As inteligências inúteis e as interrogações necessárias

(Major-General Carlos Branco, in Público, 15/04/2022)

Os “cândidos” não se apercebem das falácias nem se mostram disponíveis para lidar com contradições das narrativas por que decidiram, a priori, tomar partido. Creem que o seu intelecto adiantado os torna invulneráveis a spin doctors. Tratam os oponentes como seres mórbidos e acéfalos.


Maria João Marques (MJM) publicou neste jornal a 6 de abril um artigo onde equipara o negacionismo do holocausto àquilo a que chama negacionismo no caso do massacre de Bucha, dando o meu nome como um exemplo desse negacionismo, dizendo que eu me interroguei porque teriam os russos assassinado ucranianos que tinham colaborado com eles. Refere, num raciocínio de conveniência, que é preciso uma investigação independente, para logo de seguida acrescentar que “até lá temos de suspender a nossa inteligência e não concluir que a Rússia é a muito provável responsável pelo massacre de Bucha. Afinal, porque pensaríamos ser mais provável ver corpos atirados para valas comuns por um invasor do que pelos militares do próprio país?” Ninguém sugeriu essa conclusão.

MJM não necessita de suspender a sua inteligência, precisa sim de absorver o conceito de prova. Para fundamentar a sua hipótese (não é tese pois não tem sustentação empírica), evoca diligentemente as “imagens de satélite mostrando os corpos nas ruas de Bucha há várias semanas”. Segundo MJM, “tudo pode ser questionado. Há quem questione se a Terra é plana. Sucede que, às tantas, questionar certas realidades tão grandes, tão maléficas, tão evidentes não é nenhum ato de inteligência.” Porém, tal como correlação não é causalidade, também algo que pareça evidente ou óbvio não constitui necessariamente uma prova. Isto é, os factos brutos imediatos não falam sozinhos: têm de ser desintermediados (colhidos nas fontes), sistematizados (organizados) e validados (sujeitos a escrutínio metódico).

O artigo de MJM transporta-nos igualmente para o ecossistema do comentariado que utiliza princípios absolutos de demarcação como nós-eles, bons-maus, heróis-vilões, preto-branco. Os especialistas em operações de informações e operações psicológicas classificam estes comentadores em três grupos, concebendo themes and messages dirigidas para cada um deles: os militantes, os dúplices e os cândidos.

Os “militantes” subdividem-se em dois grupos, segundo a sua principal motivação: os ideológicos e os avençados. Os ideológicos recorrem a mentiras e à descredibilização dos oponentes denegrindo o seu carácter, acusando-os de traição, de estarem ao serviço do inimigo, etc. Os avençados têm tarefas definidas por cartas de missão, recebem diariamente o pacote da informação que têm de debitar nos telejornais, têm uma linguagem fluida, não se engasgam, têm o discurso pré-programado.

Os “dúplices” são pessoas bem informadas. Alguns têm longa experiência internacional e tiveram (ou ainda têm) acesso a informação não-pública. Sabem que este conflito se enquadra numa great power politics, sabem que o Ocidente é o principal responsável pela crise ucraniana, e que Washington esteve por detrás do derrube de Ianukovitch, etc. Não é preciso lembrar-lhes o que já foi descodificado por Victoria Nuland, uma das protagonistas-chave do golpe de estado de 2014: “we will inflict a geopolitical defeat on Russia in Ukraine”. Refugiam-se, paradoxalmente, em argumentos não explicativos. Um exemplo consagrado da sua pseudoanálise é a referência ao conflito entre democracias e autocracias (como se a China, por exemplo, caso fosse uma democracia liberal, alguma vez se comportasse submissamente na arena internacional como o Reino Unido ou a Europa). Depois acusam os oponentes de serem intelectualmente confusos e das suas pretensas abordagens geopolíticas se encontrarem em boa parte obsoletas, pois datam da Guerra Fria. Esquecem-se convenientemente do Brzezinski da década de 1990 e de alguns teóricos das relações internacionais.

Sabem que este conflito se enquadra numa great power politics, sabem que o Ocidente é o principal responsável e que Washington esteve por detrás do derrube de Ianukovitch, etc

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Temos finalmente os “cândidos”, um grupo constituído por intelectuais, pessoas inteligentes, mas maioritariamente ingénuas. O seu nível cultural (acima da média) leva-os a ter uma elevada autoestima e a falar de tudo com desenvoltura e conhecimento. Não se apercebem frequentemente das falácias que os animam, nem se mostram disponíveis para lidar com contradições das narrativas de que decidiram, a priori, tomar partido. Creem, que o seu intelecto adiantado os torna invulneráveis a spin doctors. Tratam os oponentes como seres mórbidos e acéfalos, com a “inteligência suspensa”. MJM enquadra-se neste grupo.

Não sei se foram russos ou paramilitares ucranianos os perpetradores o massacre de Bucha. Talvez por ter vivenciado situações idênticas, é meu dever interrogar-me sempre sobre elementos factuais que não se articulam facilmente com interpretações simplistas. Poderia dar muitos exemplos, mas limitar-me-ei a dois, que ocorreram no Teatro de Operações da antiga Jugoslávia, um deles vivido bem de perto: o bombardeamento do mercado de Sarajevo, em agosto de 1995; e o massacre de 45 alegados aldeãos albaneses kosovares, na aldeia de Račak, em janeiro de 1999. Ambos contribuíram decisivamente para moldar opiniões e preparar psicologicamente a opinião pública internacional para aceitar e justificar, no primeiro caso, o bombardeamento dos bósnios sérvios e, no segundo, da Jugoslávia. Apesar das certezas do momento, e das imagens a que MJM tanto adere, muitas vezes o que parece não é.

Os dramáticos acontecimentos de Bucha suscitam interrogações incómodas. Porque é que o presidente da Câmara, na visita que fez à cidade no dia 31 de março, após a retirada russa, disse que estava tudo bem e não referiu quaisquer cadáveres (entrevista ao canal Ukraine 24, a 1 de abril)? Porque é que a Guarda Nacional ucraniana, na operação de limpeza realizada no dia 1 de abril, não deu conta de mortos nas ruas? Porque é que a primeira menção aos mortos só é feita três dias após a partida das tropas russas? Porque é que a esmagadora maioria dos corpos tinham uma braçadeira branca? Porque é que corpos encontrados em outras partes da cidade se encontravam próximos de restos da ajuda alimentar russa? Não é notável a coincidência dos corpos na estrada se encontrarem em posições alternadas com uma separação regular entre eles? Será que estamos esquecidos do comportamento das tropas russas noutros locais, quando confrontadas com população hostil, tantas vezes mostrada nas televisões? O que os teria então levado a adotar um comportamento diferente em Bucha? As interrogações não ficam por aqui.

Em última análise, o nosso futuro coletivo vai depender do desfecho desta guerra. Por isso, talvez faça sentido mais pensamento útil e mais humildade intelectual. Porque no final perderemos todos, e bastante.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico


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4 pensamentos sobre “As inteligências inúteis e as interrogações necessárias

  1. Mais um grande texto do Major-General Carlos Branco. A definição dos 3 tipos de comentadores/propagandistas é deliciosa, e bate 100% com aquilo que se sente ao ver os canais mainstream, mesmo por parte de quem não tinha essas definições na ponta da língua. Quanto ao texto, vou citar esta parte, que é exatamente aquilo que eu ainda pergunto sobre Bucha, e dar as respostas incómodas que os Ukronazis e suas cheerleaders Ocidentais não toleram que venham a ser dadas por uma investigação independente:

    1) «Porque é que o presidente da Câmara, na visita que fez à cidade no dia 31 de Março, após a retirada russa, disse que estava tudo bem e não referiu quaisquer cadáveres (entrevista ao canal Ukraine 24, a 1 de Abril)?»
    2) «Porque é que a Guarda Nacional ucraniana, na operação de limpeza realizada no dia 1 de Abril, não deu conta de mortos nas ruas?»
    – O autarca não referiu cadáveres e a Polícia Nacional não deu conta de mortos, porque não viram nenhuns. Simples. E inclino-me mais para a possibilidade de não os terem visto, porque não existiam. Estes vídeos foram muitas vezes mostrados na RT, censurada no Ocidente. Se isso não diz tudo, diz muita coisa.

    3) «Porque é que a primeira menção aos mortos só é feita três dias após a partida das tropas russas?»
    – Lá está, porque só 3 dias depois é que tinham corpos para mostrar. Se estivessem em valas comuns, tinham desculpa “ah e tal, só agora é que vimos a terra mexida”. Mas não! Estavam no meio da estrada. Também aqui há vídeos esclarecedores, que mostram os ucranianos a mover e a posicionar os corpos nos locais e posições mais tarde filmados para Ocidental ver…

    4) «Porque é que a esmagadora maioria dos corpos tinham uma braçadeira branca?»
    5) «Porque é que corpos encontrados em outras partes da cidade se encontravam próximos de restos da ajuda alimentar russa?»
    – Aqui, basta saber o que se passou na Ucrânia desde 2014, com vídeos, reportagens, documentários, e relatórios elaborados pela Amnistia Internacional, Human Rights Watch, e ONU: a limpeza étnica levada a cabo contra os que foram e são contra o golpe nazi-fascista pró-NATO de 2014. Desaparecimentos, detenções arbitrárias, espancamentos e tortura, “justiça” no meio da rua, gente amarrada a postes e cara pintada de verde com algo tóxico, etc. Se a língua russa e canais russos e partidos pró-Russos (ou moderados como o das Regiões no poder de 2010 até 2014) foram todos proibidos na Ucrânia, imagine-se o que esta gente (Ukronazis de Azov, do SBU, etc) terá feito a quem usou braçadeira branca que indica colaboração/tolerância para com o exército russo. Não é preciso imaginar, vimos o resultado em Bucha…

    6) «Não é notável a coincidência dos corpos na estrada se encontrarem em posições alternadas com uma separação regular entre eles?»
    7) «Será que estamos esquecidos do comportamento das tropas russas noutros locais, quando confrontadas com população hostil, tantas vezes mostrada nas televisões?»
    – Exatamente. E querem-nos convencer que os observadores dos satélites Maxar, que andavam naquela região o tempo todo, e que viam tudo, mas só viram corpos (na realidade meia dúzia de pixels mais negros, que tanto podem ser corpos, como edições da imagem, como poças ou lixo ou destroços) tantos dias após os russos saírem?
    E há ainda a acusação, vinda da Rússia, de que o tal satélite da Maxar, não tinha uma órbita compatível com as fotografias tiradas alegadamente naquela data (19-Março), ou a pergunta feita por outro nosso militar sobre o estado de decomposição dos corpos, que teria de ser muito mais avançado caso essa data fosse verdadeira.
    E depois todos vimos, ou devíamos ter visto, os militares russos “da linha de trás” (os dos camiões, das operações de estabilização da ocupação, de distribuição de água e comida, etc), nos locais onde houve manifestantes locais, a recuar lentamente e em paz perante essas pessoas.
    O oposto do que os Ukronazis fizeram aos ucranianos russófonos nos últimos 8 anos, chegando a matar +13 mil no Donbass, provocar 1 milhão e meio de refugiados dessa guerra no Donbass, já para não falar de refugiados não contabilizados que fugiram de outras zonas, para por exemplo evitarem o mesmo destino dos desgraçados queimados vivos em Odessa.

    Há quem diga no SouthFront que a Rússia cometeu um erro ao não esperar que a Ucrânia atacasse primeiro. Eu pergunto: onde estiveram nestes 8 anos? Os bombardeamentos de Lugansk e Odessa, e a promessa de atacar também a Crimeia, não foram um primeiro passo suficiente para justificar a defesa por parte da Rússia?

    E por cá outros dizem que a guerra é injustificada, que a NATO isto e os EUA isso e o regime Ucraniano aquilo. Mas no final dizem que a invasão é indesculpável e só a Rússia é culpada? É uma incoerência argumentativa, principalmente no último texto do Miguel Sousa Tavares (que de resto é muito bom), que já me vai fazendo comichão.

    Então se Espanha tiver um golpe de Estado patrocinado por um inimigo histórico de Portugal (que passe a vida a dizer que nos quer destruir) que coloca o VOX no poder, em que as línguas catalã e basca voltam a ser proibidas como no tempo de Franco, em que há uma guerra contra a Galiza durante 8 anos com bombardeamentos junto à nossa fronteira, em que esse povo galego diz que quer fazer um referendo à independência e logo a seguir fazer um referendo sobre a adesão a Portugal, e se 8 anos depois desta situação, o líder de Espanha tem batalhões nazi-fascista prontos a invadir uma parte de Portugal, e ameaça o nosso país com armas biológicas e nucleares, Portugal deve ficar à espera do “primeiro passo”, e é “inadmissível” que use a sua superioridade militar (o cenário é hipotético, claro) para tomar medidas militares de defesa, para desmilitarizar e desfascizar/desnazificar Espanha?

    Fica a minha primeira pergunta para quem quiser debater a sério. Para quem quiser ir além do «Kumbaya» ou do «põe tua mão na mão do meu senhor da Galileia» que é aquilo em que se tornou de um lado a propaganda da treta “a NATO é defensiva e vai-nos salvar”, e do outro lado os da incoerência “A Rússia foi provocada e ameaçada e o Donbass bombardeado durante 8 anos, mas ninguém podia intervir, logo a culpa agora passa toda para a Rússia”.

    Só há uma posição internacional que eu acho totalmente correta, sem qualquer incoerência, e que é o que a Europa toda defenderia se tivesse vergonha e decência: a da Sérvia e dos Sérvios. Condenam TODAS as guerras em qualquer Continente; sabem quem é o Diabo na Terra (EUA/NATO) que planeou, financiou, golpeou, armou, ameaçou e provocou esta desgraça na Ucrânia; não enviam armas para o conflito; e recusam aplicar sanções pois continuam a ter boas relações diplomáticas e económicas com a Rússia.

    E aqui chegado, deixo a segunda pergunta para quem quiser debater a sério: qual seria a inflação (entre outras mazelas) na economia Europeia se tivesse recusado imitar o polícia do Mundo na guerra económica contra a Rússia iniciado já no longínquo 2008?

    E a terceira pergunta para quem quiser debater a sério, a pergunta do milhão de dólares: qual seria a situação na Ucrânia se em vez de armas europeias, tivesse recebido incentivos (ou até ordens, como aquelas que se fazem em nome de uma décima do défice orçamental pelos ditadores de Bruxelas e Frankfurt) para cumprir os acordos de PAZ de Minsk?

    E finalmente, a quarta e última pergunta para quem ainda tiver decência e honestidade argumentativa: se o acordo de neutralidade entre Finlândia e União Soviética foi o que garantiu um “modus vivendi” e a paz naquela região durante tantas décadas, e evitou uma corrida ao armamento naquela zona, um acordo feito em nome da vida e desenvolvimento e diplomacia, mesmo estando do outro lado o 2º pior home da história da humanidade, então qual é mesmo a intenção da mais recente provocação da NATO de colocar a palerma da 1ª Ministra Finlandesa a prometer que entra no bloco militar já neste Verão, sem referendo nem nada? É para ajudar a resolver o conflito? É porque estas décadas todas de paz naquela região a incomodam? É porque uma invasão Russa que terá matado +2000 civis na Ucrânia (para impedir a Ucrânia de matar ainda mais do que os já +13 mil mortos no Donbass) é pior que um Estalinismo que matou milhões? É porque alguém em Washington a anda a ameaçar que será a próxima Jugoslávia? É porque tem curiosidade em vez como funcionam as armas da NATO usadas para matar milhões no Médio Oriente?É por ter curiosidade em ver Helsínquia a brilhar à noite com a radioactividade das bombas que vão fazer o seu país desaparecer do mapa?

    Está tudo doido!!

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