A fábrica das sondagens

(António Guerreiro, in Público, 04/02/2022)

António Guerreiro

As “surpresas” eleitorais, isto é, os desvios em relação aos prognósticos das sondagens, são cada vez mais notáveis em todo o lado onde estas se tornaram uma rotina, alimentando um jornalismo de “corrida de cavalos” (esta metáfora, encontrei-a num livro de Frédéric Lordon, Les affects de la politique). Tais desvios tornaram-se um importante e fecundo objecto dos estudos de sociologia eleitoral.

Nós, por cá, nestes dias de ressaca pós-eleitoral, sabemos muito bem que tais desvios, embora colossais, são justificáveis através de uma explicação circular que começou logo a ser ensaiada, tanto pelos institutos de sondagem (de um modo geral munidos de uma enorme opacidade), como pelos “comentadores” que apostaram nos cavalos errados: as sondagens exercem uma influência sobre os sondados, e essa influência até pode ser medida pelo mesmo instrumento que os sondados ludibriaram. Só que essa medição só pode ser feita a posteriori porque o efeito é sempre o resultado dos modos de difusão da sondagem.

Deste modo, nenhuma prova científica poderá alguma vez mostrar que as sondagens estavam erradas, até porque os políticos, durante a campanha, vão integrando nos seus cálculos a evolução das sondagens e vão ajustando o discurso e as acções a elas (de uma maneira talvez nunca vista, entre nós, foi o que fez António Costa na última semana da campanha eleitoral).

Assim, elas estão sempre tão certas como as verdades inferidas das sobredeterminações ideológicas de um marxismo vulgar. A salvar as aparências, estão as metáforas que garantem a inegável fiabilidade das sondagens e a sua condição de instrumento neutro: tal utensílio é uma “fotografia”, um “barómetro”, um “termómetro”.

As sondagens como instrumento de conhecimento ou de manipulação é uma questão que percorre a história desta medição, a partir do momento em que ela começou a afinar os seus métodos e a expandir-se, há quase um século. Mas a crítica que as sondagens suscitam hoje deve colocar-se para além do problema da manipulação versus conhecimento, que teve o seu tempo próprio. As sondagens tornaram-se actualmente um meio de excitação mediática e objecto de uma atenção completamente monopolizada pelo jogo político e pelos entusiasmos que as afecções políticas provocam. Resultado desta excitação: o barómetro das sondagens é antes um afectómetro. O que precisa então de ser interrogado são os efeitos do seu uso frenético pelos jornalistas, pelos comentadores e pelos responsáveis políticos.

As sondagens que foram publicadas ao longo da campanha eleitoral revelaram-se escandalosamente erradas? Segundo o critério objectivo da distância entre as previsões e os resultados obtidos, o erro foi enorme. Mas segundo um critério pragmático, elas estão para além da verdade e da mentira, como as fake news: o que interessa é o efeito que produziram, ou que se supõe terem produzido (o que é a mesma coisa) sobre os eleitores.

Para utilizar uma distinção bem conhecida, as sondagens deixaram de ser um constativo para se tornarem um performativo. Um sociólogo francês do círculo de Pierre Bourdieu, Patrick Champagne, escreveu num livro intitulado Faire l’opinion: “O paradoxo da situação criada pelo desenvolvimento das tecnologias das sondagens é que nunca antes os actores do campo político e jornalístico gastaram tanto dinheiro para saber o que quer o ‘povo’ e nunca antes, afinal, o souberam tão mal”. De resto, os argumentos que servem muitas vezes de justificação das surpresas eleitorais aplicam-se a sondar a culpa dos eleitores: estes hesitam até ao último monento; são tão voláteis como os libertinos; e são pragmáticos, pouco fiéis a ideologias e mais preocupados com a “governança” (não foi esse o grande tema desta campanha eleitoral a que acabámos de assistir?).

Pierre Bourdieu — convoquemo-lo de novo — é um sociólogo que se defrontou com estas matérias. Num célebre artigo de 1973, resultante de uma conferência e depois incluído no livro Questions de Sociologie, desenvolveu a tese da inexistência da “opinião pública” (o artigo tinha este título taxativo: L’opinion publique n’existe pas). Para além de apontar certos vícios recorrentes, Bourdieu defendia que a opinião pública, pretensamente revelada pelas sondagens, não passava de uma construção ad hoc, ou seja, uma manipulação. Mas os dogmas bourdivinos têm de ser actualizados: esse tempo dos “manipuladores” já não é bem o nosso. Agora — diabólica reversibilidade! — já os sondados enganam as sondas.



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Um pensamento sobre “A fábrica das sondagens

  1. SÓ OS BURROS NÃO APRENDEM,mas os belos animais são meigos ,doceis e ajudam o seu “dono” emtarefas muito uteis,mas quando mal tratados e manipulados ,dão coiços ,nos manipuladores ……tem sido burlesco ver os manipuladores que servem seus donos ,”dançaem” agora nas TVS ,agora sem a mãscara ,mas num contorcionismo de fim de festa……

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