(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 30/05/2015)
Segunda-feira passada, uma notícia de “Le Monde” rezava assim: “O Estado Islâmico avança e os Estados Unidos não se mexem”. Podia ter escrito antes “A Europa não se mexe”, ou “A França não se mexe”, ou “A Inglaterra não se mexe”. Mas, ao atribuir a responsabilidade de uma resposta exclusivamente aos Estados Unidos, o jornal francês mostrou que certas coisas nunca mudam: quando há um trabalho sujo e difícil para fazer, quando é preciso arriscar vidas, a Europa confia que os Estados Unidos façam esse trabalho — mesmo que a ameaça ocorra dentro ou junto das fronteiras da Europa.
Verdade se diga que, neste caso, a responsabilidade dos EUA vem de trás: a emergência, na Síria e no Iraque, do Estado Islâmico, é uma consequência directa da irresponsável e criminosa Segunda Guerra do Iraque, lançada por esse infeliz ex-Presidente americano George W. Bush. Os que — aqui, como em diversas partes do mundo — usaram as suas tribunas, o seu poder e a sua influência sobre as opiniões públicas para as fazer engolir as mentiras fabricadas pela Administração Bush a fim de justificar uma guerra injustificável e sem sentido, bem podem dormir o sono dos irresponsáveis, mas não o dos justos: os 400 mortos que o EI assassinou nos três primeiros três dias após a conquista da cidade síria de Palmira, são apenas as últimas vítimas à data de uma ideologia de violência demencial que o mundo jamais tinha testemunhado, nem sequer sob o terror nazi. E tornada possível como sequela dessa guerra, entre todas, exemplo da leviandade dos decisores políticos.
Verdade se diga também que a França foi um dos países que, no Conselho de Segurança da ONU, compôs a maioria que resistiu ao pedido de invasão do Iraque apresentado por George W. Bush, tornando assim a intervenção ilegal à face do direito internacional. Dominique de Villepin, então ministro dos Estrangeiros da França, chegou a dizer ao secretário de Estado Colin Powell que as alegadas provas da produção de armas de destruição maciça, incluindo nucleares, por parte do regime de Saddam Hussein, não passavam de “uma falsificação grosseira” — (como o próprio Powell admitiria mais tarde, confessando-se enganado pelo seu próprio Governo). Também o então secretário do Tesouro americano, Paul O’Neill, declararia depois que, assim que tomou posse (em 2001 e através de uma nunca antes vista eleição fraudulenta), Bush já vinha determinado a invadir o Iraque, tendo pedido aos serviços secretos que lhe descobrissem um pretexto. O pretexto foi a inventada existência das tais armas de destruição maciça, que os inspectores da ONU no terreno e a Agência Internacional do Nuclear reiteradamente desmentiram. Mas que o célebre “quarteto da guerra” da cimeira dos Açores (Bush, Blair, Aznar e Barroso) juraram ser verdadeiro. Grandes líderes enganaram-se muitas vezes e algumas delas com consequências trágicas. Churchill cometeu um erro de estratégia militar que custou centenas de milhares de vidas durante a I Guerra Mundial, em Gallipoli, e um erro político com funestas consequências na Índia. Mas foram erros e pagou por eles: o primeiro, com a sua demissão do Almirantado, o segundo, com a perda das eleições inglesas. A diferença é que o quarteto dos Açores não cometeu erros, cometeu crimes políticos, mentindo de perfeita consciência e sem curar de avaliar as consequências da sua decisão. Mas, excepto Aznar, todos foram perdoados e premiados: Bush com a reeleição para um novo mandado, Barroso com a presidência da Comissão Europeia e Blair com o cargo de represente da UE para o Médio Oriente — onde nada fez senão algumas visitas faustosas a Jerusalém, assim acrescentando uma fortuna acumulada a dar conferências e servir de conselheiro/facilitador a alguns governos pouco recomendáveis.
Os EUA vêem-se envolvidos num atoleiro político-militar em que os inimigos ocultos são os seus aliados oficiais e os aliados ocultos são os inimigos oficiais
Pior do que a invasão do Iraque e do prazer propagandístico de ir destruindo e eliminando as várias cartas do baralho com que os americanos classificavam as principais figuras do regime de Saddam, foi a destruição do Exército e do próprio Estado iraquiano e o reatar do clima de guerra civil entre sunitas e xiitas, que no passado já dera origem a uma guerra entre o Irão e o Iraque. O subsequente processo de “nation building” de um Iraque “livre e democrático”, feito em cima do papel por uma trupe de ignorantes profissionais aliada a grupos de empresários especializados na reconstrução de países destruídos, produziu os mesmos trágicos efeitos que antes já se tinham visto no Kosovo. Mas com várias agravantes: o Iraque, criado pelos ingleses após a I Guerra Mundial, é um aglomerado caótico de três nações, separadas por ódios tribais milenares e diferenças culturais e religiosas irreconciliáveis, que a ditadura de Saddam, apesar de tudo, mantinha como um arremedo de Estado — e que os americanos, pura e simplesmente, desprezaram. Tornou-se assim um país inviável, onde, como bem notou há dias o secretário da Defesa americano, “o Exército não quer combater o Estado Islâmico”. E como haveria de querer se os americanos decapitaram as chefias e, facilitando o regresso dos xiitas ao poder, instalaram o confronto nas próprias fileiras militares?
E foi assim, sobre as ruínas de um país artificialmente criado pelos interesses pós-coloniais e que, com a sua guerra particular, George W. Bush devolveu ao estado tribal, que o Estado Islâmico, finda a paciência dos contribuintes americanos para os custos do “nation building”, encontrou o vazio ideal para se instalar e, pelo terror sabiamente amplificado pelos modernos canais informativos das redes sociais, se ir espalhando como peste. E, ironia das ironias, só lhe resistem os curdos (que os americanos não querem armar para não ferir as susceptibilidades da Turquia, membro da NATO e apoiante discreto do EI), a Síria de Assad (declarado terrorista pelo Congresso americano), e o inimigo número 1 da América e do mundo livre — o Irão, que é o único país estrangeiro com tropas no Iraque, a combater os sunitas do EI, em defesa dos xiitas que os assassinos do EI degolam todos os dias. E quem protege o EI e o apoia? Os mesmos que protegeram e apoiaram a Al-Qaeda: a Arábia Saudita e o Qatar. Ou seja: os EUA vêem-se envolvidos num sarilho impensável e num atoleiro político-militar em que os inimigos ocultos são os seus aliados oficiais e os aliados ocultos são os inimigos oficiais. Se assumirem a contradição e aceitarem os que querem combater o EI, terão de legitimar a ditadura sanguinária de Assad, na Síria, e o Irão dos ayatollahs, fazendo vista grossa aos seus esforços para se dotar da bomba nuclear. E, de caminho, arriscam-se a alienar de vez a sua aliança com a Arábia Saudita e a ficarem cativos da chantagem de Israel. Se, pelo contrário, cruzarem os braços como “Le Monde” os acusa, e ficarem à espera que seja o inexistente Exército iraquiano a resolver o problema, arriscam-se a ver o EI tomar conta do Iraque e depois da Síria, tornando-se a nova potência regional e de uma irracionalidade nunca vista.
Eis onde nos conduziu a estupidez e o narcisismo de George W. Bush, ansioso por se declarar “um Presidente em guerra” e assim fazer esquecer a sua oculta e nada honrosa folha de serviço militar durante a guerra do Vietname — que, segundo os poucos dados oficiais disponíveis, passou ao serviço da Força Aérea… do Texas. Ele era o que era e mais não prometia; mas os seus aliados de circunstância bem que se podiam enterrar de vergonha ou remorso. Milhares de pessoas inocentes morreram devido ao seu ‘erro’ de avaliação, em 2004; milhões abandonaram as suas casas e as suas vidas para fugir ao terror do EI e naufragam no Mediterrâneo a tentar chegar à Europa que os traiu; e lá, nas terras da antiga Mesopotâmia, cresce e espalha-se um monstro que ainda olhamos como curiosidade exótica, antes de se transformar num pesadelo próximo e real. E os responsáveis políticos por isto dedicam-se à pintura, às conferências milionárias e às sinecuras universitárias onde dão lições sobre como gerir o mundo. Como se nada fosse com eles.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia