Ética e guerra

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 09/04/2022)

Mudam-se os tempos mudam-se as bondades da UE — O sócio Zelenski vem atrasado

A presidente da Comissão Europeia foi de Bruxelas a Kiev entregar uma proposta de sócio da União Europeia ao regime da Ucrânia representado por Zelenski. Vem atrasado, segundo se conclui.

Há cerca de dois meses a União Europeia ameaçava de expulsão dois Estados, a Hungria e a Polónia, por não cumprirem os critérios mínimos de transparência económica, independência do poder judicial, corrupção, perseguição de minorias.

A hipótese da Ucrânia cumprir os critérios de adesão motivava há dois meses risada geral na União Europeia, de tal modo o regime da oligarquia local estava muitos furos abaixo deles, com violência sobre minorias, desrespeito pelos valores elementares de um Estado de Direito.

Há dois meses a Ucrânia de Zelenski era um Estado mais mafioso do que a Polónia e a Hungria e do que os Estados Bálticos. Um Estado na categoria de iliberal, em que uma democracia formal justificava o poder de uma minoria oligarca. Era uma Rússia em ponto mais pequeno.

Ocorre a invasão russa e por milagre, e desfaçatez, tudo muda em Bruxelas. A Ucrânia, que se dispunha a servir de base americana junto à fronteira russa e a eliminar as populações de origem russa no Leste, para facilitar a instalação de meios de ameaça ao vizinho, passa a ser o nec plus ultra da democracia, da transparência, as suas forças armadas dominadas por forças paramilitares de cariz nazi (o dito Batalhão Azov) passam a ser heroicas defensoras da democracia e do Direito! Zelenski celebra missas em todos os parlamentos, da ONU à Austrália. Falará, em breve, presumo, no Speaker’s Corner, no Hyde Park de Londres, ao lado desse exemplar de senso e respeitabilidade que é Boris Johnson. Irá a um party em Downing Street! Porventura comprará o iate do Abramovitch (a quem a UE atribuiu uma nacionalidade, através do governo português)!

Com a invasão, a Polónia, uma teocracia reacionária gerida por um gnomo antidemocrático — iliberal como se designam agora os neofascistas — passa a ser milagrosamente um exemplo, porque acolhe refugiados, recebe os gigantescos fundos da União Europeia (os nossos impostos) e autoriza bases americanas, logísticas e operacionais para atacar a Rússia, incluindo bases de misseis balísticos com ogivas nucleares! Um aliado abençoado!

Ao lado da Polónia, um regime igualmente oligarca e corrupto, o de Orbán, na Hungria, que fez outra análise dos seus interesses, concluindo (para já) pela conveniência de não se meter debaixo do guarda-chuva americano (aumentando o seu valor no mercado das alianças, porventura) e de lhe servir de albergue, passou a ser execrável, anti-democrata, putinista. Pelo menos por enquanto.

Estamos assim conversados quanto à seriedade política da União Europeia, quanto à invocação da ética e dos princípios por parte dos dirigentes da UE. Gente que disfarça o mau cheiro com desodorizantes!

Há muitas pessoas respeitáveis que defendem esta utilização da ética em Roll-on ou em spray e dos princípios à la carte, segundo as conveniências. Uma ética tipo concertina que estica e encolhe!

Acompanho-os nesse pragmatismo, devedor de Kant, para quem a ética é uma disciplina ligada a um uso prático da razão, isto é, voltada para a ação e para a obtenção de vantagens, que ele designou como o “viver bem”.

Todos pretendem viver bem. O problema é que todos vivemos em conflito com os interesses dos outros. Para alguns, como eu, a paz resulta da conveniência de não fazer a guerra. Para outros, mais decididos, a guerra é um jogo de tudo ou nada: obriga-se o inimigo a jogar todo o seu dinheiro (encavar, no póquer) e aguarda-se que o resultado seja vitorioso. Vitória ou morte!

O pensamento de Kant é, aliás, o orientador dos belicistas que defendem que à invasão da Rússia se reponde acentuando o confronto, aumentando a violência, elevando os patamares de destruição, alimentando as capacidades destruidoras das armas até a um conflito final, que hipocritamente nunca referem como sendo a defesa de utilização de armas decisivas, nucleares. Kant contestou o pensamento de Platão e de Aristóteles, que assentaram as bases do pensamento ético na busca da razoabilidade das ações morais e na sua inteligibilidade. Está na moda.

Estamos hoje no mundo dos defensores dos princípios da ética assentes na emoção que esconde, ou serve o interesse de alguém. Numa situação típica das religiões, que transformaram a ética em fé, e das igrejas, em que a bondade e os princípios dos fiéis servem os interesses dos sacerdotes e das cúrias. As cruzadas são um exemplo deste aproveitamento da ética para fins materiais e de apropriação do poder.

Adiante-se que esta guerra está a servir para consolidar o poder da oligarquia ucraniana, que era execrada há menos de dois meses pelos “democratas humanistas” de Bruxelas! (Mudam-se os tempos…)

Pelo que se vê claramente na mudança da atitude e de julgamento da União Europeia relativamente ao regime ucraniano após 24 de Fevereiro de 2022, não existe para sua defesa nenhum argumento de ordem moral — defesa do Bem, pois o regime não mudou de essência nem de tripulação — nem nenhuma inteligibilidade, a não ser a do seguidismo da estratégia dos Estados Unidos.

Não se tendo alterado a natureza do regime de Kiev, porque não recebeu a UE Zelenski em Bruxelas logo após a passagem do ano, evitando estes incómodos e emoções à senhora Van Der Leyen e ao senhor Borrel?

A invocação da virtude como valor ético (Tomás de Aquino) não faz qualquer sentido nesta disputa entre os belicistas invocadores do princípio de que, sendo a sua guerra (a da Ucrânia e Estados Unidos) uma guerra justa, ela deve ser travada a todo o custo, até à vitória final, a destruição do inimigo; e os que entendem que, não havendo guerras justas, nem razões absolutas, todos os poderes exteriores deviam contribuir para uma paz que evitasse ou prevenisse a continuação da barbárie.

Ou é esta continuação de realidades exploradas à exaustão e com claros intuitos de servirem de alimento à guerra o que pretendem?


Gosta da Estátua de Sal? Click aqui.

7 pensamentos sobre “Ética e guerra

    • Tomaras tu ter na cabeça os eflúvios que brotam do suor dos pés do CMG! Talvez assim tivesses nível e capacidade intelectual para discutir com ele! Como não tens limitas-te a emitir haikus de homúnculo que não passam de flatulências mentais. Estuda e cresce.

  1. Quem, em 31 de Julho de 1975, encabeçou uma tentativa de saneamento do comandante do Regimento de Comandos, coronel Jaime Neves, o homem que, em 25 de Novembro seguinte, seria uma das destacadas figuras militares que salvaram a revolução de Abril?
    Quem, porventura vítima de confusão ideológica, tentou perturbar, felizmente sem sucesso, a ordem interna da unidade militar que haveria de salvar a Revolução de Abril?
    O que teria sido do nosso país caso tivesse triunfado a facção identificada por um radicalismo de esquerda completamente avesso à realidade nacional, ainda por cima presumindo-se genuinamente representado na ponta das espingardas?
    Admite-se que essa atitude, irreflectida e precipitada, terá sido fruto de imaturidade política, mas também reveladora de uma inconsistência ideológica ou mesmo de um estado de infantilidade intelectual.
    Hoje, o cidadão que lê certas exalações mentais fica perplexo por não discernir diferença ideológica substantiva entre os extremos políticos, quando se defende um regime totalitário e criminoso e noutros trâmites de intervenção mediática se aparenta ideologia de esquerda.
    Portanto, a infantilidade intelectual não tem prazo de duração e pode ser tão longeva quanto a diversidade de artifícios e sofisticações com que se adorna a inteligência e os comportamentos.
    Bem disse Ludwig Wittgenstein que a filosofia é uma batalha contra o enfeitiçamento da nossa inteligência por meio da linguagem.

  2. Mais dois excelentes textos deste senhor.
    A hipocrisia dos Eurofanáticos e propagandistas da NATO (com saco azul da CIA no bolso) desmontada com enorme classe.

    A propaganda é esta (e infelizmente a maioria come a palha sem desnconfiar): se o regime defende os interesses do Ocidente, até Pinochet é chamado de “democrata”; mas se recusa ser vassalo da oligarquia ocidental, até uma criança afegâ/iemenita/palesriniana a morrer à fome è chamada de “terrorista”.

    E ai de quem se atreva a discordar. De facto, o Pacheco Pereira bem disse que hoje em dia.continua a haver censura, incomparável à barbaridade da ditadura fascista, mas ainda assim censura.

    Antes o “subversivo” ia preso, agora é apenas tornado em persona non grata na “imprensa livre”. Antes a polícia política PIDE usava o lápis azul e proibia a publicação da “má opinião”, hoje basta um capataz leal aos interesses do dono e dos patrocinadores a fazer o “critério editorial” onde há espaço até para NeoFascistas, mas ai de quem critique Zelensky.

    Uma nota sobrr Orbán: ele é de facto NeoFascista, mas deu uma lição ao Ocidente. Ele e o seu eleitorado. São pela paz, pelo diálogo com a Rússia, pela defesa da estabilidade económica, e contra o envio de armas para o Batalhão Azov com o único objetivo de prolongar a guerra.

    É triste dizer isto, mas quem nos dera ter 25 Orbáns na Europa neste momento. Se calhar, a esta hora, teríamos paz, e a “breaking news” seria a cimeira entre Putin e Zelensky para assinar o acordo de neutralidade (como o feito entre Finlândia e URSS).

    Mas esperam lá um bocado, que a Le Pen pode ser já a próxima. Macron 2017 = Le Pen 2022. Está quase… E ainda agora vamos no início dos efeitos dos tiros nos pés da Europa Eurofanática, Atlantista vendida e belicista, e NeoLiberal pró oligarquia ocidental.

    PS: e esta hipocrisia da Europa e do “pensamento” único sobre esta invasão é tal, que até os vassalos alemães já insultam a história da governação de Merkel. Quando o povo estiver a passar frio no Inverno, quero ver o apoio popular que sobrará aos que agora insultam a diplomacia de Merkel em relação à Rússia e ao seu gás. It’s the economy, stupid!

    • Lol.
      E que território iria a Ucrânia ceder para ter a “paz dos nossos tempos”?
      Quem iria ser o país seguinte a ser chantageado?
      Esse tipo de abordagem já falhou no passado.
      Um certo cabo austríaco, que parece que encarnou no ditador neo-fascista russo, que não deseja “espaço vital”, mas que deseja reintegrar os 25 milhões de cidadãos russos deixados de fora pela implosão da URSS.
      Já se sabe como acabou no passado.
      Parece que para o novo Czar russo, o futuro é igualmente sombrio.

  3. Lol.
    Bases de mísseis balísticos com ogivas nucleares?
    O Sr. Coronel deveria saber que os mísseis balísticos americanos (os Minuteman III) estão baseados nos EUA, onde podem destruir qualquer ponto do território russo? E que a outra parte da tríade nuclear americana está no mar, composta pelos submarinos da classe Ohio, cada um equipado com 24 mísseis Trident D-5?
    E que curiosamente, os americanos não têm mísseis balísticos de curto alcance ou mísseis de cruzeiro com capacidade nuclear?
    Para Coronel, anda mal informado…. ou anda a espalhar as tretas russas para justificar uma invasão ilegal.
    Por falar nisso, onde anda a condenação da invasão russa pelo Sr. Coronel?

Leave a Reply to Aguinaldo FariaCancel reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.