Carta aberta aos nossos aliados judeus

(One Democratic State Initiative, 08/11/2023, Trad. José Catarino Soares)

19 de Outubro de 2023. Mais de 5 mil judeus americanos da “Jewish Voice for Peace” [Voz Judaica para a Paz] manifestam-se diante do Capitólio americano ⎼ a sede do Congresso dos EUA (Câmara dos Representantes + Senado) ⎼ com duas palavras de ordem: “Os judeus dizem: Cessar-fogo, já!” e “Não em nosso nome!”. Seguidamente, cerca de 500 manifestantes (incluindo duas dezenas de rabis) fizeram uma ocupação-sentada numa das salas redondas do Capitólio (evento captado na foto).

Durante centenas de anos, o colonialismo instrumentalizou a identidade como arma para justificar as suas atrocidades. Hoje, o projecto colonizador sionista afirma ser um empreendimento judaico e afirma que a luta de libertação palestiniana é um empreendimento anti-semita. É, por isso, que vós, nossos prezados aliados judeus, podeis fazer diferença – e é por isso vos dirigimos esta carta.

Em primeiro lugar, agradecemos-vos pelas posições corajosas que tendes tomado, não só em palavras, mas também em actos. O que, nas últimas semanas, nos tem doído, a nós, palestinianos, não são as bombas do inimigo – vivemos sob ocupação há 75 anos, conhecemos bem os seus horrores. O que mais nos tem afligido é o silêncio dos silenciosos. No meio dessa quietude, as vossas vozes, os vossos gritos, como os de inúmeros outros, aqueceram-nos o coração. Mais importante ainda: quando dizeis “Não em meu nome!” fazeis mais do que tomar uma posição moral. Ao desnudar a dupla mentira de confundir colonialismo e judaísmo e de acusar o movimento de libertação de anti-semitismo, acertais em cheio na alegada “legitimidade” do sionismo. O que fazeis é, pois, crucial.

As corajosas posições políticas que tomastes estão do lado da verdade. Durante centenas de anos, houve judeus que viveram em paz na Palestina, no meio de palestinianos, como palestinianos. A própria Gaza tinha um florescente bairro judeu, cujo sossego só foi perturbado pela chegada do sionismo à Palestina. O que criou o desentendimento foi o colonialismo sionista, não foram diferenças religiosas ou “choques de civilizações”.

A nossa luta de hoje, como palestinianos, não é contra os judeus, é contra a ideologia e o movimento que fabricaram este desentendimento sectário e a instrumentalizaram para justificar a sua ambição supremacista. Não queremos “expulsar os judeus da Palestina”. Queremos desmantelar o chamado “Estado judaico”, e a opressão inerente às suas relações de poder colonizador, e queremos substituí-lo pela sua antítese fundamental: um Estado democrático, laico, palestiniano, do rio [Jordão] até ao mar [Mediterrâneo].

democrático, porque garantiria a igualdade de direitos e de representação de todos os seus cidadãos;

laico, porque garantiria a liberdade de culto e estaria isento de discriminações de base religiosa, étnica ou outra;

palestiniano, porque garantiria o direito de retorno dos refugiados palestinianos, poria um fim definitivo do apartheid mantido contra o povo palestiniano e a restauraria a sociedade palestiniana multicultural, tal como era antes de Israel: um belo mosaico de vida.

Movidos por um amor profundo pela justiça, por vezes religioso, por vezes simplesmente humano, escolhestes participar deste movimento de libertação. Ao fazê-lo, tomastes uma posição não só relativa à Palestina, mas também relativa às vossas próprias sociedades. As narrativas sectárias do colonialismo fragmentam, na verdade, não só as sociedades que visam, mas também aquelas que criam e aquelas de onde provêm:

― aquelas que visam, como tem acontecido nos 75 anos da catástrofe na Palestina, até ao dia de hoje em Gaza;

― aquelas que criam, como se pode ver nas divisões religiosos-laicos, Asquenazes [germânicos]-Mizrahi [orientais], brancos-pretos e outras divisões identitárias entre os colonos na Palestina;

― e aquelas de onde provêm, como podemos ver no esmagamento das culturas iídiche, sefardita e judaico-árabe pelo sionismo para fabricar uma identidade israelita construída em torno da brutalidade e do medo e nas suas ímpias alianças com as extremas-direitas de toda a Europa e América do Norte.

Os cidadãos franceses de ascendência judaica não se arrepiam quando Netanyahu lhes diz que a sua pátria é Israel, não a França? Não terão os judeus europeus sofrido já o suficiente com ideologias, movimentos e Estados que os viam como pertencentes a outras sociedades em vez de pertencerem à sua? O que o imperialismo “ocidental” construiu na Palestina – tal como em todas as terras que colonizou – tem tido muitíssimo êxito porque conseguiu devastar tudo. A sua retórica identitária tem, contudo, um custo, e já começou a provocar uma reacção que lhe causa estragos.

Neste sentido, a luta pelo desmantelamento da formação colonizadora na Palestina e pelo estabelecimento, em seu lugar, de um Estado Democrático Uno não é uma luta que se limite à Palestina. É, pelo contrário, uma luta global, com origem na Palestina, mas que não terminará com a sua libertação. As últimas semanas têm mostrado que a ocupação da Palestina não se limita a ela; que o Estado colonizador de Israel faz parte de uma rede imperialista mundial, cujas relações de poder colonizador se estendem dos capitalistas da indústria de armamento dos EUA, aos municípios da Europa e aos algoritmos da empresa Meta, acabando na Autoridade “Palestiniana” e nos governantes “árabes”. A nossa luta contra o colonialismo é, na verdade, a luta da humanidade; e a vossa adesão a ela é mais do que mera solidariedade com a Palestina. É uma afirmação de sobrevivência.

No espírito da nossa luta comum, permitam-nos sugerir duas linhas de rumo:

― A primeira é imediata: continuar a pressão sobre os vossos governos para parar o genocídio — cessar-fogo, já! Organizai-vos em movimentos que já existam e que sejam dignos de confiança. Fazei o que tendes a fazer nos partidos políticos situacionistas “menos à direita do que outros”: ameaçai dividi-los, fazei pressão sobre os seus dirigentes; eles são cobardes e obedecerão, se o vosso esforço for organizado.

― A segunda é de mais longo prazo. Instamos-vos a reconhecerdes as narrativas sectárias que aqueles que verdadeiramente decidem propalam nas vossas sociedades; a reconhecerdes quem são esses decisores e como instrumentalizam a identidade para vos fragmentar. Com o tempo, esperamos que vos junteis a partidos políticos que não almejem menos do que o derrube desta maléfica ordem mundial em vez de vos submeterdes à sua hegemonia cultural podre e vos moverdes no âmbito das suas opressivas relações de poder.

Por tudo o que fizestes, prezados aliados, agradecemos-vos. E por tudo o que fareis, esperamos manter-nos em contacto convosco; para coordenar a nossa luta comum por um mundo novo: um mundo em que a Palestina e todas as outras sociedades se tenham desembaraçado das clivagens sectárias e dos interesses capitalistas; um mundo pós-colonial, democrático, solidário, justo e livre.

Fonte aqui.


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6 pensamentos sobre “Carta aberta aos nossos aliados judeus

  1. Isto traz muita água no bico. Mesmo muita. Implicita está a cessação de Israel como estado soberano. A partir do terceiro ou quarto paragrafo a pele de cordeiro desliza e revela o leopardo por debaixo.

  2. E porque carga de água é que há de existir um estado racista, fascista, que dá direito a qualquer um que, se afirme judeu e não seja capaz de se integrar na sociedade em que vive de ir para lá e roubar a casa casa de um desgracado qualquer?
    Israel como existe e uma crueldade e uma aberração e sabe Deus quanto espaço roubara para acolher imigrantes judaicos chamados por um apelo messiânico.
    Agradece viveres do outro lado do mar e não digas asneiras. Numa coisa Israel é sério. Veste logo a pele de lobo. O que acontece na Palestina desde a sua criação e um crime contra a humanidade. O resto é conversa de gente mal agradecida que não sabe a sorte que tem em viver bem longe.

  3. Chamar racista a quem se julga o povo escolhido por Deus e os outros são inferiores não é insulto nenhum. Infelizmente para quem vive lá perto é verdade. Israel é suportável a partir de Portugal pois que para cá chegarem precisam de sacar muito espaço e felizmente não há no mundo gente inadaptada a professar a religião e raça judaica que chegue para encher isso tudo. E ainda bem. Agradeçam por isso e não me venham com dialéticas.

  4. Esta carta é mais uma evidência de que a guerra é do governo de Israel e não do seu povo, não pode haver antisemitismo, o povo rejeita a guerra.

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