em curva descendente, esta eleição é o equivalente da primeira guerra do Golfo. Se a primeira invasão do Iraque elevou a CNN de Turner, esta eleição consolida a CNN da Time-Warner como a mais profusamente gárrula e desnorteada emissora de que há memória. Jon Stewart tem razão, a estupidez da CNN é imbatível. A CNN passou um ano a promover Trump, cada suspiro, cada frase, cada momento, cada esticão, cada beicinho, cada cabelo. Em pânico com o monstro que ajudou a criar, mas temendo a era Hillary e o reinado do princípio no news is good news, a CNN tenta estabelecer uma falsa equivalência entre candidatos, convidando comentadores descerebrados e apanhados na esquina a comentar cada asneira do candidato. Se Trump disser uma vez que as eleições estão a ser manipuladas por um grupo de clones numa caverna submarina, a CNN passa dias a discutir a asserção. Mantém a asneira à tona, de modo a que o próprio inventor da asneira se convença e a boutade passe a facto histórico. O que a CNN faz é legitimar o disparate, expandi-lo até ser reapropriado por outras plataformas, ansiosas por não ficarem de fora. Assim se cria um círculo vicioso de asneiras transformadas em argumentos políticos e pseudodemocráticos. Ao cabo de uns dias de propaganda, a CNN institucionalizou a asneira até conseguir um desmentido de alguém respeitável como o Presidente. Uma asneira de tanto repetida, ampliada pelas matilhas das redes sociais, torna-se uma verdade insofismável. E assim se cativam as audiências. Donald Trump só é explicável por este círculo vicioso e não apenas pelo descontentamento de meia dúzia de renegados da indústria do carvão em West Virginia. A Fox News, privada da cupidez de Roger Ailes, que Rupert Murdoch deixou finalmente cair por causa de uma queixa de assédio sexual, está dividida entre uma nova formulação menos primitiva e mais sofisticada e a versão Tea Party, que tantos milhões deu a ganhar. Diz-se que os filhos de Murdoch, agora à frente do império, nunca apreciaram Ailes ou a sua versão da política de terra queimada. Ailes está a ajudar Trump na campanha, e a Fox News está, como todo o Partido Republicano, em crise espiritual.

Nenhuma destas duas seria suficiente para encher os cofres com o imposto da asneira. As majors, CBS, NBC e ABC, no horário matinal, são as grandes produtoras do disparate. Os programas matinais, que atraem estrelas em decadência como Charlie Rose ou engenheiros políticos reciclados como George Stephanopoulos, são insubstituíveis no seu papel de grande nivelador do povo americano pelo mais baixo denominador comum. Numa estrita repartição entre as funções femininas, as apresentadoras, e as masculinas, os ditos, os programas da manhã gastam o horário em duas espécies de atividades. A cozinha e a dieta, cozer e comer bolinhos, e depois emagrecer, e a moda, os trapinhos, para as mulheres. A entrevista não-confrontacional, em tradução literal, para o homem. Este tipo de entrevista significa que nenhuma pergunta incómoda ou relevante é colocada ao entrevistado. Pelo contrário. A ideia consiste em proporcionar-lhe a oportunidade de se promover de um modo favorável e ao seu produto, um livro, um filme, ou qualquer coisinha que valha a pena e tenha sido negociada com os publicistas que garantem o acesso. Se Hitler fosse ao “Today”, Matt Lauer perguntar-lhe-ia se o interesse pelo extermínio se refletia no seu estilo de vida. “Temos fotografias da ‘Blondi’, a sua cadela. Não é adorável? Já agora, é verdade que não aprecia os judeus?”

A América só é explicável, nos seus aspetos mais cúpidos, por esta estupidez. Nós pensamos que a Netflix, o HBO e Colbert são a América. Não são. A América é mais aquilo do que isto.

2 pensamentos sobre “SORRI, ESTÁS NA TV

  1. Sim. Mas todos se curvam perante a América…todos “foram” a Nova Iorque, todos falam daquilo que se faz lá como se fosse o que de mais genial há no mundo….É risível !!!!

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