A clarificação matou o consenso

(Daniel Oliveira, in Expresso, 07/11/2015)

         Daniel Oliveira

                     Daniel Oliveira

Francisco Assis é contra um governo de Costa com o apoio dos partidos à sua esquerda. Quer ver o PS a fazer “uma oposição responsável”. O problema é que se o PS se opuser ao governo de Passos ele morre daqui a três meses, com o orçamento chumbado. Como suponho que Assis não quer deixar o país sem governo, o que ele realmente defende é que os socialistas viabilizem e sustentem o Governo de Passos e Portas nos próximos quatro anos. A razão por que não o diz de uma forma clara é evidente: sabe o efeito que tal posição teria junto do eleitorado e da militância socialista.

A chegada de Passos Coelho à liderança do PSD foi aplaudida pelos intelectuais da direita mais liberal como um sinal de clarificação ideológica. Passos confirmou-o na sua proposta de revisão constitucional, na retórica regeneradora de um povo piegas e habituado a viver protegido pelo Estado, na política social e de educação, na estratégia de contração de rendimentos para tornar a nossa economia mais competitiva. A isto temos de juntar o total desprezo que demonstrou pelo “partido da bancarrota”, apontado como responsável absoluto pela crise financeira e económica e dispensado de todos os debates fundamentais. Quando se fala da história de 40 anos de democracia não se pode esquecer o que mudou nos últimos cinco. Mudaram os dois elementos agregadores do consenso ao centro: a Europa e o Estado social. Da Europa já não vêm apenas boas notícias. Já não chega dizer que se é europeísta ao som do ‘Hino à Alegria’. Tem de se explicar que Europa se quer. Quanto ao Estado social, o PSD abandonou todos os elementos que o definem: defende o fim da sua universalidade, bate-se por uma pretensa “liberdade de escolha” que torna as funções sociais do Estado meramente complementares e quer substituir a Segurança Social por instituições de caridade. A ausência de alternativa a este discurso tem resultado em sucessivas derrotas do centro-esquerda por essa Europa fora. Em França e noutros países do norte da Europa os socialistas perdem para a extrema-direita. Em Espanha, Grécia e Portugal perdem para a sua esquerda. O PS só não ficou em primeiro porque BE e PCP tiveram 20%. Costa ou trava esta sangria ou nunca mais o PS governará. Estará destinado a ser a bengala de governos minoritários de direita, como Assis propõe.

Muita coisa mudou nos últimos cinco anos. A construção do Estado social, que mantinha o sistema partidário coeso, entrou em refluxo. A Europa já não é uma promessa de prosperidade. É por isso que o apoio do PS a um governo do PSD se tornou anacrónico e insuportável para a maioria dos eleitores socialistas. É por isso que Costa, Catarina e Jerónimo passaram a campanha a ouvir uma palavra: “Entendam-se!” Não foi Costa que descobriu a pólvora. Não foram Catarina e Jerónimo que repentinamente mudaram.

Sim, houve um contexto — maioria de esquerda com a impossibilidade de dissolver o Parlamento —, mas foi a austeridade que destruiu os consensos que existiam. E quando a sociedade muda os partidos reagem. É por isso que, apesar do espanto mediático, o PS não está realmente partido, o sectarismo não se sente na militância bloquista e comunista e a direita não está na rua. Vivemos apenas as consequências do que aconteceu nos últimos quatro anos.

4 pensamentos sobre “A clarificação matou o consenso

    • Os 43% de abstenção não são para enfeitar, são para empatar. Ninguém se abstém para ser ouvido, a menos que seja completamente parvo. É de toda a justiça que ninguém ouça quem nada quer dizer.

  1. Cá para mim foi o Daniel de Oliveira que criou as condições para a notável
    mudança que diz verificar-se! Óbviamente, o camarada Jerónimo teve que
    sair da sua quinta por imposição do bom Povo que, até dizia não merecer
    a pena votar! Espera-se que, a vingar o acordo de esquerda, isso traga
    de novo às urnas todos ou muitos dos que deixaram de votar!!!

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