(Júlio Marques Mota, in a Viagem dos Argonautas, 26/04/2022)

A guerra aí está com toda a sua violência e não sabemos até quando. O que sabemos é que a Ocidente a narrativa imposta é de que esta é o crime de um homem apenas, Putin, de um eixo do Mal contra o eixo do Bem que é o Ocidente. Quem disser o contrário, ou melhor, quem disser assim mesmo, que a culpa não é só de um homem, Putin, será acusado de Putinista. Dito de outra forma, quem não estiver de acordo com a narrativa de Washington e de Kiev, o melhor que tem a fazer é estar calado. Impera a lei do pensamento único e é por este caminho que se mina a democracia.
Tudo isto me faz recordar um velho conhecido do século XIX, John Stuart Mill, que escreveu naquele tempo: “Quando encontramos pessoas que constituem uma exceção à aparente unanimidade do mundo a respeito de um assunto qualquer, mesmo que o mundo esteja certo é provável que os dissidentes tenham alguma coisa a dizer que vale a pena ouvir e que a verdade perca algo com o seu silêncio”.
Concordo plenamente e discordo da narrativa oficial. Já fui acusado de muita coisa; de trumpista, de putinista e de lepenista.
De forma rápida vejamos cada uma das críticas.
Sobre Trump disse duas coisas e depois mais uma. Disse, aquando das primeiras eleições que ganhasse quem ganhasse a América já tinha perdido. A América tinha-se tornado uma sociedade dividida a meio! Isso provou-se. Disse como segunda coisa, que a vitória de Trump era um produto do Partido democrata, das políticas por ele seguidas, as políticas que eram o substrato da financeirização e da globalização feliz, do trickle-down! Exemplos: no final do mandato de Clinton este revogou o que restava da lei Glass-Steagal. Depois, o Secretário do Tesouro, Robert Rubin, que aprovou a revogação, sentava-se na cadeira do CitiCorp com mais de 50 milhões de remuneração por ano! Cerca de 8 anos depois a bolsa entrava em colapso. Creio mesmo que o último ato de Clinton foi o perdão presidencial para um dos maiores traficantes mundiais de sempre, Marc Rich, o dono de Glencore.
Depois com Obama temos o Presidente que melhor falou sobre a desigualdade de repartição do rendimento e nunca esta cresceu tanto como no seu reinado. Uma afirmação apoiada numa pesquisa organizado por um site insuspeito, Mother Jones. Um reinado, o de Obama, “salpicado” por sete guerras, se a memória não me falha e, curiosamente, com ele houve mais guerras do que no tempo de Bush. Foi com Obama que se deu a usurpação de direitos que cabiam exclusivamente ao Senado! Uma usurpação que mais tarde, é também concedida a Trump por democratas e republicanos em conjunto, o que levou Andrew Basevich a afirmar que os Democratas gostam muito do que Trump faz mas não gostam é que seja ele a fazê-lo.
Quanto à financeirização e à globalização feliz tomemos como base, por exemplo, a reportagem publicada por mim sobre a cidade de Warren (ver aqui). Aí se explica a deslocação do eleitorado industrial dos democratas a favor de Trump. Mas que disse a senhora Clinton? Disse que se tratava de deploráveis! Como se a América fosse um país de deploráveis!
Disse depois mais uma coisa, no final do seu mandato, uma coisa extraordinariamente incómoda: disse que Trump tinha sido o político que melhor se comportou nas políticas de apoio às populações mais fragilizadas pela crise de Covid 19. Refiro-me ao primeiro pacote de medidas de apoio. Quanto ao segundo pacote de medidas, as manobras dos democratas em exigirem um grande pacote para ele dizer que não, e as manobras de Trump para acusar os democratas de quererem este mundo e o outro para levarem o país à ruína, levou a uma situação de crise para muita da população até que alguém o avisou que ele estava politicamente a fazer um jogo muito perigoso para a sua candidatura. Trump quis recuar, mas…tarde demais: os prazos constitucionais levaram a que o segundo pacote de Trump de medidas de apoio à crise Covid 19, fosse assinado depois das eleições de Novembro, e assinado por Biden. Nesta última matéria apoiei-me num analista insuspeito, Matt Ford, publicado num jornal igualmente insuspeito, The New Republic. O meu trumpismo resulta pois da minha análise crítica às forças que deram origem à sua criação. Daí a incomodidade de ser incómodo
Por dizer estas duas coisas mais uma fui acusado de trumpista!
Quanto a Marine Le Pen a questão é também curiosa. Perdeu as eleições de agora e perdeu as anteriores, ambas contra Macron. Marine Le Pen é classificada como sendo de extrema-direita. E Macron? Macron, um democrata apenas, o líder do partido En Marche, o líder de um partido sem história, de um partido criado especificamente para o justificar como Presidente.
Macron, Hollande e Manuel Valls são figuras responsáveis pelo estilhaçar do espetro político francês. Macron foi ministro da Economia no governo de Valls e a ferocidade com que atacou os direitos dos trabalhadores não será facilmente esquecida pela população francesa.
E que digo eu aos meus amigos? Em França não votaria nem Macron nem Marine. Ambos são de direita e a política seguida por Macron, que já vinha desde Hollande, tem sido a política dura contra os que trabalham, a política da troika sem a troika, como Trichet e Draghi quiseram também fazer com Berlusconi. Mas quanto à responsabilidade de Macron nesta história, o registo foi completamente limpo e fica-se com um impoluto democrata em que devemos votar como esquerda que somos. É o que nos dizem.
Imagino os vómitos de Mélenchon com esta segunda volta em que apela apenas a que se não vote Marine mas depois é obrigado a pedir aos seus militantes que votem Macron, eles que o tomaram sempre como adversário! Se do ponto de vista do imaginário político diríamos que Macron e Marine são diferentes – e são -, do ponto de vista das políticas económicas e sociais não creio que haja diferenças significativas que me levem a distinguir um do outro. Curiosamente, situando-nos no terreno prático, nem sequer do ponto de vista das migrações as diferenças são sensíveis, para considerarmos Macron como um democrata e Marine como uma fascista.
Encontramos aqui o mesmo problema com Trump e os Democratas. Se Macron não é de direita, e da dura, como se explica esta enorme fratura eleitoral onde ele, além de dividir a sociedade francesa e perigosamente, ganha com os votos da esquerda radical que ele tem tomado como principal adversário? É assim, porquê? Porque fez políticas de esquerda? Claro que não. É essa ausência de política social – e a existência da POLÍTICA SOCIAL é uma característica da esquerda que se preze de o ser (mas não uma política social qualquer….) -, que leva as pessoas desesperadas a procurarem uma outra solução, tal como aconteceu com as primeiras eleições com Trump. Macron ganha à custa da diabolização de Marine e estou de acordo com Jacques Sapir: o programa económico de Marine nas penúltimas eleições era bem mais próximo daqueles que trabalham do que o de Macron. Quanto a estas últimas eleições não falo porque foi assunto que não me interessou e não acompanhei.
Pensa-se hoje que nesta segunda volta 59% dos votantes em Mélenchon votaram em Macron, votaram naquele que era o seu adversário, e 41% votaram Marine Le Pen! Para termos uma ideia do doloroso desta segunda volta, imagine-se Mélenchon a pedir aos seus militantes dos Coletes Amarelos, que votem naquele que ao longo dos meses mandava a polícia de choque para cima deles. Imagine-se a “raiva” daqueles que ficaram literalmente cegos de uma vista por terem sido atingidos pelas balas teleguiadas que contra eles foram disparadas pela polícia de choque aquando das manifestações dos Coletes Amarelos a ouvirem Mélenchon pedir-lhes que votassem Macron!
Será que estes 41% de apoiantes de Mélenchon, que à segunda volta votaram Marine Le Pen, também serão apelidados de deploráveis como foram os sindicalistas americanos que votaram Trump? Aqui fica a pergunta chave: será mais indigno votar em quem seguiu políticas contrárias aos seus interesses de classe, como foi o caso das políticas de Macron, ou votar a favor de quem lhes parece estar mais próximo dos seus interesses de classe, neste caso a Marine Le Pen atual? De novo aqui, sou lepenista porque faço a análise crítica das forças que deram a força a Marine Le Pen, que lhe deram a força que tem hoje. E essa força de Marine Le Pen, lamento dizê-lo, é o resultado das políticas de direita, feitas pela dita esquerda oficial, de François Hollande a Macron, com a destruição do PSF pelo meio disto tudo! De novo aqui, a incomodidade de ser incómodo.
Terceira crítica: sou acusado de putinista. Porquê? Porque não diabolizo Putin, porque não circunscrevo as críticas a um só homem, Putin, porque coloco as críticas à situação com base nas circunstâncias que a criaram, e nestas há culpados dos dois lados, do lado do Ocidente, da NATO, dos nazis de matriz ucraniana liderados por Zelensky e, logicamente, por Putin igualmente. É a partir deste enquadramento que defendo, e urgentemente, que os beligerantes principais se sentem à mesa das negociações e estes são sobretudo, por um lado, os financiadores da guerra global pretendida por Zelensky, a União Europeia, a NATO, os americanos, e, por outro lado, os russos e os ucranianos, uma vez que a guerra é basicamente entre os financiadores e os russos.
As vítimas imediatas desta guerra são o povo ucraniano e o povo russo. Este caminho que defendo é inverso ao da diabolização que os meus críticos defendem, que defendem mais armas e mais armas, tornando por cada dia que passa mais estreito o caminho para a paz tão necessária quanto urgente. De resto, os indignados contra mim querem fazer uma limpeza na História, como se do lado ocidental estejam os moralmente impolutos, as pessoas que têm direito à indignação e, do outro, os malditos, os assassinos.
A leste da Europa o cartão-de-visita da NATO é simplesmente pavoroso: o povo sérvio mantém prédios destruídos por recuperar para que a memória não morra, enquanto as limpezas étnicas na Bósnia e na Croácia aí estão a servir de modelo a Zelenky para a sua lei sobre a pureza étnica aprovada em 2021. Curiosamente, e espantosamente, os que o Ocidente tem abrigado nestes combates de décadas no leste da Europa são os descendentes das forças que estiveram ao lado de Hitler, na Croácia, na Bósnia, na Ucrânia.
Mas a NATO que não quer desmilitarizar a Ucrânia, que não quer autonomias nesta região, é a mesma NATO que retalhou a Jugoslávia como quis e lhe apeteceu. Mais um dado curioso dos países impolutos: tão impolutos que o seu país líder, os EUA, que desde os anos 60 tem estado sempre em guerra, fala em Tribunal Internacional de Haia para Putin quando não reconhece este Tribunal sequer, porque façam o que façam os seus militares, eles serão sempre militares impolutos, não passíveis, portanto, de irem a esse Tribunal Internacional. No fundo, o meu putinismo resulta ou é devido ao facto de fazer a análise crítica do que nos trouxe até aqui, até esta situação. Dito por outras palavras, a incomodidade de ser incómodo.
Pois bem, ontem tive conhecimento de um texto que apresenta pontos de vista não muito diferentes dos que tenho defendido e a quem claramente não poderão chamar de trumpista, lepenista, putinista. Trata-se de um olhar crítico sobre a guerra da Ucrânia e extensivamente sobre a moral dos que estão do lado de cá, os impolutos a que implicitamente se referem os meus críticos, escrito como eu nunca serei capaz de escrever, com uma lucidez que eu nunca serei capaz de ter, com um sentido de ordem moral que eu nunca serei capaz de descrever. Trata-se Noam Chomsky, de uma entrevista que concedeu, conduzida por C.J. Polychroniou e publicada pelo sítio Truthout com o título “Noam Chomsky: Russia’s War Against Ukraine Has Accelerated the Doomsday Clock”.
E a conclusão é: há direito à indignação e muita, mas contra os dois lados da contenda, o que desde o princípio tenho sempre defendido. Sejamos claros nisso. Só assim é possível procurar o caminho da paz e acabar com urgência o caminho da guerra.
O dito texto, traduzido para português, pode ser lido aqui.
Pois não é o único. Quanto mais vozes a clamar pelo óbvio melhor. Há muita porcaria de direita, claramente a caminho do fascismo/nazismo (o último estágio da degradação intelectual conservadora), mas que são considerados de “esquerda” ou moderados que seja apenas… porque trazem sempre à direita deles um louco extremista aos berros. O Ted Bundy é um anjo quando comparado com Hitler, mas isso branqueia o facto de ter matado muita gente inocente? Obviamente que não, mas na política parece que esta regra não se aplica…
Desde há uns anos para cá que partidos assumidamente de direita, incapazes de fazer oposição por falta de integridade ideológica ou simplesmente inteligência, limitam-se a abraçar o absurdo e grotesco por forma a cativar os extremos da população, uma vez que já perderam todos os outros sectores.
E é assim que se consideram aberrações democráticas como Macron, o partido Democrata americano, Hillary Clinton ou mesmo o PS como “alternativas de esquerda” apenas porque a direita “a sério” está tão extremista, tão fora de controlo, que qualquer político que consiga fazer um discurso público sem demonizar uma minoria, ou simplesmente manter as calças vestidas por uma hora, é automaticamente considerado esquerdista quando nada na sua ideologia ou mensagem o qualifica para tal.
Não podia estar mais de acordo com a palhaçada conservadora que são as eleições francesas. Estas estão apenas 2 níveis abaixo do “shitshow” que foram as duas últimas eleições americanas. E em relação a estas, o comentário que melhor caracteriza o teatro Kabuki que por aqueles lados ainda consideram “democracia” veio através do eleitor mais normal do mundo. Algures em 2016, num daqueles “town halls” que a CNN organizava de vez em quando para manter a ilusão de que é uma estação a sério, perguntaram a um senhor em quem iria votar em Novembro próximo e porquê. O senhor deu a melhor resposta que ouvi até hoje: com ar enjoado, virou-se para a repórter e disse “300 milhões de americanos e estes são os 2 melhores que conseguiram arranjar?” Simplesmente brilhante! E no processo conseguiu evitar decidir entre o cancro na próstata da Hillary Clinton ou o cancro no cólon do Donald Trump.
Porque é para aqui que a política nos países ditos democráticos caminha: a cada 4 anos pedem às pessoas para escolher entre um pontapé na orelhas ou no nariz. O pontapé vai acontecer e vai doer para caraças, mas a escumalha de direita acha que se legitimiza por dar a escolher aonde pode doer menos. Parvos…
Bom comentário.
Engraçado como a “incomodidade de ser incómodo” é tão transversal a este mundo!!!