Os traficantes de ética

(António Guerreiro, in Público, 27/01/2023)

António Guerreiro

Os políticos, manifestando um grande desprezo pela tradição ético-política, reivindicam a legalidade quando perdem a legitimidade e insistem na legitimidade quando são apanhados na ilegalidade.


Muito se tem falado de ética nos últimos tempos, por causa dos muitos “casos” em que têm estado envolvidos sucessivos membros do governo. Há boas razões para reclamar o primado da ética, mas devemos estar conscientes de que isso também é responsável por uma acelerada despolitização (o primado da gestão económica é o seu principal factor) ou até por uma antipolítica. Em nome da ética e da erradicação do mal que a relativiza ou até a aniquila, estamos a caminhar a passos largos para uma hipertrofia do direito promovido por uma ideologia ética que instala um problema tão grande como aquele que pretende resolver. O famoso inquérito que fornece garantias de que os governantes entram munidos de todas as condições de legalidade é o expediente mais antipolítico que alguma vez foi inventado.

É um instrumento antipolítico porque isola e mede a legalidade, fazendo com que se perca a consciência de que na política só se satisfaz o requisito da representação quando a legalidade forma um par com a legitimidade, sem se confundir com ela. Se o par se desmembra e a legalidade se torna o critério que está no princípio e no fim, então anula-se progressivamente o valor político da legitimidade (ele passa a ser confundido com a legalidade), absolutamente necessário para o funcionamento normal da máquina política.

Não quer isto dizer que as ilegalidades devam ser admitidas, mas a promoção de um discurso público obsessivamente assente nas questões da legalidade tem os efeitos nefastos que podemos hoje observar um pouco por todo o lado. O imperativo do “escrutínio” é certamente muito necessário em democracia. O problema é que sob as condições da “mediarquia” em que vivemos, muito rapidamente ele vai para além dos seus próprios fins e torna-se um usurpador de legitimidade.

Desviando-me dos “casos” que têm ocorrido em catadupa e do expediente encontrado, sob a forma de um interrogatório, para impedir que eles aconteçam, vou procurar noutro lado um exemplo eloquente da hipertrofia do direito. O Tribunal Constitucional declarou por maioria (sublinhe-se este aspecto, para não se pensar que estamos aqui num terreno onde se decide com bases científicas) a inconstitucionalidade da lei que protege os animais de maus tratos, o que motivou, aliás, uma grande manifestação em Lisboa.

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Há hoje um certo consenso, que se tornou uma regra moral, de que não se deve maltratar os animais. Sujeita-se a uma forte censura quem não cumpre este mandamento. Não interessa se esse consenso corresponde ao sentir da maioria, já que também não precisamos de ouvir o que diz a maioria branca para que o racismo seja punido e excluído como regra da vida social. Ora, quando alguns juízes do Tribunal Constitucional, obedecendo ao primado do direito positivo, declaram a lei inconstitucional, situam-se cegamente no campo da legalidade formal, mas alienam a legitimidade. Decidem contra aquilo que já foi integrado no cânone da lei moral.

Um indivíduo que maltrata um animal pode argumentar, apoiando-se no veredicto do Tribunal Constitucional, que age legalmente, isto é, sem infringir a lei. Mas a resposta que vai obter à sua volta é que os seus actos são moralmente ilegítimos ou até odiosos aos olhos da comunidade, apesar de ele estar do lado da legalidade, segundo o veredicto da mais alta instância do sistema judicial.

Ora, um dos sintomas do esvaziamento da política actual é que se procura compensar com um excesso de regras e leis a falta de legitimidade, a qual, nas democracias actuais, já se encontra reduzida a pouco mais do que ao acto eleitoral — princípio de legitimação por excelência do poder político.

Se há actualmente tantos “casos” é porque se avançou muito nas restrições à legalidade e nas práticas que a “escrutinam”, ao mesmo tempo que se dava um enfraquecimento da legitimidade. E os políticos, de um modo geral, manifestando um grande desprezo pela tradição ético-política (a “ética republicana”, diz-se, mas ninguém sabe o que isso é ou sequer se alguma vez existiu), reivindicam a legalidade quando perdem a legitimidade e insistem na legitimidade quando são apanhados na ilegalidade.

A balança que deveria equilibrar esta tensão está completamente desnivelada e o famigerado inquérito é mais um peso num prato carregado deles. Se tudo continuar assim, vamos continuar a ouvir um coro falar de ética, enquanto outros puxam da pistola, como fazia o outro quando ouvia a palavra “cultura”.



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Um pensamento sobre “Os traficantes de ética

  1. Vou falar sobre as minhas preocupações …

    Uma opinião independente que fala da realidade,que já não é o que deveria ser, pelo contrário, deve ser compatível com a ideologia em vigor.

    Muito interessante este artigo. Mas o problema, na minha opinião, não é que o Estado seja hoje encarnado por indivíduos desprezíveis, mas sim que o Estado está cheio de poderes ilimitados, mete-se em tudo, e já não cumpre QUALQUER das suas missões regalianas correctamente (justiça, política energética, defesa, equilíbrio orçamental, educação pública, segurança interna, … tudo é um desastre). Nada na nossa constituição protege a sociedade civil das intrusões de “altos funcionários” nos seus assuntos; e quando estes funcionários se revelam medíocres, ou mesmo loucos, causam danos.

    Penso que todos falhamos,falhamos colectivamente.

    Sendo o nosso sistema “democrático” , parece ilusório mudá-lo votando naqueles que estão na origem do problema. Então o que pode ser feito para estancar a hemorragia? A questão mantém-se…

    Foi a nossa constituição que fabricou este “estado profundo”.

    O funcionamento da administração é tão nefasta com políticos e gestores que são na sua maioria tão incompetentes como intocáveis e que se mantêm unidos para encobrir os seus grandes esquemas.

    Estas elites comportam-se da mesma forma que a nobreza da corte sob o Antigo Regime, excepto que o trampolim para a sua situação já não é o nascimento, mas a competição que os membros da elite passaram a fim de se juntarem a um corpo de prestígio. O corpo tornou-se assim o equivalente, paradoxalmente porque era republicano, do título de nobreza. A este respeito, poder-se-ia perguntar se não teremos chegado a uma situação simétrica à do Antigo Regime no final do século XVIII, onde a nobreza da corte se tinha tornado, aos olhos de todos, uma casta parasita..

    Penso que a grande maioria do povo Portugués está bem ciente de que esta casta tecnocrática, fora de toque, desconectada, arrogante, desprezível e incompetente, confiscou o país para fazer dele um parque infantil. O mesmo problema surge, nos mesmos termos, no mundo político, económico, científico e mediático e a diferentes níveis: as tecno-estruturas de Bruxelas, Nato e Davos são muito mais nocivas e perigosas porque as suas vítimas são mais numerosas e a sua gama de acção é mais vasta. A descrição destas personagens lembra-me uma criatura sinistra e hedionda (Laurent Alexandre) que classificou a humanidade em duas categorias: “A elite e o inúteis”.

    Esta casta predestinada tem acesso às melhores universidades, melhores cargos, favoritismo, clientelismo que não data de ontem e não creio que esta oligarquia oculta se dissolva um dia ou outro… É aqui que o poder é realmente importante e também dos partidos políticos de todos os tipos.

    Este sentimento de superioridade destas pessoas deve ser erradicado o mais depressa possível e de forma radical.

    Contudo, substituir uma casta de incompetentes egoístas por uma casta de incompetentes corruptos, cujo único mérito é lamber as botas do chefe, não irá mudar as coisas.

    Trabalhei para alguns deles,e constatei que estas pessoas não têm sentido da realidade e que pensam que são algo que não são. Além disso, em 90-95% dos casos são profissionalmente incompetentes, com o único objectivo de sobreviver!

    É importante notar que não é melhor no estrangeiro e que a doença é o capitalismo financeiro e nada mais.

    Na minha opinião , não vai durar muito tempo porque já não faz sentido para ninguém! Mesmo as pessoas desta casta podre e corrompida começam a sentir uma forma de mal-estar que que transforma uma dor de cabeça para a maioria.

    “Não devemos imaginar que aqueles que criaram o problema serão capazes de o resolver”… essa é a versão suave.

    O meu primeiro confronto com este tipo de indivíduos e grupos foi na escola, depois no mundo profissional, o que mostra que este comportamento é cultural!

    Se os perseguirmos, os seus clones tomarão o seu lugar, uma vez que esta forma é a norma e não há autoridade e o pior de tudo, não há vontade de arbitrar e julgar esta nocividade.

    É toda esta civilização que me repugna com a sua mediocridade e perfídia.

    Há pessoas verdadeiramente extraordinárias nestes corpos com uma ética impecável.(Muito poucos)
    Além disso, não vamos à causa raiz destes comportamentos.

    1- Há muitos jovens políticos brilhantes. Infelizmente, deixam frequentemente a política cedo porque já não conseguem suportar a natureza pesada da política,o individualismo e a competição.

    2- Os comportamentos descritos existem a todos os níveis na política . Este padrão é criado pela própria política . Qualquer político que se mantenha demasiado tempo neste ambiente acabará por se adaptar e funcionar desta forma. Pensar mudar a cabeça será suficiente é ilusório.

    3- O problema é amplificado pela dimensão da administração, o culto da uniformidade e o amor às grandes estruturas nacionais políticas.. É mais fácil ver a eficácia de uma acção numa estrutura pequena. Além disso, quando uma administração funciona mal, está ao nível do país e isto torna-se rapidamente impossível de gerir.

    Estamos apenas a assistir a um envelhecimento político.
    Uma empresa também envelhece, mas é obrigada a renovar-se para sobreviver. À medida que a política envelhece, contenta-se em consumir mais recursos enquanto presta cada vez menos serviço.

    Entre estas castas vorazes e desdenhosas e muitos cidadãos desinteressados pela vida política (ou que não a compreendem de todo), encontramo-nos num vício que não nos leva ao optimismo. O problema revelado parece-me insolúvel.

    Que mundo triste destes políticos : se ao menos guardassem para si e não se preocupassem com os cidadãos, infelizmente estão a tentarcularizar e a vampirizar o sistema..

    Na minha humilde opinião penso que é um sistema organizado para minar a democracia, um sistema que é disfuncional ao permitir que alguns se comportem como parasitas do Estado, devido à falta de um processo de selecção suficientemente rigoroso no início e de um verdadeiro controlo independente… têm uma relação muito problemática com a verdade porque esta relação já não existe. A verdade é uma opinião no final. É o jogo daqueles que ainda acreditam na moralidade, na Justiça. Só há uma verdade, que é a que funciona. Aquele que manipula melhor é aquele que tem melhor sucesso. Eles criaram uma inversão de valores.

    A inteligência é criativa e permite a decisão certa.

    Não se pode construir uma democracia melhor nestas condições… ela deve viver ao ritmo do povo, caso contrário estará completamente desligada… caso contrário governará por si mesma.

    Tácticas e não estratégias….Hum,hum!
    Voltemos às definições “Se considerarmos que a estratégia é o plano de acção que conduzirá aos objectivos, as tácticas são antes os passos concretos e individuais que permitirão avançar na sua realização.
    Assim, há estratégias que podem não decidir, mas sim os verdadeiros políticos e que lhes é pedido que implementem.
    Eu extrapolo: talvez a estratégia imposta seja “destruir Portugal”, enfraquecê-la tendo em conta as euro-regiões e a governação mundial.
    Neste caso, eles estão a sair-se muito bem e com zelo;

    Dito isto, será difícil destruir a democracia em Portugal, uma vez que esta nunca foi estabelecida no país.
    A “democracia representativa” é um oximoro como a “salsicha de porco pura”.
    Temos um fraco direito a eleger representantes que depois não nos prestam contas. Esta é uma forma pobre de considerar viver em democracia.
    Se este país fosse verdadeiramente uma democracia, os eleitores teriam meios constitucionais autónomos para exercer a sua vontade. Por exemplo, poderíamos considerar a possibilidade de nós próprios alterar a Constituição para casos muito importantes no que diz respeito à nação.

    Uma vez estabelecida a disfunção do estado, o que pode ser feito?
    A solução simplista seria a de reduzir o peso do Estado, que é exactamente o objectivo das políticas liberais. A verdadeira solução é retomar o controlo do Estado, e não deixar corromper por este sistema. Impossível individualmente, possível como um grupo. E uma vez que o controlo seja tomado, será essencial estabelecer controlos e equilíbrios porque ninguém é infalível..

    Assim, o mundo político é esclerótico que gozam de muito poder(es) e especialmente de impunidade: o escândalo da democracia!

    Desejo imaginar que o país supostamente democrático desfrutam de uma elite que vive ao ritmo do povo

    Na minha opinião, não haverá qualquer melhoria sem que tudo seja quebrado e, em particular, sem que se regresse a uma abordagem mais local.

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