Amantes na madrugada

(José Gameiro, in Expresso, 11/02/2021)

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É muito raro sermos procurados por colegas. Como se sabe, em todo o mundo, os médicos fogem dos médicos. Com a idade, somos mais vezes procurados por colegas. É aquela ideia, nem sempre verdadeira, de que os mais velhos sabem mais. Na minha especialidade fiz supervisão a muitos. Por vezes, o profissional mistura-se com o pessoal, quando se discute a atitude e os sentimentos face a um doente, mas nunca é um pedido de ajuda em relação à sua vida. Desta vez foi um pedido formal de consulta. Conhecia-o vagamente, nunca trabalháramos juntos, nada me impedia de falar com ele.

“Venho cá com um dilema ético. Sei que não nos compete a nós aconselhar os doentes sobre escolhas morais, mas o que me aconteceu deixou-me muito incomodado”, disse. Fiquei em silêncio.

“Sou um grande madrugador, preciso de sair cedo, ter a rua só para mim. Às seis já ando lá fora, faço uns quilómetros de marcha, tomo um café e volto para casa, arranjo-me e vou trabalhar. Nunca os tinha encontrado, mas naquele dia estacionei o carro num sítio diferente. Reparei que estava um carro parado, com as luzes acesas, e alguém lá dentro. Comecei a fazer os meus exercícios de aquecimento e não liguei. Quando ia começar a marcha chegou outro carro, que parou atrás. Quando os dois saíram dos respetivos veículos, o abraço foi efusivo, direi mesmo muito efusivo. Era claro que não eram amigos, não eram um casal, só podiam ser namorados. Na sua experiência de terapia de casal, alguma vez lhe passou pela consulta alguém que usasse a desculpa do exercício físico para ‘saltar a cerca’?”

Não respondi. Mas perguntei: “Porque é que isso o tocou tanto, ao ponto de vir falar comigo?”

Ele respondeu: “Era noite, estava distante, não lhes vi bem a cara e segui com a minha caminhada. Confesso que nunca mais pensei neles. Pus os auscultadores e comecei a ouvir um Requiem de Mozart, o que me põe sempre muito bem-disposto de manhã. Até nem fiz o percurso habitual, antes tivesse feito, não estava agora aqui a chateá-lo. Meti-me pelo meio das ruas do casco antigo da vila. Ao virar de uma esquina, já com o sol a raiar, dou de caras com eles. Veja bem, a correrem de mão dada…”

Aqui fez uma paragem no discurso e emocionou-se. Respeitei o silêncio.

“Até tenho vergonha alheia ao contar-lhe isto. A senhora era a minha cunhada. Quando me viu, tirou imediatamente a mão do gajo e ficou de todas as cores. Parou, falou-me e apresentou-me o seu ‘treinador pessoal’, um colega de trabalho. A mulher do meu irmão, apanhada nas curvas, por mim. Está a ver o sarilho em que estou metido. Não contei a ninguém. Mas ela telefonou-me. Com as tretas do costume, a contar-me uma história, como se eu fosse o marido dela. E a pedir-me para não falar com o meu irmão. Que ia resolver a coisa, que nunca tinha acontecido nada, além de uns beijinhos. Sabe como é, não pense que eu sou machista, mas as mulheres tentam sempre dizer que estas coisas são quase platónicas.”

Não fiz comentários, mas fiz uma pergunta da qual pensava já saber a resposta, presunção minha. “Qual é o seu dilema?”, perguntei.

“Ainda não lhe contei tudo. Falta a parte mais difícil. Fomos namorados em miúdos, depois nunca mais nos vimos. Por acaso, ela encontrou o meu irmão e acabou por casar-se com ele. Eu sei, nós sabemos que não devíamos, mas olhe, de vez em quando…”

Por momentos, tive de me controlar, não me competia dar-lhe lições de moral familiar. Apeteceu-me perguntar se tinha um dilema ou um trilema? Parecia ter adivinhado o meu pensamento.

“Isto pode parecer-lhe ridículo, mas, além de a questão ser por si já muito complexa, tenho outra preocupação. Sei lá quem é o tipo e se está infetado?”

Respondi-lhe: “Meu caro, isso é um triplo problema. Ético, de ciumeira e sanitário. Começamos por qual?”


Conversas de alcova

(José Gameiro, in Expresso, 20/11/2020)

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As histórias de espionagem através das alcovas são muito antigas. Mais as de mulheres a espiarem homens do que o inverso. Talvez porque os homens são mais ‘tontos’ a guardarem segredos quando estão embeiçados por uma senhora. As grandes guerras europeias estão repletas de histórias de mulheres que correram grandes riscos de vida, algumas foram executadas, porque seduziram inimigos para lhes ‘sacar’ informação política e militar. Nos tempos atuais, as coisas são mais sofisticadas, mas os riscos de partilhar informação financeira nos calores da intimidade podem ser elevados.

O amor é o sentimento que mais desperta emoções violentas, para o bem e para o mal. Esta verdade de La Palisse raramente acaba nos tribunais e nas prisões, felizmente. Mas há traições que são muito mal vistas por quem as sofre.

Chamemos-lhe Adérito. Um nome que acho adequado a um tratamento de código .O nosso homem teve uma vida vulgar até àquele dia fatídico. Fez o seu curso superior quase todo à custa das colegas, que lhe passavam os apontamentos e o deixavam copiar nos testes. Contava, entre amigos, um episódio de que se gabava. Numa disciplina de cálculo — o Adérito só sabia a tabuada e pouco mais —, a namorada de ocasião, rápida e eficiente, conseguiu passar-lhe o teste já resolvido. Ele copiou-o e aproveitou para vender as respostas aos amigos. Na hora de o entregar, ouviu-se na sala uma voz feminina desesperada: “Onde está o meu teste?”

Casou com a namorada da juventude, depois de adiar a união durante uns dez anos, como ele dizia, para poder gozar a vida. Única herdeira de um industrial de sucesso, rapidamente engravidou e, por pressão do pai e do marido, ficou em casa a tratar dos filhos. O Adérito lá ia cumprindo as suas obrigações conjugais, nos mínimos. Em abono da verdade, ela agradecia que ele “não a procurasse muito”. As aventuras iam-se sucedendo, cada vez mais às claras. O Adérito não se apaixonava, gostava, como ele dizia, de “carninha fresca”. Não tinha amigas que lhe explicassem o que é uma mulher. Os negócios iam de vento em popa. As comissões sucediam-se e os testas de ferro também. Movimentava-se cada vez melhor no mundo do imobiliário e nas cascatas de empresas que não se sabe onde nascem nem onde desaguam. Até que, um dia, se tomou de amores. Parecia ser mais uma secretária, das muitas que ia tendo mas que despedia quando já sabiam demais. Nem sequer era muito “fresca”, como ele dizia aos amigos. Mas tinha qualquer coisa que o prendia, pela primeira vez. Saiu de casa e foi viver com ela. Negociou com a mulher o divórcio, deixou-a bem, como se diz nestes meios.

A pouco e pouco, ela foi tomando conta de todas as operações financeiras. Viajavam sempre juntos, espalhando glamour junto das famílias tradicionais que tinham aderido ao mundo das margens da legalidade. Mas o Adérito tinha dentro dele o gene da transgressão. Numa destas viagens não resistiu a uma princesa falida mas que tinha artes de encantar como ele nunca tinha conhecido. Pela primeira vez, ficou preocupado. Tentou justificar viagens em que teria de ir só. Telefonemas e mensagens a horas mortas, um azar nunca vem só, e a senhora vivia num fuso horário muito diferente.

Quando foi apanhado, tentou a velha tática, negar tudo e sempre. Percebeu que era, afinal, um grande ingénuo. Estava tudo gravado. Pensou: “Paciência, vou ter mais cuidado, mas não consigo deixá-la. Nunca ninguém me tocou tão fundo.” O Adérito confirmou, umas semanas depois, que, mesmo tendo ‘colecionado’ dezenas de mulheres, não fazia a mínima ideia do que elas eram capazes. Sei que estou a ser injusto na generalização. A secretária, organizada como lhe competia ser, entregou o dossiê completo. Às 7h de uma manhã de nevoeiro, ainda com poucas horas de sono, depois de uma noite real, a polícia local bateu-lhe à porta do quarto, num hotel de luxo, algures no mundo. Algemado, não conseguiu deixar de pensar numa frase que o cineasta Luis Buñuel disse no ocaso da vida. “Nunca mais me vejo livre do tirano…”


Recomeçar (mas sem amor romântico)

(Ana Sá Lopes, in Público, 04/05/2020)

Alguém arrisca passar agora, com o risco do vírus, pelos estágios iniciais do estabelecimento de uma relação?


E agora como é? Fazemos o quê? Olhamos para a mudança de “estado de emergência” para “calamidade” como uma possibilidade de esperança, uma coisa incrível quando entre dois palavrões horrorosos venha o diabo e escolha. Chegou agora, enfim, a possibilidade de nos reconciliarmos com algumas coisas banais que o longo confinamento varreu das nossas vidas.

— O que me apetece é beber um café na rua.

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A maioria dos nossos desejos será tão banal como o desta minha amiga. Beber um café na rua passou a ser um bem raro, apenas disponível em algumas padarias. Um café. Vamos lá a ver: é só um café. E no entanto a sua falta revelou-se para muitos de nós, por muitas máquinas expresso que tenham inundado o mercado, desagradável de suportar.

Queremos regressar a uma normalidade, reconhecer alguma parte do mundo que era nosso e o vírus implodiu. Mas o novo normal será anormal, já sabemos. Não poderemos abraçar, quando é que poderemos abraçar? Daqui a um ano e meio com vacina? Sem a possibilidade de um abraço, o nosso mundo encolhe e gela. Claro que sabemos viver encolhidos. E a felicidade também vem de se fazer o que, a cada momento, é o mais certo. E encolher-nos é agora a nossa possibilidade. Mesmo um bocado gelados, avancemos. 

Acho que em todo este tempo demos por nós a fazer perguntas antes inimagináveis uns aos outros. Eu dei. Aqui há dias:

— Tu abraças o teu filho?

— Não, ele não gosta de abraços. Mas toco-lhe.

— Tu desinfectas as compras?

Alguns meus amigos desinfectam as compras. Outros não. Eu também não. Mas não dou abraços. Não toco em ninguém e sabe Deus o que isso é doloroso. Mas agora, podendo ir ver o mar e a sua infinitude, as coisas vão ficar melhores.

O que vai acabar é o amor romântico ou a sua possibilidade. Falo dos novos amores — a quarentena demonstrou como é maravilhoso ter um bom casamento ou similar, para todos os que tinham esquecido ou desprezavam o facto. Um conselho de amigo: tratem dele, do vosso casamento, porque já não há mais.

Ah e tal o amor não acaba, respondem-me. Não? Alguém arrisca passar agora, com o risco do vírus, pelos estágios iniciais do estabelecimento de uma relação? Quem desinfecta compras não vai beijar estranhos. A máscara vai ser uma nova burka usada por razões sanitárias — vai proteger-nos da covid-19 e do amor romântico. O vírus da SIDA tinha formas de protecção. Aqui não há. O álcool gel não é para ser usado na boca e não consta que exista alguém disponível para tomar banho em álcool gel antes de tocar em alguém que não conhecia antes da quarentena.

Vamos então recomeçar como se nos faltasse uma parte. Mas recomeçamos. E apesar do muito que o vírus nos veio retirar, a tendência do humano para a busca da felicidade consegue ser comovedora. Bebamos o café.