Lula, o Papa e a Ucrânia

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 05/05/2022)

O Papa Francisco afirmou que quem andou a atear fogueiras à porta dos vizinhos é responsável pelas más respostas dos vizinhos — em claro, falava da Ucrânia de Zelenski e das provocações que fez à Rússia a mando dos Estados Unidos. Uma pedrada no charco das breaking news. Rapidamente abafada. Também tu, Francisco?

Lula da Silva, candidato à presidência do Brasil, deu uma entrevista à revista Time onde a propósito da guerra na Ucrânia afirmou que Zelenski é tão culpado pelo conflito quanto o presidente russo Vladimi Putin. Em resposta ao repórter, que afirmou que Zelensky não quis a guerra, que a guerra foi até ele, Lula respondeu: “Ele [Zelensky] quis a guerra. Se ele não quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais. É assim. Eu fiz uma crítica ao Putin quando estava na Cidade do México, dizendo que foi errado invadir. Mas eu acho que ninguém está procurando contribuir para ter paz. As pessoas estão estimulando o ódio contra o Putin. Isso não vai resolver. É preciso estimular um acordo.”

Os fazedores de opinião na Europa deitaram as mãos aos cabelos. Já li por aqui nas redes afirmações de antigos adeptos do papa e de Lula a rasgarem os cartões de sócios. Estavam enganados com estes dois apóstolos: são filhos de satanás disfarçados!

Pensando, antes de murmurar abrenúncio:

O Papa Francisco e Lula são duas personalidades do que se designou Terceiro Mundo, dois latino-americanos, que têm uma visão do mundo anti-imperialista e conhecem bem a estratégia dos Estados Unidos — o apoio às ditaduras sul americanas, a violenta exploração de recursos, a elevação de criminosos e ditadores aos mais altos postos da política das suas colónias sul-americanas. A pulsão totalitário do império mundial. Nem o argentino Bergoglio, agora papa, nem o brasileiro Lula têm qualquer ilusão sobre a bondade das intervenções dos EUA em qualquer parte do mundo. Sabem que Zelenski é apenas mais uma marioneta entre tantas que conheceram, Somoza, Videla, Figueiredo, Pinochet… se quisermos ir mais longe, Mobutu, do Congo, os Saud da Arábia, o Marcos das Filipinas…

Acresce, quanto a Lula. A sua declaração faz todo o sentido em termos dos interesses do Brasil (curiosamente não são distintos dos que os militares que ainda apoiam Bolsonaro defendem): O Brasil é a grande potência regional da América do Sul e quer continuar a ser, o que implica ser liderante, ser o mais autónoma possível dos Estados Unidos. O Brasil pretende continuar a pertencer ao grupo dos BRIC, as grandes potências do próximo futuro — Brasil, Rússia, India, China, Africa do Sul — que representam cerca de ¾ da população mundial. Lula quer para o Brasil a liberdade de decisão estratégica que a União Europeia abdicou de ter, submetendo-se de pés de mãos aos EUA. É raiva (não acredito em vergonha) a origem do escarcéu que os órgãos de manipulação ocidentais estão a fazer contra Lula. Com acompanhamento de algumas personalidades (portuguesas) que vêm a política como um conjunto de atos piedosos. Infelizmente a piedade não é um valor na política! Nenhum dos portugueses que é costume citar como grandes portugueses se distinguiu pela piedade, Afonso Henriques, Pedro, o cru, João II, Afonso de Albuquerque, o Marquês de Pombal, Salazar… O mais estranho piedoso da História de Portugal foi o jovem Sebastião, que desfez a nossa ideia de independência!

Quanto ao Papa. O Papa Francisco é o primeiro chefe de uma Igreja Mundial originário de fora da Europa. Ele pretende que o catolicismo sobreviva ao neoliberalismo — o sistema imposto pelos EUA — e ao islamismo — a religião que mais cresce no planeta. Um caminho minado. O papa católico não pode colocar o catolicismo ao serviço do complexo militar industrial dos EUA, do Pentágono, de Wall Street ou do quartel general de Bruxelas da NATO. Ele não pode aparecer aos olhos do mundo como um chefe da religião dos brancos europeus e americanos contra a Rússia.

Francisco não pode ser uma nova versão papa polaco Wojtyla (JPII) ao serviço da estratégia americana contra a URSS nos anos 80 do século passado e não pode perder o tal Terceiro Mundo que aspira a relações equilibradas entre potências, porque essa relação de equilíbrio de poderes lhe é vantajosa… A guerra da Ucrânia ameaça romper um relativo equilíbrio de poderes. Um sistema triangular é uma aspiração razoável dos povos de todo o mundo, que o Papa defende…

Os americanos entendem que o que é bom para a América é bom para o mundo. É um convencimento que não corresponde à realidade presente nem à que se afigura num futuro próximo, mas eles são assim e vêem-se assim. Alguns europeus continuam a ver-se como o centro da civilização planetária. Viajam pouco. Bruxelas não é o centro do mundo. Londres ainda menos.

Os europeus já não contam (ou contam muito pouco) para o mundo para o qual o papa Francisco e Lula da Silva falam. Ambos sabem quem é o Deus desta guerra… é para ele que estão a falar.

Para os interessados as declarações de Lula da Silva podem ser consultadas aqui.

As declarações do Papa podem ser consultadas, em português, num site do Vaticano – para não haver dúvidas quanto à autenticidade ou à tradução do italiano -, aqui.


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3 pensamentos sobre “Lula, o Papa e a Ucrânia

  1. CMG,,,,,prepare-se para a excomonhao ,não pel Papa Francisco,mas por todos aqueles que usam a Religião ,como instrumento de domínio e não como comunhão e luz entre os Povos ……Coragem …..

  2. Mais um bom texto deste senhor.

    Destaco esta parte:

    «Nem o argentino Bergoglio, agora papa, nem o brasileiro Lula têm qualquer ilusão sobre a bondade das intervenções dos EUA em qualquer parte do mundo. Sabem que Zelenski é apenas mais uma marioneta entre tantas que conheceram, Somoza, Videla, Figueiredo, Pinochet… se quisermos ir mais longe, Mobutu, do Congo, os Saud da Arábia, o Marcos das Filipinas…»

    Eu, enquanto Europeu, não precisei de nascer noutra parte do Mundo para saber o mesmo que estes dois sabem. Bastou-me ser um cidadão informado, ler muito, tornar-me vacinado e imune contra a propaganda do Ocidente.
    Mas parece que esta forma de estar incomoda muito gente, que agora nos chama de “putinistas” e nos ameaça dizendo que não somos “europeus de bem”…
    Já nos tempos da outra senhora, quem pensasse pela própria cabeça contra a propaganda do regime, era “comunista” e tinha de ser ensinado pela PIDE a ser um “português de bem”…

    Quem se quer chegar ao poder e manter no poder sem merecer, arranja sempre o inimigo externo. A Extrema-Direita tem os imigrantes, o regime de Cuba tem os EUA, os NeoLiberais tinham os “populistas” e agora (ou já desde a 1ª Guerra Fria) o sub-grupo NeoLiberal dos EUropeístas Atlantistas tem a Rússia.

    Há só uma diferença: Pinochet abria valas comuns para os opositores e escondia-as. Zelensky e os seus Galicianos do SBU e Banderistas do Oeste e NeoNazis de Azov abrem valas comuns para os “traidores” e depois chamam a “imprensa livre” para dizer: “ai ai o malvado do Putin, sem ele não havia problema”.
    A m*rda é a mesma, mas a falta de vergonha é cada vez maior.

  3. Gostei desta análise. Todavia parece-me que há aspectos que não foram tomados em conta. Sabemos como aconteceu a guerra, em 2014, no Donbass, e sobre isto apenas direi que quem não estava bem na Ucrânia emigrasse para a Rússia, mas esta é a minha humilde opinião! Se agora houvesse uma província em Portugal que tivesse predominância de uma etnia e pretendesse separar-se do País, o que faríamos? . Só volvidos 5 anos é que Zelensky se tornou presidente da Ucrânia. Cometeu erros? Sem dúvida, era um neófito em política! Mas daí a dizer que ele queria a guerra total no seu País apenas porque os EUA e a NATO a queriam, penso que é algo exagerado. Todos sabemos que os EUA metem sempre o nariz onde há um conflito, todos sabemos que há os fazedores americanos de guerra e derrubes de governos, mas será que também não os há de nacionalidade russa? Ao fim e ao cabo onde há conflitos os russos chegam sempre primeiro…veja-se o Afeganistão, a Síria, etc. Todos sabemos que o negócio das armas estava em estagnação, mas isso tanto de um lado como do outro! Portanto, na minha perspectiva, a Ucrânia é a grande vítima tal como Krajewski disse ao Papa e como este referiu “agora não é só o Donbass, é a Crimeia, é Odessa, a questão é tirar o porto do Mar Negro da Ucrânia”. Sim, todos deveriam envidar os seus maiores esforços para a PAZ, mas quando encontramos pela frente um Putin que tanto diz uma coisa como o seu contrário, tudo se torna mais complicado. Então qual a solução, mantendo a integridade da Ucrânia, saberá o Illmo. Sr. Carlos Matos Gomes apontar?

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