“Relativismo moral”

(Manuel Loff, in Público, 22/03/2022)

Manuel Loff

Indigno é ver que quem impôs este boicote nunca se lembrou de o fazer para castigar os EUA pela invasão do Iraque (meio milhão de mortos) ou pela colaboração com a Arábia Saudita na invasão do Iémen (mais de 150 mil mortos, 85 mil dos quais crianças mortas à fome).

“Hipocrisia”, “relativismo moral”. É assim que, no debate público sobre a guerra da Ucrânia se acusa de justificar a posição russa, ou diretamente de apoiar Putin, quem, mesmo condenando a invasão, procura contextualizá-la na história recente e num ciclo de guerras ilegais que os EUA, a NATO e outros aliados seus (Israel, Arábia Saudita) têm levado a cabo. Não é a primeira vez que se manipulam os argumentos – já em 2002/03 se acusava de apoiar Saddam quem criticava a invasão do Iraque pelos EUA e pelos seus aliados (entre os quais o Governo de Durão Barroso) – e se procura intimidar quem não engole a tese de que não há outra saída senão um aumento cósmico do gasto militar e substituir a ONU pela NATO na gestão da política internacional. Pelo caminho, legitimam-se todas as guerras e ocupações ilegais desde que praticadas pelo Ocidente.

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Toda esta indignação moral exige uma especial intensidade atlantista na condenação da Rússia, sem a qual, presume-se, perde-se o direito de discutir história, política internacional, racismo e neocolonialismo dos últimos 30 anos. Nela percebe-se desde o início uma extraordinária duplicidade de critérios. Por exemplo, no olhar e na sensibilidade descaradamente eurocêntrica face ao sofrimento dos ucranianos, mobilizando-se como nunca para acolher e integrar refugiados, no que, como recordava há dias o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções contra a ocupação israelita da Palestina), deveria ser “um exemplo de como todos os refugiados que escapam à devastação da guerra e económica ou à injustiça climática deveriam ser tratados pelo Ocidente, particularmente quando estas calamidades são causadas principalmente pelo imperialismo ocidental”. Contudo, sabemos bem como a UE enquanto instituição, e em especial países como a Polónia, a Hungria, a Eslováquia, os bálticos, repudiaram como “bombas humanas” aqueles que, com muito mais dificuldades que os ucranianos, atravessaram milhares de quilómetros para sair do Afeganistão, da Síria, que atravessaram (se não morreram) o Mediterrâneo.

Da mesma forma, foi sempre neste mesmo plano moral – muito para lá do boicote a instituições do Estado russo ou a magnatas que, aliados a este, acumulam lucros ilegítimos e os depositam em ocidentalíssimos offshores – que se avançou com um boicote cego à cultura e ao desporto russo no exterior, ou se obrigaram cidadãos russos a tomar posição contrária à invasão para poderem continuar a trabalhar no estrangeiro.

Indigno é ver que quem impôs este boicote nunca se lembrou de o fazer para castigar os EUA pela invasão do Iraque (meio milhão de mortos), ou, por exemplo, por, colaborar com a Arábia Saudita na invasão do Iémen desde 2014 (mais de 150 mil mortos, 85 mil dos quais crianças mortas à fome, 4 milhões de refugiados, 13% da população). São os mesmos que se opõem a (e, em vários países, criminalizam) todas as campanhas contra a ocupação ilegal da Palestina por Israel, não há três semanas, mas há 55 anos! É por isso que o BDS, um movimento que tem visado nas suas campanhas “grandes empresas e instituições cúmplices [da ocupação israelita]” mas não “cidadãos comuns, mesmo que associados a essas instituições”, se pergunta porque se não boicota a McDonald’s que mantém aberta uma filial em Guantánamo, o mais conhecido campo de tortura do mundo, ou a Airbnb, que se retirou da Rússia depois do início da invasão, mas que “continua a operar nos colonatos ilegais que Israel construiu em terras palestinianas roubadas, o que é um crime de guerra”.

Não há argumento moral viável que não assegure coerência. E é esta que, também neste caso, falta ao presidente Zelenskii da Ucrânia, para quem “Israel é frequentemente um exemplo”. Em dezembro passado, dois meses antes da invasão, já ele comparava “ucranianos e judeus” por “[saberem] o que significa defender” o seu “próprio Estado e território com armas na mão”, à custa das suas “próprias vidas” (Times of Israel, 15/12/2021) – por exemplo, ocupando a Palestina? Zelenskii, que deixou anteontem atónitos os deputados israelitas ao comparar a invasão russa ao Holocausto (Jerusalem Times, 20/3/2022), prometia em dezembro transferir a embaixada ucraniana para Jerusalém, imitando o gesto de Trump. Pelos vistos, as ocupações dos amigos são sempre boas.

O autor é colunista do PÚBLICO


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2 pensamentos sobre ““Relativismo moral”

  1. Estar na mó de baixo ou estar na má de cima faz toda a diferença.
    Os primeiros são triturados, os segundos vão de carrocel!
    Engana-se quem pensa que esta realidade pode alterar-se com palavras e boas intensões

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