A geração dos pais bastardos

(António Guerreiro, in Público, 16/07/2021)

António Guerreiro

O presidente francês anunciou no dia 12 de Julho um “revenu d’engagement” para jovens dos 16 aos 25 anos sem emprego, sem estudos e sem formação (em França são chamados “NEET”) que pode ir até cerca de 500 euros mensais. Como traduzir em português “revenu d’engagement”? Rendimento de compromisso? Rendimento mediante compromisso? Seja qual for a tradução, a palavra engagement significa que se estabelece um contrato – tem muito de simbólico, mas os simbolismos contam muito – que prescreve condições, sob a forma de deveres, aos beneficiários desse rendimento: eles têm de fazer um percurso de “inserção” na sociedade do trabalho. A preocupação de Emmanuel Macron com o léxico é muito evidente: o engagement expulsa a ideia de incondicionalidade e universalidade da allocation universelle, que em inglês se chama universal basic income  e em português é dito rendimento básico universal. Na verdade, uma primeira versão deste programa agora anunciado (e que só teve existência no discurso e no papel) até se chamava Garantie jeunes universelle,  mas a novilíngua macroniana actualizou uma novilíngua anterior, ainda do tempo de François Hollande.

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No discurso em que anunciou essa medida, Macron disse que ela se fundava numa lógica de instauração de “um novo pacto entre as gerações”. Devemos entender estas palavras como a tentativa de reconstruir um pacto geracional já quebrado ou em vias de se quebrar. Não é novidade para ninguém que está instalado desde há algum tempo, por todo o lado, e não apenas em França, um mal-estar intergeracional que está a acentuar-se com a pandemia e à mínima oportunidade pode transformar-se num acerto de contas entre jovens e velhos. Em França, a ruptura do pacto é ainda mais visível, não por causa da tradição francesa das contestações e manifestações de rua, mas também porque a geração do Maio de 68 ainda está viva e, em muitos casos, com um grande peso na vida pública. Essa geração da contestação que abandonou todas as utopias e se tornou mensageira e executora do novo realismo que é o da “política das coisas” nunca passou verdadeiramente o testemunho, é incapaz de conceber o seu declínio e, por um conjunto de factores sociais e políticos, conseguiu manter em condição de dependência os seus filhos legítimos. O pacto intergeracional manteve-se enquanto as transições puderam ser comandadas pelos mais velhos.

É o que se passa também em Portugal: o espaço público é preenchido por um discurso político que apenas sofre algum aggiornamento para se manter igual. Em nenhum outro domínio há uma inércia tão forte. A máquina da alternância geracional avariou e não se vislumbra qualquer hipótese de repará-la. Nalguns sectores, como a escola e a universidade, o desastre é colossal.

O filósofo alemão Peter Sloterdijk, que tem um olhar agudíssimo para os fenómenos sociais, culturais, religiosos e políticos contemporâneos, inscrevendo-os em narrações de “longue durée”, publicou em 2014 um livro denso e de grande alcance (como é todo o seu pensamento) sobre os filhos “terríveis” da Modernidade. Segundo ele, a continuidade geracional que tinha estado na base do desenvolvimento cultural da nossa civilização deu lugar, na Modernidade, à revolta anti-genealógica, ou seja, à tentativa de emancipar o indivíduo da cadeia de continuidades que o ligava de maneira estável às gerações precedentes. A Modernidade teria então consistido na elevação e triunfo destes filhos terríveis, intratáveis, desobedientes, que não assumem as regras dos genitores e não se assumem como descendentes. São como que filhos ilegítimos ou “bastardos”, como lhes chama Sloterdijk, fazendo ao mesmo tempo um elogio do bastardismo. Foi assim a geração das rupturas. Transpondo esta narração com um âmbito cronológico de longa duração para um presente cada vez mais escandido em curtas durações, a categoria hoje determinante não é a dos filhos terríveis, os “enfants terribles”, assim baptizados numa novela de Cocteau, mas os pais terríveis que se imaginam sempre jovens. De tal modo que até a ideia de juventude acabou por ser conformada a esta aspiração dos mais velhos a uma eterna juventude. O pacto intergeracional que Macron quer restaurar foi enfraquecendo à medida que a geração dos filhos vive pior do que a dos pais, e até a dos pais já vive pior que a dos avós. Esta grande regressão arruína qualquer pacto.



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