Israel tem o direito de existir?

(Alexandre Guerreiro, in Publico, 18/05/2021)

É tempo de a comunidade internacional decidir de uma vez por todas o futuro do conflito israelo-palestiniano e impedir que se arraste por mais gerações: a única solução exequível para a paz só pode passar pelo reconhecimento oficial da Palestina como Estado soberano e represálias sólidas contra Israel.


(Publico este texto, que já é de 2021 por duas razões: a) Pela sua atualidade tendo em conta o assassínio recente por Israel de uma jornalista e o ataque subsequente ao próprio funeral da vitima; b) o facto de, provavelmente, se fosse hoje, o Publico não o publicaria, devido à histeria reinante na comunicação social censurando tudo o que possa “beliscar” a imagem dos EUA e dos seus “protegidos”.

Estátua de Sal, 14/05/2022)


A recente sucessão de ataques de Israel contra a Faixa de Gaza voltou a concentrar as atenções da comunidade internacional para um problema discretamente alimentado pelas potências europeias desde a I Guerra Mundial e formalmente debatido pela ONU desde 1947, quando a Assembleia-Geral adoptou, por maioria simples e através da Resolução 181 (II), o relatório da Comissão Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP). Saliento a importância deste documento pelo facto de ter sido através dele que foi proposta a partição da Palestina e a consequente criação de dois Estados (um árabe e um judaico), bem como a definição de um regime especial para a cidade de Jerusalém.

Quando o Conselho de Segurança adoptou posteriormente a Resolução 69 (1949) que reconheceu Israel como um “Estado amante da paz, que está capacitado para cumprir as obrigações consignadas na Carta”, a ONU deu o primeiro passo oficial no sentido de reconhecer Israel como Estado soberano, procurando, desta forma, impor a legalidade de um projecto jurídico-político num território que durante séculos havia estado sob o domínio muçulmano.

Na prática, a solução jurídica da então “nova ordem mundial” trazida pela recém-criada ONU constituiu uma forma alternativa de conquista territorial e reconhecimento de soberania através da legalização da colonização. Justifica-se, numa primeira nota, sublinhar que o Estado de Israel foi um projecto fiel à receita que inspirara ao longo dos anos anteriores novos Estados no Médio Oriente, como o Iraque, o Líbano e a Síria.

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Todavia, ao contrário destes – cuja criação assentou em motivações estritamente geopolíticas das potências ocidentais e ignorou as características socioculturais e religiosas das comunidades que povoavam os respectivos territórios –, Israel funcionou como tubo de ensaio de formação de um Estado a partir de um conceito de nação discutível e com base na crença de que os judeus têm o direito histórico ao território palestiniano. Na prática, a génese do argumento em favor da criação do Estado de Israel não difere da natureza que inspirou organizações como o Estado Islâmico a alimentar uma agenda expansionista de conquista territorial: a recuperação das antigas possessões muçulmanas e que consideram ser historicamente islâmicas.

Assim, as acções desenvolvidas durante décadas por personalidades pró-sionistas junto de representantes políticos ocidentais tiveram como consequência o recurso ao Direito Internacional como forma de provocar alterações ao curso das dinâmicas naturalmente desenvolvidas ao longo de séculos e que justificaram a transferência do exercício da soberania sobre um dado território entre judeus, cristãos e muçulmanos.

Volvidos 72 anos desde a adopção da Resolução 69, parece evidente que, apesar do não-reconhecimento oficial por parte de um grupo significativo de Estados, Israel consolidou a sua existência como Estado soberano e não pode ser questionada a sua existência. Será mesmo inconcebível e inexequível uma qualquer solução para o conflito que não reconheça Israel como Estado. Porém, é importante não esquecer que, em Direito Internacional, nenhum Estado, enquanto entidade jurídico-política, tem um “direito de existir” por si só: os povos é que têm o direito à autodeterminação e o chamado “direito sagrado à paz” (como proclama a Declaração dos Direitos dos Povos à Paz).

É aqui que entram os direitos do povo palestiniano. Primeiramente, porque o direito natural em que os sionistas se apoiam para justificar a formação e o reconhecimento do Estado de Israel há muito deixou de ter uma natureza reconhecida como suficiente para merecer uma tutela jurídica superior face ao direito à autodeterminação e à paz de terceiros. Depois, porque é impossível conceber um sistema em que quem povoa e domina um dado território durante séculos possa ser condicionado ou despojado do seu direito a existir enquanto Estado para se favorecer a concretização de uma autodeterminação que se formou apressada e artificialmente através de elevados fluxos migratórios organizados e inspirados por uma missão de recuperação do território palestiniano.

Falamos, portanto, de colonização, em concreto de uma colonização judaica cuja violência está sobejamente documentada pela forma como se impôs no terreno para acelerar o crescimento e a afirmação global do Estado de Israel, o que incluiu atentados terroristas, a obtenção de influência em Estados com poder de decisão e a emergência da Doutrina Sharon com o consequente Plano Yinon. Por tudo o que tem sucedido desde 1948, as notícias que nos chegam sucessivamente sobre as relações entre Israel e Palestina não permitem olhar para Israel como “Estado amante da paz, que está capacitado para cumprir as obrigações consignadas na Carta”. Israel não cumpre as obrigações consignadas na Carta nem as decorrentes de costume ou tratados internacionais, uma vez que insiste em cometer crimes no seu território, na Cisjordânia e noutros Estados da região.

Neste quadro, além do processo que enfrenta no Tribunal Penal Internacional e das execuções selectivas conduzidas através de acções encobertas contra quadros políticos, militares e académicos de Estados que Israel entenda constituírem uma ameaça à sua existência, é inegável o apartheid instituído contra a população árabe, o que constitui um crime contra a humanidade à luz do Direito Internacional. É também de assumir que o facto de a Palestina já ter alcançado a qualidade de Estado Não-Membro Observador da ONU e Estado Parte no Estatuto de Roma permite qualificar a ocupação e os ataques militares israelitas como acto de agressão e ainda a política de colonatos, no 6.º parágrafo do artigo 49.º da IV Convenção de Genebra (1949), como crime de guerra. Finalmente, os ataques deliberados contra infra-estruturas e meios de órgãos de comunicação e contra áreas onde se encontram refugiados e deslocados internos não oferecem dúvidas quanto ao facto de constituírem crimes de guerra por serem intencionalmente dirigidos contra alvos não militares.

No final, num contexto evidente de ocupação e colonização de um Estado soberano de facto como é a Palestina, mesmo os mais conservadores que se recusem a reconhecê-lo não podem ignorar o conjunto de resoluções adoptadas pela Assembleia-Geral da ONU nas décadas de 1960 e 1970 e que expressamente excluem a ilicitude no recurso a “todos os meios necessários” à disposição dos povos “contra as potências coloniais”. Na prática, mesmo que a Palestina não fosse um Estado soberano, seria sempre reconhecido ao seu povo o direito inerente à legítima defesa como se de um Estado se tratasse, pelo que o recurso às armas contra Israel seria sempre legítimo e lícito.

Por tudo isto, é tempo de a comunidade internacional decidir de uma vez por todas o futuro do conflito israelo-palestiniano e impedir que se arraste por mais gerações: a única solução exequível para a paz só pode passar pelo reconhecimento oficial da Palestina como Estado soberano e represálias sólidas contra Israel, o que teria sempre de incluir a responsabilidade criminal dos altos responsáveis por crimes internacionais cometidos contra a população árabe da região.


O autor é Doutorado de Direito Internacional Público e Analista de Justiça e Segurança da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Autor dos livros “A Resistência dos Estados Africanos à Jurisdição do Tribunal Penal Internacional” e “O Islão, o Estado Islâmico e os Refugiados: quebrar mitos e desvendar mistérios”


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4 pensamentos sobre “Israel tem o direito de existir?

  1. De facto, o estado sionista é uma aberração histórica. Com o apoio dos ingleses após o fim do Império Otomano alguns judeus estabeleceram-se na Palestina sem problemas como pequena minoria. O Holocausto levantou o novo problema de uma “pátria israelita” e iniciaram-se as várias guerras de conquista sucessiva de expulsão, perseguição e roubo da população árabe. Sempre com o apoio do Ocidente; por um lado, surgiu o apoio financeiro dos judeus americanos -a maior comunidade ainda hoje; e mais tarde o acesso à arma nuclear com o apoio francês. Sabe-se que a entidade sionista detinha poucos anos atrás 50 ogivas nucleares e os seus mísseis Jericó podem atingir alvos a 15000 km (longe como o Rio de Janeiro!). Um arsenal que não tem paralelo no Médio Oriente
    A entidade israelita é uma vergonha racista e genocida.
    Vítor Lima

  2. Muito bem a Estátua a recuperar este texto neste momento.
    O facto de se ter de ir a 2021 buscar um texto do Alexandre Guerreiro, diz tudo sobre aquilo em que se tornou o regime oligárquico autoritário e até supremacista branco em que se tornou a “democracia liberal” e a sua máquina Goebbeliana chamada “imprensa livre”.

    Israel invadiu a Cisjordânia, assassinou uma mulher jornalista lá, quase matava também quem a tentou socorrer, usou violência policial brutal contra os que iam no seu funeral a segurar o caixão, e aproveitou que alguns Palestinianos estavam fora de casa para ir roubar mais umas quantas.
    Se alguém fizesse uma descrição destas sobre o futuro aos primeiros Sionistas, eles seriam seriam os primeiros a evitar a criação/invensão deste Estado. Não há holocausto nenhum no Mundo que justifique tal aberração!

    Meus caros, a pergunta que deixo hoje para quem quiser debater é esta: se um dias destes um país (ou coligação de países) começar a invadir e a bombardear Israel de forma a libertar o povo Palestiniano, apoiam ou são contra esse acto?
    Eu respondo já: passei a ser favorável a uma operação militar especial com este objectivo. Ou pelo menos, faria o que faço agora sobre a Ucrânia, em que não condeno a invasão Russa necessária para libertar o Donbass (da agressão NeoNazi, e tentativa de limpeza étnica, com armas da NATO).

    E estou certo, com 100% certeza, que se algo assim acontecesse contra a ditadura de Apartheid de Israel, a Europa e EUA (NATO) iriam fazer o mesmo que estão a fazer agora: uma enorme campanha de desinformação e lavagem cerebral, seguida do envio de ainda mais armas para os NeoNazis Israelitas, pois é isso mesmo que eles são.
    Quem prende comunidades inteiros em bairros cercados de arame farpado, e procede a uma limpeza étnica, é NeoNazi. E se forem Judeus a fazê-lo, isso só o torna ainda mais vergonhoso!

    O Ocidente (13% do Mundo) é assim, a “rules based world order” é aquilo que eles muito bem entenderem, passando por cima dos corpos de quem quiserem, e impondo a sua estupidez contra todos os outros (87% do Mundo). Por isto mesmo, pelo Donbass, pela Palestina, pelo Iémen, pelo Curdistão, pelo Afeganistão, pela Somália, pela Venezuela, por Cuba, etc, estou a torcer cada vez mais para uma vitória de quem defende o Mundo multipolar e a desdolarização.

    Não está em causa o apoio aos regimes vítimas que aqui listei. Isso é só paleio da treta de opinion makers avençados pelo Pentágono/Bruxelas. O que está em causa é que deixem de existir países/povos vítimas, seja da guerra de facto com balas e mísseis, seja da guerra/terrorismo económico a que o Ocidente dá o eufemismo de “sanções”.

    Parece-me, e a história mostra-o, que a probabilidade de povos livres e em paz um dia conseguirem também que o seu próprio regime tenha alterações positivas, é muito maior do que um povo vítima do agressor externo, que passa assim a ter de se juntar ao seu governo na luta contra um mal maior. As sanções só empobrecem o “mexilhão”, e só matam pobres, não mudam regimes!

    Existe um diabo à solta que impede o Mundo de ser livre e ter descanso, e esse diabo senta-se em Washington e tem filiais de diabinhos na Europa, Japão e Austrália. É um diabo que chama “herói” a NeoNazis, e chama “terrorista” a crianças de pele escura. Esse diabo, merece desaparecer da face da Terra. Ou melhor, nós, pessoas decentes para quem todas as vidas humanas têm o mesmo valor, merecemos viver numa Terra sem esse diabo.
    E peço já desculpa aos fans da NATO em particular e supremacistas Ocidentais em geral por ter escrito palavras que eles não sabem ler…

    E peço desculpa também ao Alexandre Guerreiro se algum dia disse ou pensei mal dele só por me parecer simpatizante do Trump. Perante tanto esterco na “democracia liberal”, cada vez percebo melhor a ascensão dos Trumps e Le Pens, dos Putins e Orbáns.

    Nunca votarei neles (eu é mais Corbyns, Sanders, Mélenchons, Lulas, Sinn Féins, Podemos e ERCs, Die Links, e companhia, e até ao dia do discurso de Zelitler era também o BE, mas deixou de ser!), mas agora percebo ainda melhor que do lado de lá não há quaisquer deploráveis. Apenas gente que se cansou deste regime e do sofrimento e injustiça que este regime lhe impõe, e o quer ver, com toda a legitimidade, a arder.

    Está novamente na hora das pessoas decentes tomarem a Bastilha! Que o próximo “assalto” ao Congresso dos EUA seja bem sucedido (já viram o documentário sobre a votação fraudulenta em massa em caixas de correio durante a madrugada? Vejam!) e que os governos das “democracias liberais” pró-guerra e pró-NeoColonialismo comecem a cair como um baralho de cartas. A Terra não vos aguenta mais!!

    Há já riqueza suficiente para que ninguém seja pobre e ninguém passe fome. Mas para tal, é preciso uma nova ordem mundial onde a distribuição e redistribuição dessa riqueza seja feita, em vez de de um regime desenhado em Davos e colocado em prática nos offshores.

    E há condições para que não seja necessário travar mais nenhuma guerra, mas para tal é preciso deitar a baixo o regime oligárquico cujo financiamento de governantes corruptos assenta nos lucros do Complexo Militar Industrial. Empresas privadas na área do armamento, uma aberração criada pela coligação NeoLib+NeoCon (o partido único dos EUA), é a garantia de instabilidade, conflitos, e guerra. Sem os 5 mil milhões da “Victoria’s secret Nuland”, hoje a Ucrânia seria um país inteiro, com democracia, e sem guerra. E quem disser o contrário, é avençado do Pentágono!

    • És mais Corbyns ? Não sabes que o Corbyn sempre foi acusado ( e com razão ) de anti-semitismo ?

  3. A Palestina foi colonizada pelos britânicos,os sionistas substituíram os britânicos e a colonização continua.o povo palestiniano. está convencido de que a libertação total do seu país deve passar pela luta armada independentemente da duração do conflito.os palestinianos lutam por uma causa .

    Entretanto, os árabes controlam 99,7% da terra no Médio Oriente, se não tivessem querido atirar os israelitas ao mar em 48, no dia seguinte à criação deste pequeno Estado, seria mesmo 99,8.
    No entanto, este conflito é mais destacado que os outros, que são muito mais importantes na geopolítica mundial.

    Para acrescentar nas guerras entre Israel e os seus vizinhos, a ocupação israelita do Líbano que indirectamente criou a resistência libanesa e o Hezbollah, enquanto não existiam antes da invasão incitada por Shamir em 1982. Os israelitas não tinham intenção de se retirar do Líbano porque queriam a água e a madeira do Líbano…

    Sejamos claros, o problema já está no princípio da criação de Israel quando Lord Balfour disse: devemos dar ao povo judeu sem terra, uma terra que não tenha povo. O problema reside na visão colonial europeia: anglo saxonico sem esquecer os acordos Sykes Picot.

    Os habitantes judeus do Médio Oriente faziam parte da população árabe, tal como os cristãos do Oriente. Na Síria, Líbano e Egipto, onde existem comunidades diferentes, não dizemos palestinianos (para designar um muçulmano), cristãos e judeus, como é o caso na Europa: dizemos um norueguês (para protestantes) e um judeu para um não-luterano? Não! Todos são chamados pela sua nacionalidade local e não pela sua religião.

    Foi a política colonial que semeou esta separação e, mais tarde, foi a chegada de imigrantes europeus que acentuou esta divisão na Palestina… Além disso, esta divisão é visível entre judeus europeus e judeus árabes que não se apoiam uns aos outros e não se dão bem, uma vez que os verdadeiros semitas são os judeus árabes.

    É verdade,que nunca falamos de todas as vítimas do sionismo.
    Quando quiseram criar um novo estado para os judeus, expulsaram muitos árabes das suas casas, e milhões de pessoas viram-se expulsas das suas casas de um dia para o outro, nas ruas e na pobreza.
    E especialmente quando a Inglaterra deixou um país em pedaços enquanto havia muita tensão. …Bem, houve muitas mortes no país a fim de ter o maior número possível de fronteiras e os judeus conseguiram 80% do território sobre os árabes.
    Não sou pró-judaico ou pró-árabe e detesto vê-los em conflito, mas esconder todas as vítimas, êxodos, assassinatos que ocorreram em nome do sionismo não aceito.

    O termo “Palestina”, cuja etimologia remonta à palavra “Filisteus”, e que designa a região da Judeia, provém dos romanos que mudaram o nome deste território de Provincia Judeia para Síria Palestina em 135, após a revolta do Bar Kokhba derrotado pelo imperador Adriano, a fim de aniquilar qualquer vestígio de vida judaica nesta parte do mundo.

    Um dos problema é que um povo é obrigado a pagar por um crime que não cometeu (os massacres dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial), obrigando-os a abandonar as suas terras e casas e a ficar sem nada enquanto os judeus levam tudo e podem fazer tudo sob o olhar benevolente do Ocidente e especialmente do Tio Sam. Esta situação está a criar uma resistência cada vez mais radical na Palestina e um sentimento cada vez mais forte de superioridade em Israel. Só que a força dos sionistas é apenas temporária, no sentido em que o seu poder militar se baseia principalmente numa superpotência em declínio e deve, além disso, enfrentar uma antipatia crescente por parte do resto do mundo. O fim será dramático porque o sonho de uma nação judaica desaparecerá a longo prazo porque ou deixarão de ter meios para se proteger e barricar e os palestinianos recuperarão a sua terra pela força ou serão empurrados pelo resto do mundo para dar cidadania aos palestinianos que, pela força da demografia, se vingarão dos sionistas.

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