Ucrânia: o que será feito e o que deve ser feito?

(Thomas Palley, in Blog A Viagem dos Argonautas, 25/02/2022)

(Publico este texto, assinado por um reputado economista americano que está longe de ser um adepto de Putin, mas que, contrariamente às centenas de “especialistas” que andam por aí aos pulos, consegue pensar pela própria cabeça, analisar factos com objetividade e tirar conclusões que não sejam atos ou autos de fé. Por isso lhe dou 20 valores. Estátua de Sal, 25/02/2022).


O inevitável aconteceu. A Rússia invadiu a Ucrânia. Era inevitável porque os EUA e os seus parceiros da NATO tinham empurrado a Rússia para um beco do qual só podia escapar por meios militares.

Com efeito, a Rússia confrontava-se com um futuro em que os EUA apertariam cada vez mais o nó à volta do seu pescoço através de uma maior expansão da NATO para Leste, combinada com a atualização militar pelos EUA dos seus representantes da NATO da Europa de Leste.

Acompanhando essa militarização estava a perspetiva de uma guerra de propaganda em ascensão, na qual os meios de comunicação social ocidentais alimentavam as chamas da animosidade pública contra a Rússia. Lado a lado, entidades financiadas pelo governo dos EUA (como o National Endowment for Democracy e o German Marshall Fund) procurariam influenciar a política europeia e russa com o objetivo de mudança de regime.

Nesta fase, há duas questões. O que será feito? E o que deverá ser feito?

O que será feito?

A resposta à primeira pergunta é clara. Confrontamo-nos agora com outra era de guerra fria, que poderia facilmente tornar-se quente e até nuclear. Além disso, a situação é muito mais perigosa do que a primeira guerra fria, uma vez que os EUA são muito mais poderosos do que a Rússia, em relação à sua posição face à União Soviética. Consequentemente, o equilíbrio é precário, razão pela qual poderia facilmente tombar para algo terrível.

A tendência Neoconservadora sustenta que os EUA devem ser globalmente hegemónicos e militarmente inatacáveis, e triunfou definitivamente na política dos EUA. Esse triunfo reflete-se no Partido Democrata, que representa a ala “liberal” da política nacional dos EUA.  Reflete-se também nas opiniões dos meios de comunicação social liberais de elite.

Os vencedores são o status quo de Washington DC. O maior vencedor é a ala liberal do establishment Neoconservador, que tem agora uma pista clara para impulsionar a hegemonia global dos EUA sob a falsa bandeira da promoção da democracia. Ainda mais importante, os Neoconservadores ludibriaram os líderes políticos europeus, clivando a possibilidade de uma aproximação produtiva pacífica que poderia ter juntado a Rússia com a economia europeia e a família europeia. O segundo vencedor óbvio é o complexo militar-industrial, que pode contar com a continuação de massivos lucros e de orçamentos desmesurados.

Ao contrário da primeira guerra fria, não haverá ganhos para as famílias trabalhadoras. Isto porque a Rússia não tem uma agenda política económica global equivalente ao socialismo, cuja ameaça obrigou a elite dominante a fazer concessões aos trabalhadores. De facto, as famílias trabalhadoras irão perder à medida que o orçamento militar se for tornando ainda maior. Mais importante ainda, o renascimento do jingoísmo e do militarismo, estão a desempenhar o seu papel histórico como uma questão de divisão entre as famílias trabalhadoras, aumentando assim a capacidade das empresas e das elites liberais para fazer frente a qualquer agenda para uma mudança económica progressista.

Mas de longe o maior perdedor é a Europa que tem sido vergonhosamente vendida pela sua cobarde classe política. Primeiro, a Europa perdeu a oportunidade económica de uma parceria pacífica com a Rússia. Em vez disso, irá perder mercados importantes e pagará muito mais pela energia. Também se tornará ainda mais vulnerável economicamente e suscetível à punição dos EUA, como já aconteceu com as multas multi-bilionárias que os EUA impuseram aos bancos europeus.

Em segundo lugar, mais uma vez, a Europa sofrerá a ressaca da pressão dos EUA para a hegemonia. Foi o que aconteceu com o Iraque, Líbia, Síria e Afeganistão. Este retrocesso já fertilizou um renascimento europeu de extrema-direita, que agora promete agravar-se. Entretanto, os EUA estão protegidos da maior parte desse retrocesso pelos oceanos Atlântico e Pacífico.

O que é que deve ser feito?

Responder à questão do que deve ser feito também é fácil, mas chegar lá começa a parecer impossível. O que deve ser feito é uma recalibração profunda que diminua a influência dos EUA na Europa, fortaleça a União Europeia, e vise a inclusão da Rússia na família europeia, como previsto pelo Presidente Gorbachev em 1990.

O ponto de partida é o reconhecimento de que não há volta atrás no tempo. Foram criados novos factos. Foram criados pela expansão da NATO  para leste, pelo golpe de Estado de 2014 patrocinado pelos EUA na Ucrânia, pela reocupação da Crimeia pela Rússia, e agora pela invasão da Ucrânia pela Rússia.

Em seguida, há necessidade de uma mudança de mentalidade fundamental que requer o reconhecimento de que a Rússia não é a União Soviética. É uma economia fraca com uma população em declínio, e não tem a capacidade nem a vontade de governar países do antigo pacto de Varsóvia.

Uma vez estabelecidos estes dois elementos básicos, o caminho a seguir pode ser traçado. A Ucrânia tem de concordar em ser permanentemente um Estado neutro, tal como a Finlândia e a Áustria na Guerra Fria. Os EUA têm de deixar de armar a Polónia, que é um regime nacionalista intolerante que é suscetível de ser uma fonte futura de grandes problemas. E os EUA têm de parar de atualizar as capacidades militares dos Estados Bálticos, o que constitui uma provocação agressiva.

A União Europeia deve construir o comércio e as trocas comerciais com a Rússia. Esta é uma ligação económica perfeita. A Rússia tem recursos e precisa de tecnologia e bens de capital. A Europa tem tecnologia e bens de capital e precisa de recursos.

Melhor ainda, ao diminuir a ameaça contra o Presidente Putin, tal parceria irá promover a melhoria política interna na Rússia. Os regimes autoritários reprimem quando ameaçados. Eles são mais tolerantes quando não estão ameaçados.

Agora, quanto à parte difícil. A Ucrânia deve ser reconstituída como um estado federal, e pode mesmo precisar de ser dividida, dados os novos factos que foram criados. Com o encorajamento dos EUA, a Ucrânia brincou com o fogo e ficou queimada.

Finalmente, há necessidade de construir uma força de defesa da Europa Ocidental e diminuir a presença e influência militar dos EUA na Europa Ocidental. As forças militares dos EUA foram uma presença essencial na Guerra Fria quando a Europa Ocidental não tinha a capacidade de dissuadir o poder combinado do Pacto de Varsóvia. Estas condições há muito que desapareceram. O Pacto de Varsóvia já não existe, e a Rússia é uma sombra da União Soviética. A Europa Ocidental anula agora a Rússia, tanto em termos económicos como demográficos, e pode (e deve) tomar conta de si própria.

A ameaça Neoconservadora dos EUA

Tragicamente, nada disto é provável que aconteça porque está profundamente em desacordo com o objetivo Neoconservador estado-unidense de hegemonia global, e com os políticos da Europa Ocidental a portarem-se como verdadeiros lacaios dos EUA

Uma Rússia forte, próspera e liberalizadora seria uma enorme ameaça para a agenda Neoconservadora dos EUA. É por isso que os EUA exigiram agora a liberalização política russa, sabendo muito bem que apenas causará fraqueza e desintegração neste momento da história.

Uma Europa Ocidental forte, unida, e próspera, agravaria a ameaça à agenda Neoconservadora. E uma Europa Ocidental que ajudasse a Rússia ao longo do caminho para a prosperidade, agravaria duplamente a ameaça.

A História e o buraco de memória de George Orwell

Os meios de comunicação ocidentais estão agora a concentrar a atenção na invasão da Rússia. Construído nesse foco constitui uma reconstrução tácita da história.

Os neoconservadores  americanos querem que a história comece com a invasão. Tudo o resto que aconteceu antes é para ser varrido para o “buraco da memória” de Orwell.

Isso significa esquecer os agravos e ameaças que os EUA têm acumulado sobre a Rússia durante trinta anos; esquecer como os EUA ajudaram a pilhar a Rússia após a queda do Muro de Berlim, esquecer a promessa feita de não expandir a NATO para leste, esquecer a ameaça representada por colocar a defesa antimísseis e as capacidades de lançamento perto das fronteiras da Rússia, e esquecer o fatídico golpe de Estado de 2014 patrocinado pelos EUA na Ucrânia.

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O autor: Thomas Palley [1956-] é um economista estado-unidense. Foi economista chefe na Comissão de Análise Económica e de Segurança EUA-China (agência independente do governo dos Estados Unidos criada em 2000), sendo atualmente membro de Schwartz Economic Growth da New America Foundation. É licenciado em Letras pela Universidade de Oxford (1976) e obteve um mestrado em relações internacionais e um doutoramento em economia pela Universidade de Yale. Palley fundou o projecto “Economics for Democratic & Open Societies”. Palley cujo objectivo é “estimular a discussão pública sobre que tipos de acordos e condições económicas são necessários para promover a democracia e a sociedade aberta”. As posições anteriores de Palley incluem director do Projecto de Reforma da Globalização do Open Society Institute, e director assistente de Políticas Públicas para a AFL-CIO.

O seu trabalho tem abrangido teoria e política macroeconómica, finanças e comércio internacionais, desenvolvimento económico e mercados de trabalho onde a sua abordagem é pós-keynesiana.


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