(Daniel Oliveira, Expresso Diário, 06/05/2015)
Nos últimos anos têm sido várias as figuras públicas que passaram pela experiência extrema da prisão. Ao contrário do que acontecia no passado, a experiência carcerária destas pessoas não resulta diretamente da sua atividade política. Nem do combate ao regime ditatorial, nem pela participação, justa ou injustamente tratada como “terrorista”, em movimentos radicais, já depois do 25 de Abril. Não vou aqui analisar a justiça destas prisões. Muito menos a razão pela qual se tornou mais habitual figuras com poder mediático passarem pelas prisões nacionais. Este texto é para falar de outra coisa: da possibilidade que estas pessoas nos dão, por terem acesso facilitado à comunicação social, de conhecer as condições nas nossas prisões.
A revista “E”, do Expresso, publicou, esta semana, um excelente conjunto de testemunhos de figuras públicas que experimentaram o cárcere. João Garcia não se preocupou, e bem, em selecionar com base no tipo de crimes pelos quais foram acusados, pelo momento histórico em que essa experiência aconteceu, ou pela natureza jurídica da medida de coação. De Domingos Abrantes a Carlos Cruz, de Isabel do Carmo a Paulo Pedroso, de pessoas que foram presas antes do 25 de Abril a pessoas que estão presas agora, correu várias experiências diferentes. O que interessava era visitar a experiência extrema da prisão pelos olhos de quem não fez do crime e da vida prisional uma “carreira”. Uma oportunidade rara, quando sabemos que, vivendo na total invisibilidade, a população prisional é a quem mais facilmente pode sofrer, em silêncio, todos os abusos. Poucos são os que querem saber deles e levantarão a voz pelos seus direitos.
O CIDADÃO RECLUSO DEVE SER AINDA MAIS PROTEGIDO DE POSSÍVEIS ABUSOS DE PODER. PORQUE TEM AINDA MENOS CAPACIDADE DE SE DEFENDER DO QUE O CIDADÃO COMUM
O retrato é impiedoso para o nosso sistema prisional. Percebe-se que pouco mudou nos últimos 40 anos. Na realidade, na forma como se olha para a função da prisão, pouco mudou no último século. A lógica continua a não ser a de reintegração, mas a da despersonalização absoluta. Não há, mesmo para pessoas com quem o trabalho seria mais fácil, grande esforço para ajudar a reconstruir vidas. Pelo contrário, ele parece ser o de anular personalidades.
A coisa mais interessante, e que corresponde a um elemento comum de quase todos os depoimentos, é a arbitrariedade. Os guardas prisionais e, acima deles, o chefe dos guardas, podem usar as regras mais ou menos como entenderem. E os regulamentos têm regras absurdas, que em vez de aproximarem o recluso das que lhes vão ser impostas no exterior, os afastam. Dirão que é assim mesmo que tem de ser. Que a prisão, retirando a liberdade às pessoas, não é um espaço de democracia. Acontece que o oposto da liberdade, que lhes foi limitada, não é a arbitrariedade. A limitação da liberdade de um condenado não pode corresponder à total liberdade do seu carcereiro. Pelo contrário.
Estando limitado nos seus direitos de cidadão recluso (não deixa de ser um cidadão), vendo reduzida a sua capacidade de denúncia, deve ser ainda mais protegido de possíveis abusos de poder. Porque tem ainda menos capacidade de se defender do que o cidadão comum. Quando decidimos que um cidadão ficou limitado nos seus direitos temos de tornar as regras ainda mais previsíveis. As que se aplicam a ele e as que se aplicam a quem tem poder direto sobre ele. Um criminoso tem de aprender a aceitar regras coletivas de convivência. E para essa aceitação se tornar, com o tempo, voluntária, as regras têm de resultar de valores compreensíveis.
Se, como contam vários dos entrevistados, cada ordem vem acompanhada, na sua explicação, de um “porque sim” ou de um “porque não”, o que a sociedade transmite aos reclusos é o oposto do que deve transmitir. Se um preso pode ter, na cela, uma consola para jogar mas não pode ter um computador para escrever, e a razão disto é “porque sim” e “porque não”, o que se diz é que o cumprimento das regras, em vez de corresponder a uma necessidade coletiva, corresponde à mera aceitação submissa de um capricho de quem manda. E aos caprichos de quem manda devemos, como sabe qualquer pessoa bem formada, desobedecer. Mais: trata-se de um processo de infantilização do recluso que, em vez de o preparar para sociedade, o faz regredir nas suas capacidades morais e sociais.
Nas sociedades democráticas, a prisão não é uma ilha ditatorial nem um ponto de chegada para aniquilar a personalidade de um individuo. É um mal necessário. Um lugar onde se tenta, na medida do possível, reabilitar o criminoso para que possa regressar à sociedade sem representar um perigo para ela. Não espero que uma prisão seja um hotel ou uma colónia de férias. Mas espero que retire do crime quem ainda dele pode sair. O que implica não alimentar, no cárcere, uma cultura avessa ao domínio da lei, onde as regras não têm sentido e quem manda faz o que quer. A prisão tem de ser um lugar de leis justas, adequadas e compreensíveis, não um espaço da arbitrariedade e de poder despótico.
Que lacrimoso me faz este desvelo do do; não consigo suster o corrimento lacrimejante com fonte no coração e estuário num charco gigante.
Todos, todos que acompanham a longa perseguição que vai agora no capítulo da grande caçada com o leão enjaulado no circo montado em Évora, percebem a nascente desta nova grande preocupação do do; o tratamento discricionário sobre os presos na cadeia.
Acerca do porquê de prisões arbitrárias e discricionárias nada, nicles, zero; porque, no caso de sua inspiração, ele próprio teve um contributo não irrelevante.
Olha do não me faças chorar senão deixo de olhar-te na tv como já não consigo olhar outros.