Do clima de ódio ao clima de negociação vai uma enorme distância

(Júlio Marques Mota, in blog A Viagem dos Argonautas, 14/03/2022)

Tenho sido comentado por muitos dos meus amigos e inscrevo esses comentários no livro do deve e do haver (positivos e negativos) da incomodidade de se ser incómodo. Essa incomodidade chegou ao próprio blog de que sou um dos membros a editar regularmente.

Das reações dos meus amigos saliento três e depois mais uma:

“A narrativa enviada, além de requentada, (datada de 20 de Fevereiro) não tem nada a ver com as objeções, que lhe levantei. Justificar a sua posição de não condenação da Rússia, face à agressão em curso, com eventuais desvarios de terceiros, não lembra ao diabo, mas lembra à esquerda real.” (ML)

“No essencial, existe uma significativa coincidência das análises da situação que, (certamente, atrevo-me a pensar, num contexto de visão de esquerda), emergem do artigo e daquilo que o Professor tem escrito e defendido, ainda que, como é óbvio, com veemente repulsa, em ambas, como seria aliás de esperar, da guerra, associada aos cruéis danos que a mesma provoca aos povos, ucraniano e também russo, essencialmente, vítimas de muitos interesses (que não são os deles).

Mas abominar esta (e qualquer outra) guerra não nos deve inibir de pensar qual a razão da mesma estar a acontecer e porque, pessoalmente, sempre gostei de saber os “porquês”, confesso ter ficado, no caso, bem mais esclarecido com as leituras feitas sobre o que realmente possa estar em jogo.

Bem-Haja Caro Professor, pelo seu contributo.” (JR)

“Qual o sentido das palavras massacre, terror, agonia, horror, humilhação, desprezo, insensibilidade, ódio, vingança, absurdo, irreal?

Estão elas carregadas com as cinzas (e corpos) de significados esgotados?

Com que facilidade o homem renuncia à subtil película da civilização, com que facilidade o homem se esquece de ser um homem

E qual, então, o sentido das palavras sem sentido?

Haverá palavras novas para a nova história?

Onde encontrá-las?

Quem as inventará?

Quem as escreverá?

Será assim nosso destino ler o que nunca foi escrito?

Ou será que de novo a poesia e também a prosa são impossíveis depois da Ucrânia?” (OM).

Fim deste texto que tomo como terceira reação uma vez que, com a voz embargada pela comoção, o autor desta terceira referência, diz: já não precisa de procurar o sentido das palavras quando a realidade que as suporta não tem ela sentido.

Apresentadas estas três reações deixem-me então deixar aqui alguns comentários soltos em torno da realidade trágica que atravessamos.

A situação da guerra criada na Ucrânia terá gerado muito incómodo, quer do ponto de vista emocional, quer intelectual, quer dos dois e a toda a gente. Sobre isto e de forma resumida penso o seguinte:

Ninguém pode aceitar uma guerra, seja ela onde for, mesmo que já se tenham aceitado e silenciado muitas delas. Mas isso é toda uma outra história. O certo agora é que ninguém pode ficar indiferente, não só de agora com os dramas que se passam nesta Europa mártir, muitos deles praticados pelo vandalismo político dos nossos políticos. O penúltimo em data, a década perdida de 2010-2020 em nome da austeridade. Perguntem aos gregos, perguntem aos ingleses de Cameron, perguntem aos habitantes de Malta que de um dia para o outro ficaram sem dinheiro, enquanto Bruxelas deixava escapar o dinheiro dos autocratas russos para outras paragens financeiras mais seguras, perguntem aos lituanos, perguntem aos espanhóis do tempo de Rajoy, perguntem aos pais das crianças com cancro a viverem em contentores, o que pensam da austeridade imposta por Bruxelas, por Washington e Frankfurt. E a última, é esta crise, uma crise alimentada durante anos e que ganhou uma dinâmica muito própria com os acontecimentos de 2014 na Praça Maidan, cujos efeitos ao retardador nos estão agora a explodir à frente dos nossos olhos. Daí a terrível incomodidade das imagens diariamente vistas nas televisões.

Ninguém, parece-me, pode aceitar um regime autocrático, e digo parece-me porque a Europa viveu bem com ele e se viveu bem com ele é porque houve muitos europeus a darem-se bem com isso. A City de Londres foi um palco de excelência para os oligarcas russos que o sistema gerava, Paris e a Riviera francesa, alguns dos espaços de veraneio, os paraísos fiscais que rodeiam a Europa e são dela parte integrante, verdadeiros cofres protegidos exatamente pelas instituições europeias, sejam elas de cariz regional ou não. O jornal Le Monde nos anos 90 publicou páginas e páginas sobre os nababos russos na Riviera francesa e a capital londrina, tem gravado no seu corpo, nos seus prédios as marcas financeiras desses mesmos roubos.

Ainda neste tema, mais pertinho de nós, poderemos nós esquecer os passaportes dourados? Passaportes dourados para os ricos, o fundo do Mediterrâneo para os pobres como seu cemitério, parece ser a divisa europeia no plano dos factos. Quem não é contra?

Falar aqui em oposição ao regime de Putin, encarado apenas deste ponto de vista, significa simultaneamente que a oposição a um lado obriga a oposição simultânea ao outro, o que tenho feito e disso não desisto. Dito de outra forma, uma oposição ao regime autocrata de Putin impõe a oposição também ao regime europeu que desta forma participou na institucionalização do regime autocrata russo, participou no roubo ao produto do trabalho dos povos russos e ao saque dos seus recursos naturais.

Mas o muro de Berlim caiu no início dos anos 90 e com essa queda acabou-se definitivamente com a primeira guerra fria e os nossos políticos europeus e americanos rapidamente se reorganizaram para iniciarem a segunda guerra fria. É essa que às escondidas têm estado a fazer. Basta ver a evolução das bases militares americanas a cercar a Rússia. Nessa reorganização da guerra fria, a segunda, a Ucrânia terá sido uma das plataformas mais importantes, sobretudo desde Maidan. O seu sinal claro de que poderá estar a chegar ao fim é exatamente o drama que a Europa está a viver nesta altura que pode significar a passagem de uma guerra fria a uma guerra bem quente. Pense-se bem nisso, com os diabos, trave-se o caminho para essa transformação bélica em vez de estarmos apenas a diabolizar Putin e a queimar os cartuchos para uma possível negociação.

Pela sua incompetência, os dirigentes ocidentes perderam uma oportunidade única de trazerem a Grande Rússia para o mundo das democracias de rosto humano, para o capitalismo democrático, o que exigia, diga-se de passagem, o abandono da lógica do capitalismo selvagem que ainda se defende hoje. Intencionalmente não o quiseram fazer. Preferiram o conflito constante, as bases militares sobre bases militares, a corrida sucessiva aos armamentos nucleares e não só, e esqueceram-se de uma coisa bem simples: de agressão em agressão, iam cimentando a base popular de Putin, agora um monstro.

Esta base popular, é um facto bem reconhecido num relatório do Senado francês, cito de memória, onde se dizia que Putin deu ao povo russo o sentimento de ter uma pátria! Mais ainda, nesse relatório davam-nos outra narrativa sobre a Crimeia, como uma zona “oferecida” à Ucrânia no espaço do mesmo país, a URSS, e chamavam a isso uma transferência administrativa apenas.

Foi ao ler este relatório sobre a Ucrânia que me interessei em 2014 pelo que se estava a passar neste país e publiquei uma série de artigos no nosso blog. Fiquei aterrado ao relê-los, ontem, e sugiro aos leitores que o façam também.

Mas vale a pena olhar para a Praça Maidan a partir de um artigo bem recente, (com o original aqui):

«MAIDAN, PRELÚDIO DE UM RECRUDESCIMENTO NACIONALISTA

A partida do antigo Presidente Poroshenko é acompanhada por uma liquidação política das forças “pró-russas”, acelerada pelo conflito no leste do país nas regiões separatistas de Donetsk e Luhansk. O desaparecimento de facto do Partido das Regiões leva à marginalização de outras forças acusadas de complacência para com os separatistas – e, por detrás deles, a Rússia de Putin. O Partido Comunista entrou em colapso eleitoral durante os anos 2000 (de 20% dos votos para 4% em 2014). Sem ser oficialmente dissolvida, é então proibida a sua candidatura às eleições. A Associação de Luta (Боротьба), uma organização da esquerda revolucionária, é virtualmente liquidada no oeste do país nos anos seguintes, na sequência de posições acusadas de serem favoráveis às “repúblicas populares” secessionistas.

A legitimidade de cada partido foi julgada pela sua lealdade para com a nação ucraniana. A divisão nacional torna-se assim predominante, ao ponto de fraturar mesmo correntes políticas marginais: nem mesmo o movimento anarquista ucraniano, historicamente significativo nos anos 20, se divide após 2014 sobre a questão da posição a adotar em relação aos acontecimentos de Maidan e da guerra.

Manifestantes nacionalistas a empunharem um retrato de Stepan Bandera © Yulia Arsich

 Mas são sobretudo as organizações nacionalistas que se estão a sair bem. Tal como na Hungria e na Polónia, o anticomunismo é um marco político importante, regularmente reativado num contexto de expansionismo russo associado ao seu predecessor soviético. A existência relativamente recente da Ucrânia é propícia ao desenvolvimento de uma narrativa nacional baseada noutros elementos: referências positivas ao Kiev Rus e ao Cossack Hetmanate, mas também, mais recentemente, ao período de colaboração e à UPA, o Exército Insurreccional Ucraniano de Stepan Bandera.

Este revisionismo histórico apresenta os colaboradores ucranianos do regime nazi de uma forma heróica, tendo participado na Shoah e cometido numerosos crimes, mas considerados como heróis nacionais face aos soviéticos. Manifesta-se através de homenagens (até aos nomes das ruas), manifestações públicas, e o renascimento do slogan particularmente popular “glória à Ucrânia, glória aos heróis” (Слава Україні! Героям слава!). A bandeira vermelha e preta da UPA também se utiliza amplamente como um simples símbolo patriótico.

O principal vetor “bandeirista” da extrema-direita durante os acontecimentos da Maiden foi o Partido da Liberdade (Свобода), lançado já em 1991. Este partido reúne tendências que vão desde a direita até à extrema-direita neonazi. Como o campo conservador já estava ocupado por uma série de partidos políticos, os seus resultados permaneceram modestos até um avanço eleitoral em 2012. Estava, portanto, numa posição forte durante a revolta de Maidan, ao ponto de o primeiro governo resultante da revolução ter incorporado quatro ministros do partido da Liberdade. Mas longe de tirar partido dos acontecimentos, sofreu rapidamente uma marginalização eleitoral – caindo rapidamente abaixo da marca dos 2%. O contexto beneficiou de forças muito mais radicais, mas também em grupúsculos mais pequenos.

VISÃO GERAL DAS FORÇAS NACIONALISTAS

A repressão das manifestações da Praça Maidan, os confrontos violentos com as forças pró-russas e depois o cair na guerra e a anexação da Crimeia abriram o caminho para as forças irredentistas que desejam reconquistar os territórios perdidos. É importante compreender que o nacionalismo ucraniano, impulsionado pelo revisionismo histórico que tem sido amplamente divulgado durante várias décadas, beneficia de uma sociologia muito específica. Tal como nos países vizinhos, as suas redes baseiam-se em diferentes contraculturas urbanas, recrutando em grande parte nas bancadas dos estádios de futebol em Lviv (Ultras de Banderstadt – com o nome de Stepan Bandera), Kharkiv (Ultras Metalista) ou Kiev (Ultras Dínamo). Mas a experiência da luta contra o governo e depois do conflito armado formou gerações de jovens veteranos, um fenómeno único que lembra a composição do fascismo italiano baseado no arditi (ex-combatentes das tropas de assalto).

Membros do Batalhão Azov exibindo o lobisomem. Este símbolo, que data do século XV, foi fortemente brandido pelas forças pró-Nazis durante a Segunda Guerra Mundial devido à sua semelhança com a suástica © Milena Melnik

A primeira organização a emergir no seguimento do Maidan é o Sector da Direita (Пра́вий се́ктор) liderado por Dmitro Yarosh (agora conselheiro do Comando Chefe das Forças Armadas). É uma coligação de pequenos grupos ativistas que vão desde os conservadores nacionais aos neonazis. O Sector da Direita posicionou-se como o serviço de ordem do movimento e, assim, ganhou em popularidade, ao mesmo tempo que afasta as forças de esquerda que desejavam participar (os anarquistas ucranianos foram assim proibidos de se organizarem na praça). Recrutando vários milhares de membros, a organização tornou-se estruturada. Participou nas eleições enquanto formava a sua própria unidade militar no Donbass, o Corpo de Voluntários Ucraniano.

A propaganda russa associa todo o povo ucraniano a uma minoria ultranacionalista muito real (…) Os meios de comunicação ocidentais tendem infelizmente a adotar posições igualmente campistas, apresentando a Ucrânia como uma nação homogénea e democrática, ao ponto de negar o peso das forças neofascistas” Fim de citação.

Tudo isto nos vem confirmar a tese que temos vindo a defender nos textos que publicamos em o blog A Viagem dos Argonautas, quer nos textos pessoais quer nos textos escritos por autores estrangeiros, tudo isto vem também mostrar a importância do que afirma a analista Carmo Afonso, no jornal Público, de 7 de março de 2022 (original aqui), que transcrevemos:

“É preciso atender às vozes que dizem que os recentes avanços da NATO, em direção à Rússia, concretizados na adesão de novos países vizinhos, contrariam entendimentos vigentes e que seguravam a paz, que a possibilidade de adesão da Ucrânia à NATO é uma provocação para PUTIN; que é atendível que Putin não queira forças militares, ligadas aos Estados Unidos junto às suas fronteiras, que o Presidente da Ucrânia é um homem cheio de falhas e a sua proximidade com a extrema-direita é uma delas, que a democracia na Ucrânia tem falhas do pior da democracia, que Putin não está de forma alguma ligado á esquerda mas sim a interesses económicos e também à extrema-direita.

Ouvir estas vozes é dar uma possibilidade à paz pois não existem negociações que partam de emoções irredutíveis e que não estejam dispostas a conhecer as causas e a caracterização dos problemas.

Parece existir aqui, subjacente, um preconceito ou um receio, o de que a realidade, tal como ela é, pode não bastar para dar plena razão à Ucrânia. É um erro. Nada afasta a razão de um país invadido por outro nestas circunstâncias miseráveis. Pode ser um duelo da NATO com a Rússia que se passa ali, e interesses militares e económicos superiores, mas é efetivamente entre os ucranianos e lembrar os civis, que há mais mortes”.

E a analista continua:

“Sartre disse que ‘quando os ricos fazem a guerra são sempre os pobres que morrem’. Os pobres nesta guerra são as forças militares e os civis ucranianos e são também os militares e o povo russo. (…) Os interesses que fazem esta guerra não são destas pessoas. A defesa dos seus ordenaria que a guerra parasse e que se estabelecessem acordos de convivência e que os mesmos fossem cumpridos.” Fim de citação

Esta é a Ucrânia de que se fala hoje, e continuemos.

Com a queda do muro de Berlim os líderes europeus perderam essa oportunidade de trazer a Rússia, ontem, para as sociedades profundamente democráticas, porque recusaram também eles se modificarem nesse mesmo sentido, e querem-na perder definitivamente hoje, com a diabolização que estão a fazer a propósito da monstruosidade que é esta guerra, como são todas as outras, aliás.

Ser-se contra Putin, é hoje, como sempre aliás, um imperativo moral e democrático, não apenas porque faz a guerra mas porque é um regime assente na exploração intensa do povo russo e dos seus recursos, a favor de uma nomenclatura, a cujos elementos se dá o nome de autocratas, mas, deste modo, ser-se contra Putin e o sistema em que assenta é ser-se também contra um dos sistemas que o alimentou, o sistema ocidental, o qual tem também a sua nomenclatura própria, e esta chama-se os 1%.

Um dos amigos que solidamente me insta a tomar posição contra Putin, apenas isso, relega para o passado irrelevante uma crónica de 20 de fevereiro onde se desenvolve este tipo de argumentos, que não são nada irrelevantes. A História não é irrelevante, os argumentos também não. São incómodos, isso sim. Uma das bases da sua argumentação, trata-se de uma pessoa que muito respeito, talvez seja membro de um partido a que nunca espero pertencer, o Iniciativa Liberal, será talvez o seu profundo respeito pela instituição militar, a NATO, como uma organização de paz, uma organização defensiva.

Nada tenho contra a sua opinião relativamente à NATO, nem tinha que ter. Parece-me, porém, que nos referimos a NATOs bem diferentes, ele à NATO de outrora, eu, à NATO de agora. Ele refere-se a uma organização militar que tinha como função a contenção do lado de cá contra o lado de lá, o quadro do Comecon. Eu referi-me à NATO que tem uma outra função, não a de contenção, mas a de expansão imperial do lado de cá contra o lado de lá.

Mas uma vez que este meu amigo foi um militar da NATO de outrora, refresquemos um pouco a nossa memória sobre o que se passou com a NATO no leste da Europa depois da queda do muro de Berlim, a lembrar, mais uma vez, a frase do ministro do Interior Francês, Charles Pasqua, um homem de direita: o muro caiu, mas não se esqueçam que caiu para os dois lados. Ninguém quis perceber na euforia dos amanhãs que cantam e que por causa dessa euforia se transformam num presente de que se chora e com razão.

Em 2019, vinte anos depois dos primeiros bombardeamentos da NATO na Sérvia, escreveu Rein Müllerson, Professor Emérito da Universidade de Talin, na Estónia, (com o original aqui):

Volto a estes dias passados não só porque foi exatamente há 20 anos atrás (o bombardeamento da NATO começou a 24 de Março de 1999) que, pela primeira vez após a Segunda Guerra Mundial, alguém, em total desrespeito pelo direito internacional, usou força militar massiva no próprio centro da Europa. Esta agressão, coberta pela folha de figueira de uma intervenção humanitária, um oximoro e tanto, abriu a porta de par em par para um maior uso sem princípios da força noutros locais. Estou de regresso a esses dias, tendo também acabado de ler o livro de Dick Marty, um proeminente advogado e político suíço, excelente, mas também perturbador livro, Particular Idea of Justice, publicado este ano na Suíça. Depois de Carla Del Ponte, antiga Procuradora do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (ICTY), ter publicado o seu livro, onde chamou a atenção para a informação de que cerca de 300 sérvios raptados tinham sido levados em 1999, pouco depois da chegada das tropas da NATO ao Kosovo, em camiões do Kosovo para vários campos na Albânia, onde os seus órgãos foram extraídos para serem vendidos em países estrangeiros, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa nomeou Dick Marty para investigar os alegados crimes horrendos que os líderes e meios de comunicação ocidentais estavam ansiosos por não mencionar. No seu relatório à Assembleia Parlamentar, Marty confirmou que “numerosas indicações parecem confirmar que, durante o período imediatamente após o fim do conflito armado, antes de as forças internacionais terem conseguido assumir o controlo da região e restabelecer a lei e a ordem, os órgãos foram retirados de alguns prisioneiros numa clínica em território albanês, perto de Fushë-Krujë, para serem levados para o estrangeiro para serem transplantados. Embora algumas provas concretas de tal tráfico já existissem no início da década, as autoridades internacionais responsáveis pela região não consideraram necessário proceder a um exame pormenorizado destas circunstâncias ou fizeram-no de forma incompleta e superficial4“.

(…)

Após o colapso da Jugoslávia, encorajado pelas potências ocidentais, o conflito interétnico entre albaneses do Kosovo (kosovares) exacerbou-se nesta província sérvia. O Conselho de Segurança da ONU envolveu-se e adotou por duas vezes em 1998 resoluções (Res. 1199 de 23 de Setembro; Res. 1203 de 24 de Outubro) condenou a violência na província por qualquer das partes, considerando-a uma ameaça à paz e à segurança na região, mas ao mesmo tempo reafirmando a santidade da integridade territorial da Sérvia. Contudo, já nessa altura estavam em curso os preparativos para uma invasão. Como sempre, a propaganda tinha de preparar o caminho para as bombas. Uma campanha de diabolização de um partido desta região interétnica e a vitimização e por vezes até de glorificação do outro partido serviu este propósito. O porta-voz da NATO na altura, Jamie Shea (hoje Secretário-Geral Adjunto para os Desafios Emergentes à Segurança na sede da NATO em Bruxelas) destacou-se a este respeito, até certo ponto, tornando-se conhecido no seu país natal (o Reino Unido) como o “spin doctor” da NATO.6 Embora as atrocidades do lado sérvio tenham sido todas meticulosamente relatadas (e não havia dúvida de tais atrocidades), por vezes até exageradas, e quaisquer dúvidas sobre quem e como foram ignoradas, os atos paralelos dos albaneses do Kosovo, especialmente os combatentes do Exército de Libertação do Kosovo (UCK), que muitas vezes espelhavam ou excediam as atrocidades sérvias, foram desclassificados ou simplesmente abafados. E isto foi feito apesar de pouco antes da operação o enviado especial do Presidente Bill Clinton para os Balcãs, Robert Gelbard, ter descrito o UCK como, “sem quaisquer perguntas, um grupo terrorista.7“. O UCK há muito que se dedicava a ataques com nacionalistas sérvios no Kosovo, usando represálias contra os de etnia albanesa que “colaboravam” com o governo sérvio, e bombardeando esquadras de polícia e cafés conhecidos por serem frequentados por oficiais sérvios, matando civis inocentes no processo. A maior parte das suas atividades foram financiadas pelo tráfico de droga, embora os seus laços com grupos comunitários e exilados albaneses lhe tenham dado popularidade local8 “ Fim de citação

Pois bem, é esta NATO de agora que se queria implantar na Ucrânia e com a atomização política acima referida, a poucas centenas de quilómetros de Moscovo, com os mísseis apontados talvez para o céu!! E digam-me que o Ocidente não fez parte das circunstâncias que fizeram de Putin exatamente o que ele é, um autocrata, o chefe de um governo de oligarcas, mas com apoio popular.

O drama de toda esta história complica-se ainda mais quanto a “análise” da situação se centra exclusivamente no ódio a Putin. Morte a Putin, dizia a minha amiga com quem tomo café frequentemente, morte a Putin, diz este meu amigo, um antigo elemento na NATO. Haja alguém que lhe mande um drone para cima, diz-me outro.

Reagi fortemente e disse-lhe: o homem é o que são também as suas circunstâncias. Nas circunstâncias há dois elementos chave: a política agressiva do Ocidente e a realidade russa. Elimine-se o homem, Putin, fica o sistema que o produziu e possivelmente para pior. Elimine-se o homem, por exemplo com uma morte provocada à distância, fica o sistema mais endurecido e fica o meu amigo e os seus liberais a cantarem em voz baixa se lhes restar oportunidade para poderem cantar, não se esqueça disso. E perguntei: isso foi o que os americanos e franceses fizeram a Kadafi. Alguém ganhou alguma coisa com isso, exceto talvez aqueles que fizeram perder milhares de milhões num respeitável banco americano, o Goldman Sachs, ao fundo soberano da Líbia? E continuei: com KADAFI a ser sodomizado em praça pública com uma baioneta, esteve Hillary Clinton a rir às gargalhadas. Historicamente, diga-me se alguém se ficou a rir na Europa, foi a pergunta que deixei no ar e ficámos por ali. Acrescentei uma pergunta e uma sugestão. Como pergunta: diga-me o que é que os americanos resolveram até hoje com as mortes por drone, determinadas em Washington e fora do direito internacional, diga-me se alguma vez se chegou a algum lado substituindo A ARMA DA CRÍTICA À CRÍTICA DAS ARMAS, diga-se se alguma vez se chegou a algum lado substituindo a força da razão pela razão da força, diga-me se alguma vez se chegou a uma solução substituindo a força das ideias pela força do ódio como está agora a propor. Eu respondo-lhe, nunca se foi a lado nenhum. E deixo aqui um exemplo noticiado pelo New York Times e relativo a esta problemática no tempo do laureado com o Prémio Nobel da Paz, Obama:

Em Janeiro de 2009, quando o Presidente Obama tomou posse, herdou dois programas secretos controversos de contraterrorismo de George W. Bush: a rendição e os duros interrogatórios (incluindo tortura) de suspeitos terroristas, e a utilização de drones para matar suspeitos terroristas fora dos campos de batalha tradicionais. Dois dias depois da sua tomada de posse, Obama assinou uma Ordem Executiva, que revogou as diretivas da era Bush que autorizavam a tortura, e voltou a dar ênfase a convenções internacionais e leis federais que proibiam a tortura. No dia seguinte, Obama autorizou dois ataques com drones da Central Intelligence Agency no noroeste do Paquistão, que, combinados, mataram um militante e 10 civis, incluindo entre quatro e cinco crianças.“

Eram paquistaneses, foi um engano, foi o que se disse, apenas isso. E lembram-se de ataque por drone em que morreram dezenas de pessoas, num funeral ou num casamento? Já não me lembro bem, já lá vão muitos anos. E já agora tem-se também o exemplo de Kadafi e da Líbia, entre tantos outros.

Como sugestão propus-lhe que desse uma vista de olhos pelo livro de George Friedman, Focos de Tensão, editado em português e sugeri-lhe que lesse algo de qualidade sobre Pristina: Sobre a NATO e os Balcãs proponho agora uma lista aos nossos leitores:

Le Martyre du Kosovo, de Nikola Mirkovic, Édition Jean Picollec, (terceira edição, 2020).

L’Europe est morte à Pristina, de Jacques Hoggard, Editions Hugo Doc, para aparecer em 2014

D. Marty, Une Certaine Idée de la Justice (Favre, 2019).

C. Del Ponte, Madame Prosecutor: Confrontations with Humanity’s Worst Criminals and the Culture of Impunity, Other Press, 2011.

(Tariq Ali ed.), Masters of the universe? NATO’s Balkan crusade, Verso Books, 2000.

Estava-se a falar das guerras americanas. Sobre estas guerras e os seus efeitos sobre os movimentos populacionais diz-nos um analista americano responsável por um dos importantes sítios eletrónicos dos Estados Unidos. TomDispatch (com o original aqui):

Agora, depois de ter analisado novamente os resultados daqueles 20 anos de invasões, ataques aéreos, ataques de comandos, construção da nação (ou melhor, desestruturação), e sabe Deus que mais, os investigadores do projeto elevaram esse número para 38 milhões e eis o que é espantoso: eles sugerem que pode ser apenas um número minimalista. O verdadeiro número pode estar algures entre 49 e 60 milhões de seres humanos transformados em deslocados internos ou refugiados em fuga das suas pátrias. Por outras palavras, estamos a falar de mais pessoas deslocadas do que em qualquer outra época do século XX, para além dos anos à volta da Segunda Guerra Mundial. Tente levar isso em consideração, por um momento – e faça-o sem sequer pensar nos estimados 200 milhões a 1,2 mil milhões de refugiados que, nas próximas três décadas, poderão ser postos em marcha neste planeta pelos horrores futuros das alterações climáticas.

Nestas circunstâncias, parabéns a Washington e às outras grandes potências pela criação de tal mundo (e depois, nos países tão frequentemente responsáveis, virando violentamente as costas aos desenraizados). E agora, como tudo menos uma potencial nota de rodapé para todos os anteriores, imagine isto: graças à sua decisão de invadir a Ucrânia, o Presidente russo Vladimir Putin, claramente pronto a igualar o talento americano para a deslocação, poderia soltar algures entre um milhão e cinco milhões de refugiados ucranianos para inundar partes da Europa, de acordo com uma estimativa recente do New York Times. De facto, demorou apenas algumas horas após o início da invasão russa para que os primeiros refugiados deste tipo saíssem da Ucrânia e estima-se que 50.000 tenham fugido nas primeiras 48 horas.

Honestamente, já estamos num novo planeta, um que se pôs em marcha de forma que nos devem perturbar a todos. Hoje, TomDispatch, o editor-gerente Nick Turse que, na sua reportagem de África, viu como é o desenraizamento das populações pela guerra, o terror, e um mundo à beira do abismo, tenta imaginar uma “nação” dos despossuídos deste planeta e como isso poderia ser. Uma coisa é certa: seria tudo muito bem povoado.” Fim de citação.

Um país imaginário de um povo esquecido, o terceiro do mundo, depois da China e da India, e a Europa a debater-se agora com mais um problema e grave, as novas e imensas migrações, no quadro do mundo absurdo desse país imaginário que ela também ajudou a criar.

Vale a pena reler o “poema” do meu amigo acima exposto:

“Qual o sentido das palavras massacre, terror, agonia, horror, humilhação, desprezo, insensibilidade, ódio, vingança, absurdo, irreal?

Estão elas carregadas com as cinzas (e corpos) de significados esgotados?

Com que facilidade o homem renuncia à subtil película da civilização, com que facilidade o homem se esquece de ser um homem

E qual, então, o sentido das palavras sem sentido?

Haverá palavras novas para a nova história?

Onde encontrá-las?

Quem as inventará?

Quem as escreverá?

Será assim nosso destino ler o que nunca foi escrito?

Ou será que de novo a poesia e também a prosa são impossíveis depois da Ucrânia?” (OM) Fim de citação.

À ideia respondeu-me um outro amigo meu dizendo:

“Quer as palavras, quer a vida, quer o mundo têm sentido, o que não têm é o sentido todo tal como as palavras ou não significam tudo, ou até são pervertidas, assim a vida e o mundo com que convivemos albergam perversões é muito fácil ver as perversões nos outros e não vermos as que estão em nós o que, porém, não desculpa a abstenção de condenar e de barrar a perversão extrema de matar a vida e as palavras.” Fim de citação

E eu repito: “Quer as palavras, quer a vida, quer o mundo têm sentido”, mas somos nós que conferimos ou destruímos esse sentido. Não o esqueçamos. E não é forçando a situação ao ódio e ao limite do insuportável que se procurarão encontrar soluções de que dependemos todos nós. E os textos que temos vindo a publicar no blog apontam todos nesse sentido, no sentido de voltar a dar sentido à vida e ao mundo, o sentido que a crise ucraniana nos está agora a destruir.

A estes meus 4 amigos que muito estimo e de quem espero continuar a ser retribuído, de direita ou de esquerda, o que aqui não importa, dedico os próximos textos, a saber:

Júlio Mota, Dos tempos de 1940 à procura da paz aos tempos de hoje à procura da guerra

Rein Müllerson, Será que a Europa morreu em Pristina?

William Astore, A Guerra prefabricada

Andrew Bacevich, Jack e Joe, Os perigos das posições duras

Michael Klare, A geopolítica do inferno

E a terminar deixo aqui uma ideia que foi determinante na solução para a crise dos mísseis dos anos 60, escrita por Ted Sorensen, o homem que redigia os discursos de Kennedy: “Nunca negociemos por medo. Mas nunca tenhamos medo de negociar”.

E é tudo.


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6 pensamentos sobre “Do clima de ódio ao clima de negociação vai uma enorme distância

  1. É extraordinário, para não dizer revoltante, a forma como alguns escribas manipulam os factos ou desfocam a realidade a favor de uma tese que é contrária à visão que o mundo livre tem deste conflito. Um estado soberano é selvaticamente invadido e agredido por outro e no entanto os factos são tratados como se ambos desejassem a guerra e estejam em paridade de situação. A Assembleia Geral da ONU condenou a invasão da Ucrânia de uma forma veemente. Este escriba parece esquecer a natureza do regime que existe na Rússia e que está a conduzir o povo do país para uma situação que poderá ser dramática, enquanto martiriza o povo ucraniano. Mentem descaradamente na sua informação pública, perseguem e encarceram e assassinam os opositores e para este escriba é como se isso fosse irrelevante. Pelo menos, no mundo ocidental sabemos de antemão que a opinião é livre e os líderes políticos não eternizam no poder a seu bel-prazer, como o Sr. Putin. Pelo menos, nas democracias percepcionamos os erros, denunciamo-los e pressionamos para um arrepiar de caminho.
    O foco da narrativa das pessoas de boa mente e consciência livre deve ser a condenação sem apelo nem agravo do país que violou a lei internacional e atacou um estado soberano. Mas não, alguns entretêm-se é em desenterrar os pecados do mundo ocidental, como se a violência e crueldade a que está votado o povo ucraniano não fosse neste momento o que merece o maior repúdio.

  2. ao ler este post pergunto quem é o inavasor e quem é o invadido ? Porque parece que o problema são as causas e essas causas legitimam uma invasão , será assim ?

    • Tem toda a razão, Luís, em formular essa interrogação. Têm sido de uma estranha ingenuidade os que julgam que alguma vez a Rússia entrará para a comunidade das democracias liberais. Bom seria para o mundo que assim acontecesse, mas é pura utopia. De facto, é espantoso que alguns esgotem as meninges a procurar causas que minorem as graves responsabilidades do regime autocrata que invadiu um país soberano.
      Infelizmente, essas posições têm vindo de alguns homens de esquerda, e eu, que também sou um homem da esquerda democrática, fico chocado e interrogativo. Não entendo mesmo nada.

  3. Coitadas das pessoas na Ucrânia, que tal como os Sérvios, os Iraquianos e os Vietnamitas, no seu tempoz estão a sofrer às mãos de uma potencia invasora imperialista e sanguinária. E no cú da Europa, há por aqui uns sábios intelectuais de pacotilha a escrever textos longos, espessos e moralmente contorcidos a tentar justificar o injustificável, só porque há 30 anos a Russia era um país comunista. Isto já começa a ser um insulto ao comunismo!

    • Diz bem. De facto, é um insulto ao comunismo se a ideia de alguns, ainda que talvez por escape involuntário do subconsciente, é ver no regime de Putin uma reminiscência daquele sistema. A palavra de ordem neste momento, clara e inconfundível, só pode ser condenar o regime de Putin.

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