A verdadeira diferença

(Por Hugo Dionísio, in Facebook, 10/10/2022)

Hoje, ao sair da minha casa, deparei-me com Katia, a minha porteira. De boné azul-bebé com o tridente de Bandera (agora ucraniano), recebeu-me sempre simpática (e que bem que sabe o que sou), mas triste. Perguntei-lhe: “Então”? “Estás preocupada”? Ao que me respondeu: “Esta noite foi muita bomba”. Desejou-me “bom trabalho”, como faz todos os dias, e eu respondi-lhe “Infelizmente há muito quem queira a guerra”, tendo ainda acrescentado “qualquer coisa que precises, diz”. Nos últimos tempos tenho ajudado vários Ucranianos, que me traz à porta, com a documentação e lhes transmitir, em Inglês, algumas instruções. Foi assim, também, que conheci Ivan, jovem fugido a um dos muitos recrutamentos já feitos pelo Sr. Z.

Ao meio dia, recebo um telefonema de Tatiana. Tatiana também é Ucraniana, mas de Zaporizhie. De mãe Bielorussa, Tatiana fala russo e é ortodoxa, tal como toda a sua família. Disse-me que “o meu tio, um velhote reformado, levou com um estilhaço de uma bomba na barriga e está quase a morrer num hospital”. “Estilhaço de quê”? Perguntei-lhe. Ao que me respondeu “de que haveria de ser, de uma bomba ucraniana”. Este “ucraniana” veio acompanhado de um “ainda bem que já somos russos”, “mas ainda não nos sentimos protegidos”. Ao contrário, de Katia, Tatiana não pode andar na rua com um boné da Novorussya ou mesmo da Rússia. E ela sabe-o melhor do que ninguém.

A primeira vez que me cruzei co alguém que sofria os efeitos da guerra na Ucrânia, foi em 2015, com Natasha. Natasha tinha ido para Donetsk em 2013 – “as coisas estão a melhorar” dizia. Tinha ganho o Partido das Regiões, partido de Rybak e Yanukovich, que era uma coligação de vários partidos “russófonos”. O “Fatherland”, partido de centro direita nacionalista, ficou em segundo. O Partido das regiões ganhava o leste todo, incluindo Kharkov e Kiev, o “Fatherland” ganhava o oeste. Quem não via esta divisão, não queria ver o que era a Ucrânia. Hoje, a propaganda ocidental apagou esta história. Mas o facto é que ela existiu.

Natasha fugiu da guerra. “Como assim, da guerra”? Fugidos os mais ricos, quem ficou no Leste foram os pobres, os trabalhadores, os russos, disse-me Natasha. Em 2014, com o golpe de Maidan e a dissolução do partido das regiões, lá ganhou Poroshenko. E a história é conhecida.

O que a convivência diária com os Ucranianos me proporciona, é a noção de relatividade, mas também de objetividade. O que para uns é libertador, para outros pode ser opressor. Não que estejam em lados diferentes, mas porque a forma como os veem muda consoante a sua perspetiva.

E esta é a grande diferença entre quem abominando a guerra, qualquer guerra, e procurando os factos concretos, com a sua singela objetividade, distinguindo entre “facto” e “perceção” e entre “discurso” e “prática”, e quem, partindo de verdades absolutas, propagadas no Google, nas notícias ao minuto e nas TV’s dos órgãos privados ocidentais, mas que, sem um pingo de conhecimento concreto, objetivo, humano e prático, acha que pode desatar a assumir opiniões definitivas e absolutas sobre a natureza daquela guerra ou de outra, do regime do Sr. Z ou de Putin, dos russos ou dos ucranianos.

E são precisamente os donos dessa “verdade absoluta”, tão religiosa quanto própria do futebolês mais intolerante, quem toma atitudes intolerantes para com quem não alinha na tendência dominante, oprimindo ou ofendendo quem tem a coragem de pelo menos tentar fornecer uma leitura objetiva, histórica e dialética daquele conflito. E é esta gente, que nunca ouviu um russo ou ucraniano que não sejam os que passam e falam nos canais de propaganda ocidental e que, tudo o que vê, ouve e aprende sobre esses países, é filtrado pelo passador dos algoritmos do Vale do Silício, que verborreia a “democracia” de Z e a “ditadura” de Putin, sem perceber que a realidade não é a preto e branco, que não tem de ser uns contra os outros, como um qualquer jogo de futebol, e que é possível analisar, perceber e tomar um lado, sem com isso alienarmos toda a nossa racionalidade e capacidade de discussão e debate.

É por isso que há quem sofra tanto com a dor de Natasha, como com a Katia. E saiba que a dor de uma não tem de ser contrapartida da outra, nem a dor de uma acontece por ser contra, ou por causa, da outra, ou por uma estar uma de um lado e outra do outro. A dor das duas acontece por culpa do mesmo responsável, do mesmo agressor, mesmo que não pareça. A dor que oprime estes dois seres humanos tem, não tem, do outro lado, um russo ou um ucraniano.

Do outro lado, as suas dores, têm os causadores da guerra, desta guerra, de todas as guerras. E é caricato que, quem despreza as dores de uns, ataca precisamente quem honra e sofre as dores dos dois. Porquê? Porque é instrumento de quem quer, precisamente, dividir o mundo em dois lados, dividindo seres humanos, povos, trabalhadores e suas famílias, em nome de um mundo separado entre dominados e não dominados, traduzindo-se daqui para “democracias” e “ditaduras”, se a esta terminologia, o adepto e o fanboy forem mais sensíveis.

E é precisamente esta lógica “hooliganista” que, hoje, justifica que às eleições “democráticas” que elegem Z, se contraponham os referendos “aldrabados” do Kremlin… Como se fosse só escolher, entre o lado Oeste, que extirpa do sufrágio todos os partidos russófonos e tolerantes com a russofonia, ganhando assim as eleições, e o lado Leste que, apenas povoado quase exclusivamente por pró-russos (nem outros lá quereriam ficar), decide juntar-se à Rússia. E tal como escolhem um ou outro, designam o primeiro, o seu, como democracia, e o do outro, como ditadura, desprezando a vontade de todos os que aí quiseram, de facto, votar e exprimir a sua liberdade. Como se a liberdade de uns, valesse mais do que a de outros.

E, ao contrário desse intolerante adepto, há quem fique triste com os bombardeamentos de hoje à Ucrânia, porque sabe que “agora é que a escalada infernal vai acelerar”, como fica triste pela destruição da ponte da Crimeia, por saber que tal constituiria mais um passo numa escalada que vai vitimar inocentes, de um lado e de outro.

E é por isso que há quem não possa estar de acordo com o triunfalismo ocidental o mesmo que comemora a destruição da ponte, demonstrando que o regime de Z vive do ódio ao próximo, ao irmão, que até ontem com ele vivia. Mas é por isso também, que há quem não possa estar de acordo quando extremistas russos chamam de porcos aos soldados Ucranianos, tal como não aceita quando os Azovs chamam de Orcs aos soldados russos.

Hoje, quem toma partido, como no futebol, em 2014 não quis saber. Se quis saber, hoje vendeu-se ou deixou-se toldar com a propaganda. Quem viu Nuland e Ana Gomes a distribuir lanches, dando força aos movimentos neonazis, sabia que ali estava quem representava o outro lado, o reverso da dor e do sofrimento de dois povos, hoje irremediavelmente separados.

Do outro lado está a ganância, o belicismo, o domínio dos recursos alheios, a tentação de impor a sua lei aos outros povos, o neocolonialismo, a cobardia e o seguidismo, a superficialidade e a religiosidade na crença de tudo o que é apresentado como “o ocidente, contra o mundo”, especialmente se, do outro lado, estiver um mundo que não se deixa dominar.

Mas quem se deixa religiosamente manipular, pensando que está obrigado a escolher um de dois lados, quando os dois lados não existem ou são falsos, porque aquela que é a divisão real não lhes é apresentada, mas escondida, é precisamente quem acredita que Putin é comunista e a Rússia um país socialista, mesmo que mais de 90% da propriedade esteja em mãos privadas e a Rússia de Putin seja também um país com tantos oligarcas por 100.000 pobres como uns quaisquer estados unidos ou europa ocidental. Bastou acenarem-lhe com o vermelho, qual arquétipo despertador de antigas e superficiais divisões.

E sabendo-se que Putin pertence ao partido Rússia Unida que congrega vários movimentos conservadores e até liberais, com grande apoio da Igreja, e que a tudo isto se opõe o PCFR, constituindo a real oposição a Putin, mesmo assim, basta Paulo Portas, que cá para nós, deveria estar preso pelos seus escândalos de corrupção e não na TVI aos fins de semana, aparecer com um Lenine ao lado, enquanto fala da Rússia, para o rebanho crente, acrítico, preconceituoso e intolerante, passar a acreditar que Putin é mesmo comunista. E enquanto isso, esquecem-se que, a real luta, não é entre comunistas e não comunistas, mas entre exploradores e explorados, entre capital e trabalho, entre povos e impérios.

E é esta imagem, esta superfície bacoca, mas alienante, de que vive este regime de néons, que tão de repente chora a dor de uns, enquanto goza, despreza e esconde a de outros. É também esta gente, que celebra a liberdade de uns, enquanto oprime a de outros. É esta gente que propagandeia a “nossa” democracia, usando-a como arma de arremesso contra a “tirania” dos outros, bastando, para isso, alguém dizer que, a informação de uns é propaganda, e a propaganda de outros, é informação.

E o mesmo fazem em relação aos povos. Se aqui todos emprenham pelo mesmo ouvido, é porque temos liberdade e podemos exprimir-nos. Se tal sucede nos outros países, eleitos como inimigos pelas caixas-de-ressonância de Wall Street, é porque esses povos estão alienados pela propaganda, condenando essa gente à estupidez e a condescendência paternalista de acharem que, tais povos, não sabem o que querem, apenas porque querem algo que não lhes cabe no seu preconceito, nos seus dogmas futebolísticos.

E, por fim, são estes que escondem as guerras de uns, condenando veementemente, e com tal energia, as de outros, não venha alguém expor a sua hipocrisia, cinismo e cobardia.

E é por isso que eles não são verdadeiramente contra esta guerra… apenas são contra aquele que identificam como agressor.

Tudo porque, como no futebol, se tomam pelo lado que se auto classifica como agredido!

Neste jogo hipócrita, a dor real é secundária… E essa é a diferença!


P.S.1. Já repararam que evito escrever nomes de certos países e pessoas: a censura algorítmica a tal me obriga. As minhas desculpas.

P.S.2. ATENÇÃO!

Como forma de contornar a pressão crescente dos algoritmos, decidi criar dois canais alternativos para os meus escritos:

um blogue:

https://canalfactual.wordpress.com/

(contém todos os textos, incluindo alguns que não publico e mantenho na gaveta)

Um canal Telegram:

https://t.me/canalfactual

Contém links para todos os textos do blogue e notícias que vou destacando, incluindo textos com reflexões muito sintéticas

Para quem segue os meus textos e pretende fazer-me questões sobre assuntos concretos, recomendo que usem o Telegram. Estes são os dois canais, de momento, mais seguros para acompanhar o que escrevo.

Se te interessa, visita e partilha. Só a informação, a reflexão e o debate livre, sério e descomprometido, nos pode conduzir à luz.

Um abraço a todos e todas que comigo partilham o interesse pela procura do conhecimento.


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

5 pensamentos sobre “A verdadeira diferença

  1. Muito boa leitura. Faz pensar. Há aqui muita crítica pertinente a ambos os lados. Mas não concordo com certas partes, como a crítica a quem chama porco aos Nazi. Então chama-se o quê? Anjinho?
    Eu nunca irei criticar as milícias do Donbass (Ucranianos pró-Russos, ou Ucranianos pró-Democracia, ou Ucranianos separatistas) que se formaram para resistir contra os Nazi que avançaram contra eles. Essa parte do discurso do Hugo Dionísio cheira a kumbaya… E é um cheiro que me faz torcer o nariz. Não se dão as mãos a Nazi que estão à nossa frente com uma metralhadora nas mãos. Matam-se! Antes que eles nos matem a nós. Peço desculpa se choco, mas se não perceberam esta lição do que se passou entre 1933 e 1945, então não perceberam nada da história desse período.

    E repito, e repetirei até deixar de o poder fazer: um lado (Rússia e pró-Russos) promoveu os acordos de PAZ de Minsk, o outro (Ucrânia Nazi e NATO) violou-os e entretanto já confessou que nunca os quis realmente cumprir. Andar a equiparar estes lados é andar a brincar com a vida das reais vítimas. E para mim, custe-vos o que custar, um Ucraniano militante de Azov ou do Svoboda, tenha 18 ou 81 anos, homem ou mulher, não é vítima de coisa nenhuma. É o agressor, e se não larga a arma que tem na mão, não merecem mais nada a não ser uma cova (como aquelas que os seus colaboradores NAZI abriram em Kupiansk e já tinham aberto em Bucha).
    Quem glorifica Stepan Bandera, é NAZI, até pode continuar vivo, mas não pode ser tolerado. Já quem glorifica Stepan Bandera e tem uma arma nas mãos, tem de ser morto o quanto antes!

    Querem paz? É muito simples: respeitem a vontade dos residentes de cada região. Pergunto pela N-ésima vez aos cantadores de Kumbaya como é que isto se faz, quando do outro lado está um NAZI a tentar matar quem pensa diferente dele? A Rússia (e o povo do Donbass e da Crimeia) experimentou durante 8 anos fazer um acordo de paz com os descendentes de Stepan Bandera e com os sócios daquela organização que já foi liderada por Nazis (NATO). O resultado foi o que está nos relatórios da OSCE: 8 anos usados para se prepararem para uma ofensiva maior, violação do acordo de paz, e milhares de bombardeamentos diários contra os civis do Donbass entre 16 e 23 de Fevereiro.
    Sem a intervenção militar, como se parava isto?

    Eu sei a resposta, mas nem os do pensamento único, e pelos vistos nem os do kumbaya (sejam os do PCP, ou os do politicamente correto “sou pela paz, sou contra a guerra”) gostam dela, nem conseguem sequer lidar com ela: a existência de guerra ou paz está 100% nas mãos de quem se senta na Casa Branca. Qualquer outra conclusão é pura ilusão. São esses que decidem se amanhã os Nazi ainda têm, ou não, armas para prolongar a guerra por si iniciada. E enquanto as tiverem, vão prolongar a guerra e cumprir a actual lei da ditadura da Ucrânia: prender quem for a favor da paz, e matar quem resistir ao regime e ao seu fanatismo ideológico extremista. E isto, meu caro Hugo Dionísio, são porcos. Aliás, peço desculpa aos animais de quatro patas pela comparação. Isto são diabos à solta na Terra.

    PS: e está mais do que na hora de se enviar toneladas e toneladas de armas, mísseis, tanques, transporte blindado, lança rockets, drones, aviões, helicópteros, e anti-aéreas, para os Palestinianos se poderem defender também. Que não fique uma única casa em segurança em Tel Aviv enquanto Israel não aceitar cumprir a lei da ONU e acabar com a ocupação ilegal, com os muros e com os assassinatos diários. Quem disser o contrário, não está a defender a paz, está só a cantar o kumbaya só para parecer muito lindo na fotografia, mas na prática está a defender a continuação do status quo actual: um genocídio em câmara lenta numa ditadura de Apartheid – de um lado fascistas racistas em tanques, do outro lado crianças a chorar sem casa nem pais. ESTOU FARTO!!!

    • “Mas não concordo com certas partes, como a crítica a quem chama porco aos Nazi.”

      O problema não é chamar porcos aos neo-fascistas, é achar que são todos neo-fascistas, ou supremacistas, ou o que quiserem, a todos os soldados de um lado ou de outro só porque estão a combater. Não só há um razoável número de razões pelo qual serão cada vez mais violentos, como a percentagem só vai continuar a aumentar porque é uma guerra.

    • Subscrevo quase tudo o que o Hugo Dionísio diz e subscrevo, como habitualmente, quase tudo o que o Carlos Marques diz. Mas acho injusta a sua crítica ao desacordo de Hugo Dionísio quando, como ele escreve, os “extremistas russos chamam de porcos aos soldados Ucranianos”. Porque, como pode confirmar na transcrição atrás copypastada, ele refere os “soldados Ucranianos” e não os nazis ucranianos (estes, sim, merecedores do epíteto), classificados como porcos pelos “extremistas russos” (e não pelos russos em geral).

Leave a Reply to Paulo MarquesCancel reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.