Eu tenho alguma dificuldade em falar do PCP

(José Neto, 27/07/2022)


(Este texto resulta de um comentário a um artigo que publicámos de Carlos Marques ver aqui. Entretanto, resolvi dar-lhe a divulgação que, penso, merece.

Estátua de Sal, 27/07/2022)


Eu tenho alguma dificuldade em falar do PCP. Fui militante deste partido na minha juventude e desliguei-me mais tarde por razões de foro pessoal que nada tiveram a ver com a ideologia ou a atuação do partido em si.

A questão central que ditou o meu afastamento, foi que, quanto mais eu conhecia a natureza das pessoas de uma maneira geral, especialmente as mais exploradas pelo sistema, e cada vez mais me apercebia da sua arrogância ignorante e imbecil, o seu desprezo para com os esforços do partido para as esclarecer sobre os problemas reais que as afligiam, quase como se lhes estivessem a vender alguma coisa em vez de as tentarem ajudar. Comecei a desprezar essas pessoas, a sua estupidez, a sua preguiça intelectual, a sua falta de carácter e a sua total ausência de empatia e solidariedade para com os outros.

Naturalmente, tive de concluir que esse meu estado de espírito era incompatível com a militância partidária e desliguei-me. Não podemos ter a pretensão de ajudar os outros se pensarmos que eles não merecem ser ajudados. Nunca me arrependi. Mas também nunca votei, e provavelmente nunca votarei em outra força política que não seja o PCP.

O facto de manter algum distanciamento, permite-me ver as coisas com alguma frieza, que não tinha na minha juventude e enquanto militante, e hoje não tenho absolutamente nenhum problema em analisar objectivamente o partido, criticando quando me parece que é de criticar, e apoiando quando em consciência acho que o meu apoio se justifica. A maioria das vezes, na verdade.

É claro que o PCP não é hoje o mesmo de antigamente. Os velhos militantes, que sacrificaram as suas vidas na luta contra o Fascismo, os mesmos que lutaram em Portugal pela Liberdade quando não havia liberdade e são agora apelidados de amantes de ditaduras, estão mortos ou muito velhos, e os seus descendentes foram gerados num mundo diferente. O ser humano é sempre um produto do meio em que vive.

Ao contrário do que sucedeu com muitos outros partidos comunistas, que se desmembraram ou definharam até à insignificância durante o processo histórico da derrocada dos ideais, que teve a sua espoleta justamente na Rússia que durante tanto tempo iluminara a sua existência, os membros do PCP conseguiram preservar a sua identidade cerrando fileiras em torno da ideologia.

Mas não é fácil resistir indefinidamente, e preservar a própria coerência intelectual, quando se é assolado todos os dias e ano após ano com toneladas de propaganda, elaborada de forma muito científica, a partir de todos os quadrantes comunicacionais, assim como uma frágil embarcação a tentar manter-se à superfície num oceano de marés vivas. Ainda por cima tendo essa tempestade perfeita como epicentro o desmembramento supostamente voluntário da antiga URSS e a assumida renúncia da própria Rússia aos ideais do Socialismo, cujos novos líderes, ansiosos por agradar aos seus recentes patronos americanos, não se cansavam de espezinhar.

O golpe de estado liderado por Gorbachov surge porque a economia estava a falhar, mas o tratamento que lhe foi aplicado quase matava o doente em vez de o curar. O período de mais ou menos dez anos que se seguiu, em que a Rússia foi governada por traidores fiéis a Washington, foi catastrófico para o Socialismo no mundo e ditou a reversão das conquistas dos trabalhadores ao longo de muitas décadas, conquistas que custaram sangue e vidas.

Na verdade a Rússia traiu o Socialismo e todos aqueles que com ela lutaram por ele. Depois, as oligarquias corruptas que ali se formaram de um dia para o outro gostaram de se ver no poder e mantiveram o PCUS fora da esfera de governação. Ainda não há muito tempo Putin, enquanto lamentava o fim da URSS, dizia que o Comunismo era “uma ideologia sem sentido”. Os traidores que venderam o país aos americanos, Gorbachov, Ieltsin e outros, nunca foram presos e condenados pela nova liderança, o que é significativo.

Durante os últimos vinte anos foi evidente o fascínio da Rússia pela Europa capitalista e pelas “facilidades” que o sistema capitalista concede, estavam muito ocupados a acumular dinheiro para pensarem mais além e agora têm de arrepiar caminho se não quiserem pagar muito caro. E os povos da Líbia, do Iraque, da Sérvia e da própria Ucrânia entre outros, pagaram ainda muito mais sem terem culpa nenhuma. Talvez a liderança russa tenha aberto os olhos a tempo. Talvez. Esta nova situação acabará por empurrar a Rússia para os braços da China e forçar uma mudança de paradigma, mas não me parece que essa mudança possa ser feita com as mesmas pessoas que estão agora no poder.

Em janeiro de 2013, o Presidente da China Xi Jinping fez um discurso aos membros do Comité Central do Partido Comunista Chinês fortemente centrado na análise das causas da implosão soviética. Ele atribuiu o desmembramento da União Soviética ao ‘niilismo ideológico’: Os estratos dominantes, afirmou, deixaram de acreditar nas vantagens e no valor de seu ‘sistema’, mas careciam de quaisquer outras coordenadas ideológicas internas para situar seu pensamento, e por esse motivo escorregaram para o niilismo.

O que não sucedeu na China, como se sabe. Baseado na teoria revolucionária do economista Deng Xiaoping, que idealizou a coexistência harmoniosa de “um Estado e dois sistemas”, os comunistas chineses puderam conciliar a estrutura social socialista com o desenvolvimento tecnológico e económico capitalista e em poucos anos tornaram a China o país mais rico e poderoso do mundo.

E eu tenho a impressão de que também no PCP se notam alguns sinais do mesmo niilismo de que falava Xi, um cansaço e uma certa descrença generalizados, o que não deixa de ser perfeitamente normal se pensarmos que os comunistas são seres humanos como os outros.

E repare-se que, num tempo em que o nível de vida da maioria da população está em quebra acentuada, nem por isso essa situação se parece reflectir num recuperar da influência dos comunistas na sociedade. As últimas sondagens publicadas, sejam elas reais ou de encomenda, dizem que, se houvesse agora eleições, os comunistas perderiam ainda mais eleitorado, ao ponto de quase terem que disputar com o CDS o indesejável tÍtulo de partido mais insignificante com assento na Assembleia da República. Pelo contrário, elas apontam para um reforço dos neofascistas do CHEGA.

Não, não estou nada arrependido de me ter afastado da Política.

As coisas podem sempre mudar. Em parte dependendo da evolução da geopolítica internacional, que neste momento é um autêntico caldeirão a ferver. E não podemos esquecer as velhas lições de Marx e Engels. Eles achavam, e bem, que para se fazer a Revolução é necessário antes de mais que o a maioria do povo tenha fome. O estômago decide melhor do que o cérebro. Sempre.

No entanto, nem sempre a justa revolta popular é apontada na direcção certa. Quarenta milhões de desempregados na Europa dos anos 30 do século passado, num tempo em que não havia subsídios sociais, geraram o desespero que fez nascer o nazismo. E essa é uma das boas razões para que todos os democratas apreciem um Partido Comunista forte e coerente.

Mais tarde ou mais cedo vamos precisar dele.


P.S. (1):
Meu caro Carlos Marques, muito embora eu concorde com muito do que você disse aqui, não posso concordar consigo quando apela ao armamento massivo da Palestina. Da mesma forma que se defende que o envio de cada vez mais armas para a Ucrânia só poderá contribuir para um prolongamento artificial da guerra e para que morram mais e mais ucranianos inocentes, por uma questão de coerência também temos de reconhecer que ao alimentar a luta armada dos palestinianos contra um regime que possui armas de destruição de massas praticamente ilimitadas e nenhum escrúpulo em as usar, só irá provocar o genocídio do povo palestiniano. Esse problema terá de ser resolvido pela nova ONU que se vier a formar nos tempos de mudança que se aproximam. Como lhe diz o excelente DE, tenha um pouco mais de paciência.

P.S. (2):
E a propósito, Carlos, os comunistas não são pacifistas, como o prova de forma bastante veemente a sua própria História. Só não gostam muito de lutar em guerras que não podem vencer e num tempo que não é de lutar, mas de esperar. E às vezes também têm que fazer política…


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4 pensamentos sobre “Eu tenho alguma dificuldade em falar do PCP

  1. Muito bem. Obrigado pelas duas lições no Postum Scriptum. Defendo as armas para a Palestina, como defendo as armas para o Donbass. Sou coerente: defendo armas para o invadido se defender do invasor. E é por saberem que isto faz sentido e tem a maioria de acordo, que a propaganda Ocidental faz de conta que a história começou a 24-Fevereiro-2022, para fazer de conta que o invasor é a Rússia e que os desgraçados do Donbass, crianças incluídas, não passam de “separatistas pró-Putin”.
    Sim, percebo o seu ponto. Mas a partir de 2022 passei a ser pró-guerra, pois tal como os Comunistas, tenho o pressentimento que desta vez os criminosos Ocidentais podem ser finalmente derrotados. Se não já, pelo menos a médio prazo.

    «Talvez. Esta nova situação acabará por empurrar a Rússia para os braços da China e forçar uma mudança de paradigma, mas não me parece que essa mudança possa ser feita com as mesmas pessoas que estão agora no poder.»

    Com todo o respeito, isso é não perceber duas coisas fundamentais:
    – a primeira é que a mudança de paradigma que está a acontecer não é de Capitalismo para Socialismo, mas apenas de Mundo Unipolar de Capitalismo NeoLiberal financeirizado, para Mundo Multipolar de Capitalismo de Estado industrializado;
    – a segunda é que a China não é obviamente Socialista, nem o PC Chinês tem neste momento (nem nas próximas décadas) qualquer intenção de fazer a transição para o pós-Capitalismo. Aliás, foi com Xi Jinping que o principal texto constituinte das linhas mestras do regime chinês foi mudado de, parafraseando: “defendemos o socialismo” – para algo como: “não interessa se é socialismo ou capitalismo, interessa o que melhor se aplicar a cada situação”.

    A este propósito, está neste momento disponível na RTP Play um documentário em 3 episódios sobre a viagem de comboio na linha Transiberiana, em que uma actriz britânica vai desde Hong Kong até Moscovo. Ao passar pela China, mostra uma viagem num carro de luxo (um Rolls Royce de meio milhão de Euros) conduzido por uma milionária, que perante a pergunta sobre se se preocupa com a desigualdade e os pobres que na rua a vêem passar, responde que eles até ficam admirados e querem vê-la passar.

    Numa estação mais à frente, entrevista um jovem adulto comum, não rico, que diz que não tem namorada pois elas, na nova geração americanizada com os filmes de Hollywood e as músicas que sabemos, só querem saber do dinheiro, para (acrescento eu) lhes sustentar o consumismo e a vaidade individualista, enquanto invejam a tal milionária a passear no seu Rolls-Royce de meio milhão.

    Já para não falar que todo o crescimento explosivo da China se dá devido a 2 coisas insustentáveis: o crescimento populacional, e a deslocalização da produção, dos países NeoColonialistas/NeoLiberais para as fábricas sem direitos laborais da China, onde num outro documentário até vi redes anti-suicídio, ou pessoas paralizadas porque certa marque de telemóveis (Samsung, Apple) não queria gastar mais uns cêntimos num produto melhor para limpar os ecrãs…

    Se isto é um novo paradigma, vou ali e já venho! Sim senhor, é bom que nasça um Mundo Multipolar, que os líderes dos diferentes países respeitem os diferentes tipos de regimes sociais e económicos, e tal. Mas não me venham com a propaganda Russo-Chinesa direccionada a tolos de Esquerda ocidentais, de que isto é uma mudança de Capitalismo para Socialismo, ou de Desigualdade para Justiça Social, como pateticamente tenta fazer o Michael Hudson na sua cartilha intitulada “O fim da civilização ocidental”.

    Uma coisa são factos. Outra coisa é propaganda. Venha ela do Ocidente ou do Oriente, comigo têm azar. Já estou vacinado e imunizado contra ela. Farejo-a a milhas de distância.

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