(Raquel Albuquerque, in Expresso, 17/09/2016)
Um estudo económico sobre as consequências da austeridade durante a crise desmente duas teorias: não foi a classe média quem mais perdeu e os mais pobres não escaparam aos duros efeitos.
Nem todos os portugueses foram atingidos com a mesma intensidade pelos efeitos da crise e da austeridade dos últimos anos. E, apesar de os cortes dos salários e das pensões não terem abrangido diretamente as famílias mais pobres, foram precisamente essas que sofreram as consequências mais graves da crise, perdendo um quarto dos seus rendimentos entre 2009 e 2014.
A conclusão surge no primeiro grande estudo sobre o impacto da crise e da austeridade nas desigualdades económicas em Portugal entre 2009 e 2014, coordenado pelo economista Carlos Farinha Rodrigues, com o apoio da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS). O estudo “Desigualdade em Portugal: Consequências Sociais do Programa de Ajustamento”, que será apresentado na próxima segunda-feira numa parceria com o Expresso e a SIC, parte dos últimos dados estatísticos disponíveis para analisar o período que engloba a chegada da troika, o pico da crise e a aplicação das medidas de austeridade (as conclusões do estudo estarão disponíveis no site www.portugaldesigual.ffms.pt, a partir de dia 19).
O que explica que as famílias mais pobres tenham sido as que mais perderam? “Múltiplos fatores contribuíram para este resultado”, sublinha o estudo, apontando por exemplo para a exclusão de milhares de trabalhadores do mercado de trabalho. “O facto de os mais pobres não terem sido diretamente afetados pelos cortes nos salários e nas pensões não chegou para compensar esses efeitos. Por outro lado, as alterações introduzidas nas transferências sociais, em particular no rendimento social de inserção, no complemento solidário para idosos e no abono de família, foram determinantes no aumento da pobreza.”
Para chegar a essa conclusão, a escala de rendimentos — nos quais se incluem salários, pensões e outras prestações sociais como o subsídio de desemprego — foi dividida em dez grupos, dos 10% mais pobres aos 10% mais ricos. Conclui o estudo que todos esses grupos perderam rendimentos entre 2009 e 2014. Porém, enquanto os 10% mais pobres perderam um quarto (25%) dos seus rendimentos, os 10% mais ricos perderam menos (13%). A perda dos grupos intermédios ficou entre os 10% e os 12%.
UM TERÇO DOS PORTUGUESES PASSOU POR UMA SITUAÇÃO DE POBREZA DURANTE PELO MENOS UM ANO ENTRE 2009 E 2012. ALGUNS PELA PRIMEIRA VEZ NA VIDA, CONCLUI O ESTUDO.
O coordenador do estudo e professor no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), Farinha Rodrigues, considera que estes resultados desmentem “dois mitos”: o de que os mais pobres não foram afetados pelas políticas de austeridade e o de que a crise foi particularmente sentida pela classe média. “A diminuição dos rendimentos foi profundamente desigual, em grande parte regressiva, e nem as classes médias foram as que mais sofreram com as políticas seguidas nem os mais pobres foram poupados no processo de empobrecimento.”
Os mais jovens, as famílias mais alargadas e com crianças, os desempregados e as pessoas com menos qualificações foram também dos mais afetados na perda de rendimentos. E há uma componente com um grande peso nessa perda: as remunerações do trabalho, afetadas em parte pela descida dos salários a partir de 2009. Essa descida afetou o sector público e o sector privado, mas com intensidades diferentes. Os dados do Banco de Portugal, citados pelo estudo, mostram que a queda no sector público foi muito mais acentuada, com as remunerações em 2012 a recuarem a níveis de 1995.
Além dos cortes nos salários e nas pensões, também o desemprego e a perda de prestações sociais empurraram para a pobreza muitas pessoas que até então lhe tinham estado imunes. Um quarto dos pobres em 2012 estava nessa situação pela primeira vez, mostra o estudo. E entre 2009 e 2012 um em cada três portugueses passou pela pobreza durante pelo menos um ano.
As desigualdades na distribuição dos rendimentos agravaram-se a partir de 2009, ao contrário do que tinha acontecido para trás. “O aumento contínuo do fosso que separa as famílias e os indivíduos mais ricos dos mais pobres constitui o principal traço da evolução das desigualdades ao longo destes anos da crise”, aponta o estudo. Porém, entre 2013 e 2014, registou-se uma melhoria num dos indicadores que medem a desigualdade. “É uma queda, mas é pequena e não é suficiente para que possamos fazer dela uma tendência para agora ou para os próximos anos”, disse ao Expresso Michael Förster, economista na OCDE (ver entrevista na pág. 27).
O que mudou desde 2014?
Os dados mostram que dois milhões de portugueses se encontravam em situação de pobreza em 2014, mais 116 mil do que em 2009. Mas o que mudou desde então? “Agora a situação é menos dramática do que há três anos. As pessoas nessa altura tiveram um choque e isso é terrível. Entretanto tiveram de se adaptar”, afirma Luís Barbosa, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, que também vê nessa adaptação um lado mau. “Assim vai-se empobrecendo.”
O presidente da Cáritas, Eugénio da Fonseca, não encontra “alterações significativas” no panorama dos últimos anos. “Pelo contrário, constatamos que as famílias estão cada vez mais empobrecidas. Algumas esgotaram as poupanças ou ficaram sem o subsídio de desemprego”, argumenta, sublinhando a importância que prestações como o rendimento social de inserção têm na vida de quem deles depende. “Mas o RSI não substitui o posto de trabalho e os rendimentos de trabalho. Não é uma medida para acabar com a pobreza, é uma medida que tenta minorar a severidade da pobreza.”
“CONSTATAMOS QUE AS FAMÍLIAS ESTÃO CADA VEZ MAIS EMPOBRECIDAS. UMAS ESGOTARAM AS POUPANÇAS, OUTRAS FICARAM SEM SUBSÍDIO”, DIZ O PRESIDENTE DA CÁRITAS
Em 2012 e 2013, a Cáritas recebeu pedidos de ajuda de pessoas “em picos de carência”. “Agora, as pessoas vêm mais vezes quando não têm recursos de qualquer espécie. Vemos, por exemplo, os pais de casais desempregados a pedirem apoio. São as poupanças dos avós que estão a conseguir manter os estudos dos netos e para isso os pais também se privam de bens alimentares. Isso significa que temos mais empobrecimento.”
As desigualdades no acesso às oportunidades de trabalho e a desigualdade “escandalosa” no acesso à justiça são apontados a dedo por Eugénio da Fonseca, que alerta ainda para o risco da pobreza estrutural. “Há pessoas com 30 ou 40 anos que não conseguem ter um trabalho por conta de outrem e que não têm uma reforma assegurada. Temos de perguntar: como asseguramos os níveis de subsistência destas pessoas no futuro?”
Uma das conclusões a que se chega no retrato sobre quem são hoje os pobres em Portugal é a de que um posto de trabalho continua a não ser suficiente para fugir da pobreza. É que se 20% dos pobres são desempregados, 22% têm emprego. A percentagem de trabalhadores pobres, tanto em postos de trabalho permanente como temporário, também aumentou entre 2009 e 2014. “Uma relação mais ténue e instável com o mercado de trabalho expressa no trabalho intermitente, precário ou a prazo pode igualmente constituir um fator gerador de pobreza”, conclui o estudo.
Ainda que a situação seja “menos dramática” do que há três anos, a realidade é hoje “mais diversificada”, defende Luís Barbosa. “Nos últimos anos, os problemas diversificaram-se. E talvez estejamos pior agora porque à medida que nos aproximámos destas realidades passámos a saber mais sobre elas. E na área da saúde, por exemplo, os problemas têm aumentado”, aponta numa referência aos problemas crescentes entre os idosos que tenderão a agravar-se com o envelhecimento da população. “Hoje estamos perante um problema de desigualdades mais complexo. E problemas diferentes precisam de respostas diferentes.”
550 pessoas apoiadas todas as noites pela Comunidade Vida e Paz no concelho de Lisboa. Cerca de metade são sem-abrigo. O número total não sofreu alteração entre 2013 e o dia de hoje, segundo a organização.
Jovens perdem 29% dos seus rendimentos
GERAÇÕES Se olharmos para a perda de rendimentos entre os vários escalões etários, os mais novos foram os mais afetados. Os jovens com menos de 25 anos viram os seus rendimentos cair 29% entre 2009 e 2014, enquanto os mais velhos, com 65 anos ou mais, sentiram uma perda de 7%.
“A CAUSA QUE LEVA AS PESSOAS A PEDIREM AJUDA É, SOBRETUDO, O DESEMPREGO. DEPOIS HÁ QUESTÕES DE SAÚDE MENTAL E CONFLITOS FAMILIARES. ÀS VEZES É DIFÍCIL PERCEBER ONDE O PROBLEMA COMEÇOU”
Henrique Joaquim,
Presidente da Comunidade Vida e Paz, associação que todas as noites faz distribuição de alimentos nas ruas de Lisboa
Mulheres com maior perda e pobreza
DESEQUILÍBRIO Os rendimentos das famílias em que as mulheres são o representante caíram 20% entre 2009 e 2014, enquanto no caso em que o homem é o indivíduo representante da família desceram 8%. A pobreza é superior nas famílias representadas por uma mulher (24,5%) do que por um homem (16,5%).
-20%
Perda de rendimento dos portugueses com ensino superior, entre 2009 e 2014. Ainda que um nível de escolaridade mais alto ainda assegure um melhor salário, ter um curso superior não bastou para evitar uma perda de rendimentos.
Rendimentos caem €1393 desde 2009
PERDA O rendimento médio das famílias portuguesas passou de 11.389 euros anuais, em 2009, para 9996 euros em 2014 o que equivale a uma diminuição em termos reais de 12,2%. A diferença é de menos 1393 euros. Os rendimentos do trabalho tiveram um peso importante: caíram 9% no mesmo período.
“EM PORTUGAL, UM MILHÃO DE PESSOAS VIVE COM MENOS DE 250 EUROS TODOS OS MESES. E DOIS MILHÕES VIVEM COM MENOS DE 420 EUROS, O QUE EQUIVALE A UM QUINTO DA POPULAÇÃO”
Isabel Jonet,
Presidente do Banco Alimentar contra a Fome
Pobreza das crianças desce em 2014
MELHORIA A taxa de pobreza das crianças com menos de 17 anos desceu de 25,6% para 24,8% entre 2013 e 2014, a primeira quebra desde 2010. Porém, a evolução refletiu um agravamento considerável entre 2011 e 2012, chegando ao valor mais elevado desde 2006.
32,3%
Taxa de pobreza das famílias com cinco ou mais pessoas. Entre 2009 e 2014, foram estas famílias que mais viram agravada a incidência de pobreza. Em geral, as famílias maiores são as que estão claramente mais vulneráveis.
Há quem tenha ganho
MELHORIA Ainda que o rendimento médio dos portugueses tenha descido neste período e em todos os decis da escala tenha sido registada uma quebra, o estudo mostra que houve quem tenha conseguido ver um ganho nos seus rendimentos: 12,6% dos portugueses tiveram um aumento dos seus rendimentos acima de 30%.