(Bruno Amaral de Carvalho, in Facebook, 12/10/2022)

(Confesso que me emocionei ao ler este texto. A Estátua é de lágrima fácil quando toca a questões de valores e de justiça. Realço a coragem de Bruno de Carvalho. A luta pela verdade, por vezes, exige-nos que arrisquemos a própria vida. Que os deuses te continuem a proteger como até aqui, Bruno de Carvalho.
Estátua de Sal, 12/10/2022)
Março foi há 15 quilos atrás. Uma vida. Os guardas fronteiriços russos parecem não acreditar que eu sou o mesmo tipo que aparece na fotografia do meu passaporte. Levam-me para uma sala, daquelas com fita métrica na parede, e andam para trás e para a frente. Arrependo-me de ter ido cortar o cabelo poucos dias antes de partir de Donetsk. As cabeleireiras riam-se com a ideia de terem um estrangeiro como se tratasse de um evento exótico numa cidade em guerra. Pelo espelho, para além do excesso de cabelo cortado, conseguia ver a vitrina da loja coberta por placas de madeira. Meses antes, vários rockets lançados pela artilharia ucraniana atingiram um supermercado, uma escola primária, um talho e este cabeleireiro.
Às vezes, passam-me pensamentos parvos pela cabeça. Lembro-me da primeira vez que me levaram a um barbeiro na Amadora. Devia ter seis anos e o esfola cabras, como lhe chamavam, pôs uma tábua sobre os braços do assento para me ter à altura do espelho e da tesoura. Aprendi, desde então, a dedicar a longa tortura de cortar o cabelo a viajar pelos meus pensamentos. Há uns tempos, contaram-me que havia gente que se preocupava com a roupa interior devido aos bombardeamentos. A minha avó tinha o costume de me fazer a cabeça em água se usasse meias ou boxers com buracos porque podia acontecer alguma coisa e acabar no hospital, arruinando a reputação familiar pela exposição destas peças de roupa comidas pelas traças à observação de médicos, enfermeiros e auxiliares. Percebi que o mesmo acontece em Donetsk. Pode parecer absurdo mas, no meio das bombas, há quem tenha receio de ser apanhado a meio de uma ida à casa de banho. Pensei nisso enquanto ouvia os movimentos da tesoura e ri-me da possibilidade de ter de correr a meio do corte ou de morrer assim.
A morte tornou-se um hábito desde que cheguei no fim de Março, há tanto tempo que parecem anos. O primeiro corpo que vi foi o de um soldado ucraniano nas trincheiras de uma aldeia na região de Lugansk. Na verdade, não havia carne. Apenas ossos dentro de um uniforme. O resto serviu de banquete para cães vadios. A tragédia da guerra traduziu-se demasiadas vezes em imagens destas. Muitas vezes, quando caminhava de noite em Donetsk, repetia um velho hábito. Olhava para as janelas iluminadas dos apartamentos e imaginava espaços acolhedores em que quem ali vivia era feliz. Sempre fui otimista. Talvez em excesso. Quando olhava para cadáveres descompostos, acontecia o contrário. Eram janelas escuras para a barbárie. Lembro-me de quando tropecei num cadáver carbonizado numa cave escura dentro do teatro de Mariupol. Apontei a lanterna do telemóvel para o chão e senti-me envergonhado. Era uma pessoa que estava ali e eu não fui capaz de evitar o tropeço.
Durante um mês e meio, andei com as mesmas botas e as mesmas calças. Parece absurdo mas quando cheguei ao Donbass a ideia era ficar apenas uma semana. Acabei por estar sete meses com uma interrupção de duas semanas pelo meio. Naqueles meses frios, não havia forma de lavar as botas e as calças e conseguir que secassem no dia seguinte. Todos os dias, olhava para as botas e pensava no corpo que tinha pisado. Ainda hoje penso.
A guerra é uma merda. Sobretudo para os que são obrigados a vivê-la. Para mim, foi uma opção e, por isso, nunca me queixei. Fui um dos repórteres ocidentais com mais tempo no terreno. Trabalhei para o Público, para a CNN Portugal, para a CNN Internacional, para o Nòs (Galiza), para o Gara (País Basco) e para A Voz do Operário. No total, cerca de uma centena de reportagens, crónicas e diretos.
Dediquei-me a fazer o melhor que sabia, consciente de algumas limitações, para trazer luz a uma parte escondida do conflito. Enquanto havia quem em Portugal se dedicava a esperar a mínima falha para tentar desacreditar o meu trabalho, fui o jornalista português mais escrutinado. Nunca quis que o foco se centrasse em mim mas nas histórias que contava. Lamento nem sempre ter sido bem-sucedido mas quando se aprende a chorar por algo também se aprende a defendê-lo, como cantou o grupo basco Barricada.
Queriam que não houvesse nenhum jornalista daquele lado porque a única coisa que lhes importa é a propaganda e não o jornalismo. É por isso que nunca escrutinam o outro lado.
Felizmente, nesta caminhada, milhares caminharam comigo e senti o calor da solidariedade que pode sempre mais que o ódio. A minha despedida não é definitiva. Comigo, trago o cinto com cinco furos feitos com a ponta de uma navalha que surpreendeu os guardas russos. Já estou deste lado da Europa.
Obrigado, Bruno e até já!
Um homem em tempo de ratos.
13-10-22, “European Diplomatic Academy: Opening remarks by High Representative Josep Borrell von Bolton und Alzheimer”:
“Well, the rules-based system – and here we have [President of Russia, Vladimir] Putin saying who decides which are these rules, challenging the system directly. (…) And then, there is the nuclear threat and Putin is saying he is not bluffing. Well, he cannot afford bluffing. And it has to be clear that the people supporting Ukraine and the European Union and the Member States, and the United Stated and NATO are not bluffing neither. And any nuclear attack against Ukraine will create an answer, not a nuclear answer but such a powerful answer from the military side that the Russian Army will be annihilated, and Putin should not be bluffing.”
Destacando: “And any nuclear attack against Ukraine will create an answer, not a nuclear answer but such a powerful answer from the military side that the Russian Army will be annihilated.”
É isto o chefe da “diplomacia” europeia? É isto um “diplomata”? Estaremos mesmo nas mãos de doidos? Pergunta retórica, claro, a resposta evidente é sim, serviçais doidos. E quando é que o Putin ameaçou usar armas nucleares na Ucrânia, que eu devia estar a chonar e não ouvi? Não ocorre a esta “velhinha” patética e senil, bolçando barbaridades como quem come tremoços, o que acontecerá logo a seguir, se uma resposta “não nuclear” da UE e da NATO a um pretenso ataque nuclear russo for o “aniquilamento” do exército russo ou perto disso?
Aqui:
https://www.eeas.europa.eu/eeas/european-diplomatic-academy-opening-remarks-high-representative-josep-borrell-inauguration_en
Coragem !!! E por favor nunca desista de falar e contar as verdades ,pois um dia elas venceram ,queiram ou não aqueles que são os carneiros enfileirados a caminho do matadouro. Obrigado pela sua existencia. 😉
A verticalidade neste Mundo de “lambe botas” tem sempre um preço bastante alto.
Parabéns e muita coragem👌
This article is the best I have ever read last time. It’s poignantly painful and honest. Thanks a lot, Bruno. Take care. Wish you the best.
Obrigada, Bruno. Recupere bem. Abraço