As divisões nas elites ucranianas

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 11/01/2024)

A incapacidade de o governo preservar a unidade e a coesão entre os líderes militares e civis será fatal para a Ucrânia. Atenta a estes desenvolvimentos, Moscovo prepara-se para tirar vantagens.


O prolongamento da campanha militar e o insucesso da ofensiva ucraniana no verão de 2023, ao deixar claro a incapacidade de Kiev desalojar as forças russas do seu território, provocou tensões no establishment ucraniano sobre a forma como se passou a olhar para o futuro. Para isso, terá também contribuído a considerável redução do apoio ocidental ao esforço militar do país. Duas visões sobre os caminhos a seguir entraram em choque. Uma abraçada por largos segmentos das chefias militares, encabeçados pelo general Valerii Zaluzhnyi, outra pelo presidente Volodymyr Zelensky.

As clivagens e o progressivo distanciamento entre o presidente e o chefe militar tornaram-se públicas quando Zaluzhnyi quebrou um tabu e publicou, em novembro de 2023, um longo artigo no “Economist” em que admitia que a guerra se encontrava num impasse difícil de ultrapassar. Ao constatar a impossibilidade de uma vitória militar ucraniana, contrariava frontalmente o discurso de Zelensky e a sua crença na recuperação total e completa de todos os territórios ocupados pelas forças russas. Zelensky fez questão de se demarcar publicamente da posição de Zaluzhnyi dizendo que a vitória não só era possível, mas que, apesar dos escolhos, estaria ali ao virar da esquina.

A partir daí as divergências agudizaram-se. Uma deputada do partido de Zelensky veio acusar Zaluzhnyi de ser o responsável pelo insucesso da campanha militar do verão, sendo necessária a sua substituição. Avançava o início de 2024 como o momento mais adequado para o fazer. Zelensky sugeriu a Zaluzhnyi que se demitisse, mas este declarou que não renunciaria ao cargo. As desconfianças mútuas agravam-se diariamente. Ficava no ar sensação de que existiam dois tipos de forças armadas: as “boas” comandadas pelo general Oleksander Syrsky, o potencial substituto de Zaluzhny, e as “más” por Zaluzhny.

Os incidentes tornaram-se frequentes e públicos. Zelensky passou a dar ordens diretamente a alguns comandantes militares sem passar por Zaluzhny. Entretanto, este descobriu que estava a ser escutado. Durante uma inspeção de rotina a um dos seus gabinetes, feita pelos Serviços de Segurança ucranianos, foram encontrados dispositivos de escuta. A isto, juntou-se a morte do major Gennady Chastyakov, um colaborador próximo de Zaluzhnyi, no dia do seu aniversário, em sua casa, quando “um dispositivo explosivo desconhecido detonou um dos seus presentes,” fazendo em tudo lembrar o assassinato do blogger russo pró-kremlin Vladen Tatarsky organizado pelos serviços de segurança da Ucrânia (SBU).

As discordâncias alargavam-se à estratégia militar a adotar. Após o insucesso da ofensiva do verão, Zaluzhny era da opinião que as forças ucranianas deviam assumir uma postura defensiva que lhes permitisse ganhar tempo, economizar meios e, na retaguarda, prepararem embates futuros.

Sobre o futuro de Avdeevka, uma cidade alguns quilómetros a noroeste de Donetsk, onde as forças russas e ucranianas travam duros combates, enquanto Zelensky diz que a cidade tem de ser defendida a todo o custo, Zaluzhnyi prognostica a sua queda, mais tarde ou mais cedo, alertando para a necessidade de se organizar uma defesa a oeste e em melhores condições, em conformidade com a estratégia que Zelensky o impedia de implementar.

Uma situação igualmente embaraçosa colocou-se relativamente à queda de Marinka em mãos russas. Presidente e chefe militar diziam o oposto. Enquanto Zelensky negava a queda da cidade, Zaluzhnyi contradizia-o. Entretanto, vários generais começaram a tornar pública as suas opiniões sobre a situação militar e as dificuldades com que se debatem as forças ucranianas, apontando várias deficiências (falta de armamento, munições, problemas logísticos, etc.), contrariando a narrativa das boas notícias promovida por Kiev para manter o moral elevado.

O conflito entre ambos evoluiu e tornou-se vincadamente político. Numa possível corrida presidencial, sondagens efetuadas no final de 2023 indicavam Zelensky e Zaluzhnyi lado a lado. A realizarem-se eleições em março de 2024, a vitória de Zelensky não está garantida. Não será de estranhar que, depois de muitas hesitações, Zelensky as tenha cancelado.

Um dos últimos pomos de confrontação é a lei da mobilização, em discussão no parlamento, de que ambos se procuram demarcar dada a sua impopularidade. Uma lei controversa que, entre outros assuntos, alarga o limite de prestação do serviço militar, e prevê o repatriamento dos ucranianos que se encontrem fora do país. A deputada Maryana Bezuhla justificou a sua necessidade dizendo inadvertidamente que os ucranianos perdiam mensalmente em combate pelo menos 20 mil soldados, sendo necessário colmatar as perdas causadas pela estratégia de atrição russa através de uma “mobilização assertiva.”

A discussão da mobilização provocou uma intervenção de Zaluzhnyi no parlamento dizendo que não tem soldados. E que se não lhe derem soldados, os deputados têm de se alistar e irem combater para a linha da frente, algo que não caiu bem.

Numa reunião da comissão parlamentar de Segurança Nacional, Defesa e Inteligência para discutir a lei da mobilização, que contou com a participação do general Zaluzhnyi e do ministro da defesa Rustem Umerov, o secretário da comissão Roman Kostenko disse que o “presidente Zelensky deve compreender que não voltará a ser presidente… deve perceber que está politicamente morto. E que deve agora tomar decisões que visem a preservação do Estado, e não as que ele pensa úteis para o reeleger”.

O tema dos choques entre os diferentes grupos não se esgota aqui. Poderíamos acrescentar as quezílias entre Zelensky e o antigo presidente ucraniano Petro Poroschenko impedindo-o de sair do país, os dislates do seu antigo acólito Oleksiy Arestovych, e a deterioração das relações com o seu antigo patrocinador, o oligarca Igor Kolomoisky responsável pelo financiamento da campanha eleitoral que levou Zelensky ao poder. Estas divisões tendem a agravar-se com a diminuição do apoio ocidental. Casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão.

A posição de Kostenko sobre Zelensky, atrás referida, acaba por refletir o que começa a ser o pensamento dominante entre os patrocinadores internacionais da causa ucraniana, muito em particular da Casa Branca: Zelensky tornou-se um passivo. Quando já se tornou óbvia a necessidade de congelar o conflito, dada a situação desvantajosa em que Kiev se encontra, Zelensky insiste numa fórmula irrealista em que só ele e o grupo que lhe está próximo acredita. Até os mais convictos defensores da vitória ucraniana vêm agora contorcer-se e dar o dito por não dito.

Ciente da evolução dos acontecimentos e da evolução das “vontades,” veio à liça a ex-primeiro ministra Iullia Timoshenko, ex-presidiária condenada por crimes de corrupção, um peso pesado da política ucraniana, criticar a proposta de plano de mobilização classificando-a de inconstitucional e propor um plano B. Sem ser muito explícita sobre o conteúdo dessa proposta, vem posicionar-se como uma putativa interlocutora de Washington e de Moscovo numa eventual mudança de regime em Kiev, mostrando oportunisticamente a sua compreensão para com a solução política que Zelensky teima em não aceitar.

A Ucrânia encontra-se sob grande pressão para negociar com Moscovo. Disso deram recentemente nota o “Politico” e o “New York Times” (NYT). O primeiro, referindo a discreta mudança da estratégia da Administração Biden para a Ucrânia, abdicando de apoiar uma vitória total de Kiev sobre a Rússia, procurando apenas que esta melhore a sua posição numa eventual negociação para pôr fim à guerra, o que implica a cedência de partes da Ucrânia à Rússia; e, o segundo, afirmando de uma forma desajeitada que “A Ucrânia não deve deixar passar a oportunidade de pôr termo ao derramamento de sangue. A recuperação de território não é a única medida de vitória nesta guerra.”

A evolução da posição de Washington relativamente ao futuro do conflito não está a ser aceite, ou, se quisermos, compreendida da mesma maneira pelos atores políticos ucranianos. Nem todos perceberam ou não querem perceber a nova realidade. Entre estes últimos encontra-se Zelensky. A fórmula mais território, mais dinheiro esgotou-se.

Passados mais de um ano e meio desde o início do conflito, a estratégia da atrição russa começou a produzir na sociedade ucraniana o efeito esperado. Passo a passo, a superioridade russa tem vindo a tornar-se cada vez mais percetível. Mas parece que o autismo de Zelensky e da sua entourage não reconhecem o óbvio. Não entendem que a situação não se vai reverter, que estão a perder a guerra e que têm de chegar a um acordo com os russos. Quanto mais tarde pior.

Perante o agravamento da situação e a incapacidade Zelensky em perceber a gravidade dos acontecimentos, não será de excluir a possibilidade de os militares virem a tomar conta da situação, embora não tenham até agora manifestado intenção de o fazer, particularmente Zaluzhnyi. “O envolvimento dos militares na política, que aumenta todos os meses, faz também aumentar os riscos da desestabilização interna do país e o espetro de uma guerra civil.”

A incapacidade de o governo preservar a unidade e a coesão entre os líderes militares e civis será fatal para a Ucrânia. Atenta a estes desenvolvimentos, Moscovo prepara-se para tirar vantagens.


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4 pensamentos sobre “As divisões nas elites ucranianas

  1. Civilização europeia? Qual? Aquela
    que destruiu ao longo de séculos países e territórios para sacar os recursos que lá havia? Que exterminou populações inteiras? Que reduziu 20 milhões de africanos a escravatura e os despachou para o outro lado do mar em condições terríveis? Que exterminou populações amerindias enquanto os nossos prelados discutiam se eles tinham alma? Que provocou duas guerras mundiais?
    Porque é que não havemos de viver todos bem uns com os outros cantando o Kumbaya? Perguntem ao nazi que disse “os meus homens alimentam me com o sangue das crianças que falam russo” . Perguntem a quem tinha, em Fevereiro de 2022, 200 mil nazis concentrados nas fronteiras do Dombass, prontos para a morte e a violação, a quem por lá organizava safaris para caçar russkies. Perguntem a quem a partir de dia 16 de Fevereiro de 2022 começou a bombardear forte e feio. Perguntem já agora aos presstitutos porque é que andaram a dizer que aquilo era a população a festejar com fogo de artifício. Mas claro, a população do Dombass são separatistas, falam russo, deviam ser exterminados ou expulsos como Israel está a fazer a população de Gaza e Cisjordânia para que a Ucrânia entrasse limpa de “pretos da neve” na brilhante civilização europeia.
    Esta brilhante civilização que até nos quer pôr com carros novos, e temos ou não dinheiro para isso vão interessa, a conta de não nos deixar arranjar os velhos.
    Já agora, o nazi Zelensky tinha todo o direito de ter armamento nuclear. Presumo que o México também tenha.
    Quem tem o corpo coberto de símbolos nazis como um tapete persa e nazi.
    Claro que nem a Rússia nem ninguém consegue desnazificar aquela gente tal como a Alemanha nunca foi realmente desnazificada. Mas foram lhes retiradas as garras da agressão e é isso que se pretende na Ucrânia.
    Já agora, também há ainda muita gente que acredita que as guerras que a civilização Americana e europeia lançaram contra o Iraque, Síria e Líbia foram para libertar os países de tiranos e não justamente assaltos para roubar recursos. Se calhar tambem acreditam que a população de Tripoli não veio festejar a gloriosa liberdade após seis meses de bombardeamentos selvagens porque estava muito calor. Como é bom e reconfortante ser tão crente.
    E, claro, a Rússia devia esperar calmamente sentada enquanto nos lhes fazíamos o mesmo por via da Ucrânia. Aliás, isso foi dito por dois brilhantes representantes da civilização europeia. A austeritaria Merkel, que quase nos matou a fome e o Hollande, que visitava a amante disfarçado de vendedor de pizza. Os acordos de Minsk eram só para dar tempo a Ucrânia para se armar. Era certamente para dancar o Kumbaya com a malta do Dombass e com a Rússia que a Ucrânia e os seus tapetes persas nazis precisavam de se armar. Com o apoio dos civilizados destruidores de três países, só neste século, que visaram justamente sacar recursos. Recursos que a Rússia tem de sobra.
    Vao ver se o mar dá choco.

  2. Na verdade não há guerra entre Russia e Ucrânia uma vez que a Russia nem aceita que se diga “guerra”. Logo, se não há guerra porquê estarmos sempre a dizer isso? Claro que não queremos dizer que um país está a assaltar outro com fins de lhe roubar o que de bom tem, por ex: mar, terra, e riquezas naturais. É um insano, desumano e ganancioso ASSALTO. Alegar-se anti nazismo, desmilitarização e antiadesão á civilização europeia afiguram-se desculpas esfarrapadas para esconder a verdade do verdadeiro Assalto com destruição generalizada, com vista ao extermínio duma população, de um país, independente, que apenas não pretendia, nem pretende, algo do seu brutal e déspota, vizinho.
    Basta de se mandar matar gente só por prazer maquiavélico e sádico.
    Qual será a mãe ou pai que quer que o seu filho morra somente pela louca vontade de outrém?
    Porquê não havemos de querer viver bem uns com outros??!!
    Porquê preferimos o lema de “Abel e Caim…Ou seja; Querer e Poder???!!!!
    Aqui não existe “Senso Humano”

  3. Gonzalo Lira. Chileno. Morto numa prisão ucraniana em condições de desumanidade total. Tinha também nacionalidade norte americana. Durante os oito meses em que o desgraçado esteve preso, incomunicável, em Karkhiv, os pais dirigiram apelos lancinantes ao Governo norte americano para que intercedesse em favor do filho. Caiu tudo em saco roto.
    O filho já tinha sido carimbado como pro russo por denunciar crimes ucranianos e para o Governo de trastes apoiantes de nazis isso faz com que mereça ser abandonado a sanha dos nazis.
    Não que o nosso Governo fizesse diferente se o destino do Bruno se Carvalho fosse o mesmo.Mas nos não somos uma superpotencia nem o maior fornecedor dos ucranazis.Uma ordem é o homem seria libertado e mandado para casa no primeiro avião. Mas preferiram fazer dele um exemplo grotesco do que acontece à quem escreve diferente da narrativa dominante. Pelo que a passada quinta feira, dia 11 de Janeiro, foi o último dia de Lira neste mundo.
    Os pais de Lira culpam agora um presidente senil. E teem razão.
    Lira junta se as dezenas de jornalistas mortos pelos americanos no Iraque, sempre por engano, pois claro, alguns deles também americanos, e a tantos que lutaram e morreram pela verdade.
    Que a sua família encontre agora a paz possível e que aqueles trastes devolvam pelo menos o cadáver a, família para que descanse onde quer que queiram enterra lo. Matarem nos gente é um lugar escuro e vazio. Onde ninguém merece estar.

  4. Concordo por inteiro com a análise apresentada. De facto, as dvisões internas na Ucrânia estão à vista de todos, menos dos mérdia ocidentais. Por falar nisso, já que todos se calam, sugiro ao estátua que fale sobre o que aconteceu a Gonzalo Lira.

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