Quem festejou a clarificação ideológica de Passos que apanhe os cacos

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/11/2015)

         Daniel Oliveira

                     Daniel Oliveira

Tomás Albergaria partilhava na sua página de facebook, ainda no dia 15 de outubro, um vídeo da página “PS – Partido da Bancarrota”. Ativista contra o “governo de esquerda”, deixa neste seu espaço um texto de João Carlos Espada e um vídeo de Assunção Cristas para apoiar a sua posição. 15 dias depois é um dos organizadores do cordão humano que queria juntar as sedes do PS, PSD e CDS. Era isso que tinha anunciado nos seus cartazes mas apenas conseguiu, e mal, unir a Assembleia da República ao Largo do Rato. Uma rua chegou para fazer a festa para umas poucas centenas de pessoas. Não era preciso ir às suas páginas para perceber que estão muito longe de um dos partidos que supostamente querem unir. Aquilo mais parecia uma manifestação dos “Juntos pela vida”. Mas ainda assim, os organizadores queriam que o PS (o tal “partido da bancarrota”) se entenda com a coligação PSD-CDS. Querem “unir o que está dividido”.

Este suposto movimento da sociedade civil, a que várias “personalidades públicas” deram apoio mas “preferiram não dar a cara publicamente”, é apenas a caricatura daquilo a que temos assistido nas últimas duas semanas: os mesmos que nos últimos quatro anos acusaram os socialistas de tudo o que de pior aconteceu a Portugal, que reduziram uma crise europeia ao despesismo PS e o PS ao caso Sócrates, vieram a terreiro explicar o lugar do PS é a seu lado. Nas redes sociais dá para fingir que há uma sociedade civil entre o PS e o PSD a exigir que Costa dê a mão a Passos. Na rua fica mais difícil. Porque essa “sociedade civil”, tirando uma pequena margem do PS, que todos, incluindo os próprios, sabem ser francamente minoritária, não existe. A tal “sociedade civil” que exige ao PS que viabilize o governo de Passos Coelho e de Paulo Portas é basicamente composta por militantes e eleitores da coligação de direita. Haverá a quem a solução de esquerda não agrade. Mas, tirando os que querem manter artificialmente uma maioria política que já não existe, todos compreendem como o entendimento entre o PS e Passos e Portas seria, depois destes quatro anos, um absurdo. Sabem que nunca poderá ser Passos a liderar um governo que dependa do apoio de um partido de esquerda.

A primeira razão é a mais evidente: durante quatro anos Pedro Passos Coelho desprezou, com uma assinalável arrogância, tudo o que pudesse vir do PS. Nem sequer se dava a trabalho de informar os socialistas sobre as suas conversações com a Europa. O PS era o “partido da bancarrota” e tinha de pagar por isso. Durante quatro anos Passos só se lembrou de conversas com o PS para lhe exigir consensos em torno das propostas do próprio PSD. Sobretudo as mais difíceis de vender aos portugueses. Foi o caso da exigência de corte de 600 mil euros na segurança social. Passos decidia onde e o que se corta, ao PS caberia ajudar a decidir como o fazer. Fora isto, restavam os insultos, as recriminações sobre o passado e pouco mais. Apanhados em minoria descobriram o parceiro natural: o “partido da bancarrota”. Passos Coelho a pedir convergência com o PS soa tão bem como Howard Stern a pedir decência na televisão.

Mas esta é a razão mais emocional. O mais importante é aquilo em que se transformou o PSD. Uma das coisas que surge na página do tal cordão de direita para unir o centro é uma foto de Soares com Sá Carneiro. Acontece que aquilo em que acredita Passos Coelho é muitíssimo diferente daquilo em que acreditava Sá Carneiro. Talvez fosse um ar do tempo, mas o PPD de Sá Carneiro ajudou, com o PS e na base de um consenso nacional, a construir o Estado Social que temos. O Serviço Nacional de Saúde, a Escola Pública, o serviço de pensões. Aceitou uma ideia basilar do Estado Social: a sua universalidade. Defendeu uma Escola para todos, garantida pelo Estado, e nunca propôs a caridade no lugar do apoio social do Estado. Mesmo Cavaco Silva acompanhou esta matriz que, não se podendo chamar social-democrata, estava alinhada com aquilo a que comummente chamamos modelo social europeu.

Não precisamos de ir a pormenores para descobrir as diferenças. Passos Coelho deixou logo muito claro que não era essa a sua praia. Logo quando concorreu à liderança interna, com uma agenda ideológica que mudava a identidade do PSD. Quando, ainda antes das eleições, escreveu um artigo no “Público” em que comparava o que o Estado gastava em funções sociais antes do 25 de Abril e hoje, afastando-se desse legado perdulário do seu próprio partido. Quando apresentou uma proposta de revisão constitucional que representava uma rutura com o consenso político ao centro. Quando Nuno Crato aumentou as transferências para os contratos de associação com colégios privados, cortou no financiamento ao ensino público e deixou muito claro que um e outro eram complementares. Quando Mota Soares começou o processo de substituição dos apoios sociais públicos para organizações de cariz caritativo e arrasou com o RSI. E poderia continuar parágrafos atrás de parágrafos. Mas todos sabem bem do que estou a falar. De tal forma que foram muitos os que, no PSD, se sentiram traídos quanto à identidade do seu próprio partido.

A vitória de Passos Coelho nas eleições internas do PSD foi aplaudida pelos intelectuais da direita mais liberal. Era um momento de clarificação ideológica. Eram os velhos vícios do estatismo de esquerda que estavam a ser vencidos. Quando apresentaram a proposta de revisão constitucional e quando levaram a cabo a sua agenda ideológica na educação ou na segurança social, e sempre que Passos dedicou ao país sermões sobre as virtudes do risco e da crise, ainda mais vibraram os seus apoiantes. Quando desprezou o “partido da bancarrota”, acharam que foi de mestre. Ao longo de quatro anos Passos Coelho cavou, conscientemente, um fosso entre o centro-direita e o centro-esquerda. E os seus mais próximos acharam que estava a fazer um excelente serviço.

Este fosso não está a crescer apenas em Portugal. A contrarreforma a que assistimos na Europa destruiu um consenso nascido no pós-guerra. Mas em Portugal esta separação fez-se com uma arrogância pouco habitual.

Julgar que quatro anos de tanta agressividade ideológica, política e social, enquadrados num ataque europeu ao legado socialista e social-democrata, deixaria tudo como antes é pior do que ingenuidade. É cinismo. O consenso do centro era o consenso em torno de um determinado modelo social que a esmagadora maioria do país desejava. Foi Passos Coelho que rompeu esse consenso.

Os entendimentos à esquerda nascem de uma pressão dos eleitores de esquerda, que sentiram isso mesmo. Quem festejou a clarificação ideológica de Passos Coelho que apanhe agora os cacos.

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