Chantagem míope

(Daniel Oliveira, in Expresso, 22/01/2022)

Daniel Oliveira

Há quem defenda que Rui Rio garante as mesmas (ou até mais) condições de governabilidade do que António Costa. Porque nenhum vai conquistar a maioria absoluta ou maioria parlamentar — a ‘geringonça’ é impossível e Rio não se alia ao Chega.

E porque, tal como o PSD está disponível para viabilizar um governo do PS, o PS fará o mesmo com o PSD, já que Costa se demitirá e os socialistas, sem liderança, não estarão em condições de repetir o cenário de 2015.

Assim, teremos um governo minoritário de dois anos, viabilizado ao centro. O exercício tem fragilidades. PS e PSD não estão igualmente próximos de uma maioria absoluta — uma é difícil, outra é delírio.

O PSD comprometeu-se a uma viabilização de um Governo PS por dois anos, enquanto um Governo minoritário de Rio viabilizado por um PS sem líder teria o prazo de validade de um queijo fresco fora do frigorífico. Os entendimentos com o Chega são tóxicos e com a IL tenderão a puxar o PSD para um nicho social e ideológico perigoso. Só parecem fáceis porque, ao contrário da esquerda, ainda não se confrontaram com a realidade. Só nos Açores, com confusão ao fim de um ano. Por fim, como já vimos com António Costa, há diferenças entre o que é dito em campanha e o que se faz perante os resultados eleitorais.

Mas não deixa de ser verdade que Costa conseguiu o impossível: transformar umas eleições em que tinha mais escolhas do que Rio, por estar mais próximo da maioria absoluta e ter pontes possíveis com o centro-direita e com toda a esquerda (ao contrário de Rio à direita), no oposto. Para pedir a maioria absoluta à custa dos partidos à sua esquerda, Costa foi recuando no que disse depois da queda do Governo — que a correlação de forças determinaria os termos do diálogo. Como uma maioria absoluta do PS, depois de seis anos no poder, só entusiasma os que têm saudades da última que conhecemos, o discurso passou a ser o da impossibilidade de entendimentos, para tirar utilidade ao voto no BE e no PCP.

E, no debate com Rio, Costa tentou o tudo ou nada: ou tem maioria absoluta, ou negociará à peça. Ou lhe dão tudo, ou devolve a crise política. Até apresenta o mesmo Orçamento. Faz aos eleitores o que suspeito que fez aos seus “parceiros”: ou o mantêm no poder sem mais exigências, ou pagam as favas da crise. Subiu ao palco o António Costa que andou pelos bastidores das negociações.

Nos Açores, onde o filho de Carlos César lidera a lista, perguntou: “O que acontece quando nos distraímos e não votamos no PS?” Já votei PS (em Costa), BE, PCP e Livre e estava igualmente atento.

E, como a maioria, lido mal com condescendência de políticos.

Ao substituir um discurso em torno da recuperação económica e social depois da pandemia pela tentativa de encostar os eleitores à parede, Costa exibe o seu calcanhar de Aquiles: a arrogância. E exibe o que seria a maioria absoluta.

Porque precisava da geringonça para sobreviver, Costa contribuiu para criar uma nova realidade política, em que o PS ficou em igualdade de circunstâncias com o PSD na possibilidade de construir maiorias sem depender do seu principal concorrente. Agora, quer reerguer os muros.

Quando, em vez de se concentrar na conquista do voto centrista, Costa usa a chantagem para secar o eleitorado à sua esquerda, não está a tentar regressar ao pré-2015. Está a tentar criar um pós-2022, onde o PS ficaria praticamente sozinho à esquerda. Sem esse flanco a defender, o partido escorregaria para a direita, a sua ala esquerda seria dizimada e toda a política se desequilibraria, ficando a IL e o Chega como únicos partidos com capacidade de atrair o descontentamento ou fazer pressão fora do centrão. Recordo que muitas das medidas de que Costa se gaba não estavam no programa do PS de 2015. Existiram porque existiram BE e PCP. Os partidos que o puseram no poder depois dele não ter conseguido derrotar Passos Coelho e ali o mantiveram por seis anos, não pedindo lugares, mas políticas. Deram bem mais do que receberam, apesar de hoje serem tratados como uns malandros em quem não se pode confiar. Achar que são substituíveis por um partido unipessoal que será engolido pelo PS e por outro que se contenta com meia dúzia de cedências do PS ou do PSD, apenas sublinha a indisponibilidade para dialogar com forças autónomas com peso político.

Se Costa fosse bem-sucedido, e as sondagens não o confirmam, o PS passaria a ter de se entender com a direita sempre que não conquistasse as cada vez mais improváveis maiorias absolutas.

Apesar da sua vista estreita, Costa foi coautor de uma mudança estrutural. Apesar das más relações com Catarina Martins, foi dos governos minoritários mais duradouros. E apesar das boas relações com Jerónimo, houve uma rutura. O que determinará o que cada um fará, incluindo o PS, serão os resultados eleitorais. Os entendimentos à esquerda não são um chá-dançante. São um exercício de tensão em que o PS modera alguns irrealismos do BE e do PCP e estes moderam o imobilismo e a permeabilidade aos interesses do PS. Sem esta tensão, a esquerda condena-se. E, com ela, o próprio PS.


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Um pensamento sobre “Chantagem míope

  1. A ESQUERDA É BURRA
    A propósito da “chantagem míope” que o DO como sempre atribui ao PS, permito-me apenas invocar aquilo que Boaventura de Sousa Santos escreveu no Público https://www.publico.pt/2022/01/21/opiniao/opiniao/esquerda-burra-1992398, subordinado ao título “A esquerda é burra”, frase cuja autoria atribui ao ex-Presidente do Brasil, Fernando Henriques Cardoso, mas que BSS considera apropriada nesta campanha eleitoral:
    “Pergunto-me se a esquerda, no seu conjunto, não está a ser burra. É que a esquerda está a deixar que os termos do debate eleitoral sejam definidos pela direita, e isso é um péssimo sinal (…)
    “Finalmente, a direita, sabendo-se fragmentada, tenta articular-se e, como acontece usualmente em política, começa pelo consenso negativo: criticar duramente o PS e levantar o fantasma da maioria absoluta do PS, apesar de saber que a hipótese é remota, como só o convicto realista Rui Rio reconhece. Por sua vez, a esquerda (com excepção do Livre e do PAN, nos dias em que este é de esquerda) aceita acriticamente o diagnóstico táctico da direita e entra no coro da crítica ao PS, sem sequer se notar como naipe distinto, e não vê que o único perigo real para ela (e para o país) não é a maioria do PS mas a maioria de direita. Como tem pejo de mencionar o que quer que de bom se fez nestes anos, o pouco que é mencionado é atribuído à valentia dos partidos que conseguiram vencer a resistência ou a má vontade do partido maioritário. A esquerda cai, assim, no engodo e organiza a campanha contra a maioria absoluta do PS e contra a transferência de votos dos seus simpatizantes para o PS, quando se está a ver que o mais provável é a transferência do BE ou PCP para o Chega ou, no caso dos jovens (pouco preocupados com o SNS ou com as pensões), para a IL, a proposta que disfarça a receita mais retrógrada e socialmente mais perigosa com o perfume da cultura yuppie.”
    Chapeaux Boaventura Sousa Santos!

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