Je Suis “Le Monde”

(Daniel Oliveira in “Expresso Diário”, 19/02/2015)

 Daniel Oliveira

Daniel Oliveira

O “Le Monde” publicou, como a generalidade da imprensa europeia, a “lista Falciani” (conseguida pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação), com os nomes de proprietários de contas no banco HSBC. O multimilionário Pierre Bergé, um dos proprietários do jornal, mostrou o seu incómodo: “Não foi para isso que eu permiti ao jornal adquirir a sua independência. São métodos que eu reprovo. (…) Não quero comparar o que aconteceu agora com o que acontecia no passado, mas delação é delação. É lançar o nome das pessoas às feras. E tudo isso me parece gratuito”. Sendo proprietário do jornal e estando em causa a divulgação de nomes de milionários, é impossível não ouvir estas afirmações como uma forma de pressão. Mas se houvesse dúvidas, a frase “não foi para isso que eu permiti ao jornal adquirir a sua independência” deixa tudo claro. Quem “permite” pode sempre deixar de permitir.

Matthieu Pigasse, outro acionista do “Le Monde”, foi um pouco mais subtil: “É necessário encontrar um justo equilíbrio entre a divulgação de informações de interesse geral, de interesse público, e não cair numa forma de maccarthismo, de delação fiscal”. De repente, quando o alvo é quem tem dinheiro, a notícia passa a ser “delação”. Perante o jornalismo voyeurista que hoje conhecemos é comovente esta sensibilidade seletiva que alguns têm em relação às violações ao direito à privacidade alheia. Merece mais respeito a conta bancária do milionário do que o segredo sexual do político. Isto, claro, já nem falando de qualquer privacidade do cidadão comum.

O diretor interino do jornal, Gilles van Kote, reagiu: “os acionistas não têm nada a dizer sobre os conteúdos editoriais”. A Sociedade dos Redatores do Le Monde foi mais dura: “Como é habitual, Pierre Bergé violou o pacto que fez em coautoria com outros acionistas em 2010. O papel dos acionistas é definir a estratégia da empresa e não tentar influenciar a direção de informação.” No entanto, os nomes deixarão, por serem menos relevantes, de ser divulgados. Não estou em condições de opinar, por desconhecer quem fica de fora, se essa é a verdadeira razão da interrupção da divulgação.

Este debate faz-se em França e com o “Le Monde”, um jornal de referência e cioso da sua história, credibilidade e independência. Cá (com honrosas exceções) ou em jornais que deem menos valor à sua credibilidade dificilmente um proprietário faria estas declarações públicas. Na maioria dos casos, elas seriam feitas em privado e resolveriam logo ali o problema.

Há quem acredite que o direito de propriedade e a liberdade de mercado estão ao mesmo nível das restantes liberdades fundamentais. Mais do que isso: que são a principal garantia de liberdade. Assim, os riscos para a nossa liberdade só podem vir do Estado ou de ameaças mais extremas, como foi o caso dos atentados em França e na Dinamarca. Como se o dinheiro não tivesse, ele próprio, interesses específicos que podem pôr em perigo a nossa liberdade.

Esta fé tem como principal argumento a ideia de que a única motivação de um empresário é o lucro. E que a única motivação de proprietário de meios de comunicação social é o lucro daquela empresa de media. Basta olhar para várias opções políticas e editoriais dos nossos jornais para duvidar seriamente disso. Na realidade, não está escrito em lado nenhum que o único objetivo de um capitalista seja o lucro. Se me é permitida a lapalissada, o objetivo de um proprietário de uma empresa é o que ele quiser que seja. Pode ser o lucro ou outra coisa qualquer. E essa coisa qualquer pode ser o poder. Mais: o seu lucro, em tantas outras empresas que tenha, pode depender desse poder. Incluindo o poder político. É, na realidade, o que acontece com a maioria dos proprietários de meios de comunicação social.

Vou ainda mais longe do que isto. Quem detém empresas tende a ter interesses próprios da sua posição. E ainda mais a maioria dos detentores de meios de comunicação social, geralmente integrados em grandes grupos económicos. O que quer dizer que aquele proprietário tem interesses diversificados, nem sempre evidentes para quem leia o jornal ou veja a televisão. Mais: na maioria dos casos, o negócio de media é o menos importante e lucrativo do empresário. E facilmente ele dispensa os magros lucros que lhe dá para o pôr ao serviço de outros interesses empresariais que tenha.

Mas também tem interesses de grupo. Um grande empresário tende a querer impostos o mais baixos, já que paga mais do que recebe. Tende a querer leis laborais mais favoráveis para o empregador. Prefere ver alguns setores com grande potencial de negócio privatizado e não nas mãos do Estado. Prefere mais abertura ou mais protecionismo, conforme o momento económico e o seu ramo de negócio. E tende, se tiver essa possibilidade, a promover politicamente quem defenda esses interesses. Não é preciso ser quem lhe faça fretes. Basta ser quem concorda genuinamente com as suas posições.

A liberdade de imprensa não é uma garantia democrática. É uma cedência do patrão.

Estou até a colocar as coisas de forma muito direta. Elas podem ser ainda mais difusas do que isto. Os grandes empresários e os gestores de topo vivem num determinado meio social. Com os seus valores específicos. Não é comum encontrar-se um esquerdista na Quinta da Marinha. Como ninguém, incluindo os empresários, funcionam com uma racionalidade mecânica pura, sem que as suas convicções interfiram nas suas opções, e como, no negócio de media, a informação é financeiramente pouco relevante, é muito fácil que os seus valores determinem a linha editorial que gostariam de ver no órgão de informação que detém.

Vejo muitos comentadores mais à direita queixarem-se do facto das redações serem maioritariamente de esquerda. Devo dizer que, como sabe qualquer pessoa que trabalhou numa redação, isso é irrelevante. Se já o era, então agora, com o processo de proletarização e precarização dos jornalistas, ainda é mais. O que conta é o editor e o diretor. São eles e não o coletivo do jornal que determina a linha editorial de um jornal. A partir daí, não é precisa qualquer interferência direta. Basta que o diretor pense como pensa quem lhe paga. E quem escolhe o diretor, ao contrário do que acontece muitas vezes com os jornalistas, é mesmo quem lhe paga.

A verdade é que o grande engano de muitas análises sobre a independência da comunicação social face aos vários poderes é acreditar-se que o dinheiro só quer mais dinheiro. E esse é um enorme equívoco sobre o próprio capitalismo. Se assim fosse, um homem deixaria de querer mais dinheiro quando já não o conseguisse gastar em várias gerações da sua família. O que o dinheiro dá a quem o tem é poder. O dinheiro é poder e todo o poder quer mais poder. Até porque só com mais poder se consegue mais dinheiro. A começar pelo poder político.

O negócio da comunicação social está exatamente na porta onde o dinheiro e poder político se encontram. Na maior parte dos casos, só marginalmente é um negócio pelo dinheiro. Muitas das vezes dá mesmo prejuízo. O Estado não é menos neutral do que uma empresa. É, pelo menos em teoria, mais neutral, porque depende de todos, quer tenham ou não tenham dinheiro. Na prática, são os mecanismos que se encontram para garantir a independência do órgão de comunicação social face ao seu proprietário que contam. No Reino Unido, a BBC conseguiu manter o poder político longe da redação e da programação. Em muitos países reforçou-se o poder dos jornalistas nas redações e criaram-se regras que dificultassem a interferência dos proprietários na linha editorial do jornal privado.

Em Portugal, nem uma nem outra coisa são fáceis. Não porque o Estado esteja muito presente, como alguns defendem, nem porque os capitalistas portugueses sejam especialmente insensíveis à liberdade de imprensa, como outros acreditam. Porque temos poucos leitores de jornais e cidadãos pouco exigentes em relação à informação que consomem. E isso fragiliza a comunicação social. Junte-se a isto a crescente precarização dos jornalistas (aqui e em todo o lado) e a perda de poder de quem os representa (do sindicato aos conselhos de redação, que Cavaco Silva, quando era primeiro-ministro, se encarregou de neutralizar na lei) e temos a tempestade perfeita.

A condição para defender a liberdade de imprensa e o pluralismo é garantir que há uma separação total entre a propriedade e a definição editorial, seja o órgão de comunicação social público ou privado. Uma coisa difícil de explicar a um ultraliberal que, perante casos de tentativa de interferência, acaba sempre por perguntar: “Mas porque raio não pode ele mandar no que é lhe pertence? Querem mandar no jornal, comprem-no.” Esta é a perversidade de quem pensa que o direito à propriedade está ao mesmo nível que outros direitos que garantem a nossa liberdade enquanto indivíduos. No limite, para garantir a liberdade económica podemos fazer dos outros nossos escravos, retirando-lhes todas as liberdades.

Todo o debate em torno da independência da comunicação social face ao poder económico é complexo e obriga a equilíbrios difíceis e a posições pouco maniqueístas. Mas, infelizmente, a realidade tem-se encarregado de simplificar as coisas, exibindo a brutalidade do capitalismo em que hoje vivemos. Pela clareza das palavras de um acionista perante um trabalho jornalístico que denuncia a forma como o “seus” se comportam, o caso do “Le Monde” demonstra que o poder político ou até o terror não são os principais perigos para a liberdade de imprensa. O maior poder continua a ser o do dinheiro. E, à medida que a imprensa perde capacidade financeira e os jornalistas autonomia profissional, mais esse poder se exibe sem grandes pruridos. “Não foi para isso que eu permiti ao jornal adquirir a sua independência”. A liberdade de imprensa não é uma garantia democrática. É uma cedência do patrão.

3 pensamentos sobre “Je Suis “Le Monde”

  1. Daniel, tenho grande respeito pela sua pessoa, de que realço a seriedade; Nem sempre estamos de acordo e ainda bem que assim é. Permita-me que lhe apresente sentidas condolências pela morte de seu pai, não sabia que era filho de Herberto Hélder. Agora o artigo. A sua opinião relativamente aos proprietários do “Le Monde” é correcta e não merece qualquer tipo de contestação. Entendo e concordo com a generalidade do artigo. Não aceito, nem em tese, que investidores não possam ser proprietários de órgãos de informação, pelo eventual risco de condicionarem as redacções. O seu artigo leva a pensar que toda a informação deve ser estatizada; Nunca conheci qualquer órgão de informação estatal verdadeiramente independente, acabam sempre manipulados pelo poder político em exercício, basta atentar no exemplo em Portugal. Acredito mesmo, que nem a BBC foi ou é sempre, verdadeiramente independente. Não tenho particular afecto pelo seu patrão Dr. Balsemão, porque subsistem no ar algumas calúnias ou suspeitas, não totalmente esclarecidas, mas reconheço-lhe independência relativamente às redacções / direcções dos órgãos de que é proprietário. No dia em que sinta que a informação veiculada pelo “Expresso” é condicionada pelos accionistas, deixo de ler jornais e passo a ler Blogs em exclusivo. Digo-lhe mais Daniel: Se fosse homem rico, gostaria de ter um jornal, só e tão só, para ter a garantia de informação de verdade, isenta se é que tal é possível. Acuse-me de sonhador que eu gosto, tanto quanto gosto da sua vontade indomável em denunciar o que está errado e que não cabe nos seus princípios. É desse esclarecimento e seriedade que eu gosto. Um abraço de respeito.

  2. Nada de novo…interesses privados/vícios públicos. Com sentido da
    economia linguística e do bem público: nem uma palavra mais que o necessário.

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