Sol na eira e chuva no nabal liberal

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 11/01/2022)

Hiding in plain sight. A expressão inglesa sobre esconder algo colocando-o à vista de todos aplica-se aos programas atuais de Chega e IL. Um tem 9 páginas, outro 600, mas o essencial é o mesmo: poupar milhares de milhões de euros a quem mais ganha e tem e estralhaçar o Estado Social. O resto é conversa.


Em 2019, o Chega apresentou um programa que propunha acabar com o IRS, e vários outros impostos, e com o Estado social. Era honesto, ao menos: cortando impostos e contribuições sociais, instituía o princípio do utilizador-pagador, em que se paga o que se usa. Queres educação? Pagas. Queres saúde? Pagas. Não tens como pagar? Azar.

Sucede que o eleitorado potencial do Chega não é exclusivamente constituído pelos empresários ricos que ajudam a financiar o partido, pelo que, percebendo que as propostas não eram populares, a liderança resolveu alterar o programa, naquilo que André Ventura qualificou perante o DN como “uma clarificação inversa”.

Agora o Chega não só defende com denodo o Estado Social (excepto, claro, para os pobres que recebem RSI) como quer que cada português tenha um médico de família e não haja uma única pensão abaixo do salário mínimo. O seu líder chegou até ao desplante de confrontar o homólogo da Iniciativa Liberal, João Cotrim de Figueiredo, com o facto de a IL defender no programa de 2019 um sistema de pagamento do ensino superior público em que os estudantes teriam de, para o frequentar, contrair um empréstimo que pagariam ao Estado após a entrada no mercado de trabalho.

“Concordas com isso”, perguntou a Cotrim, afetando escândalo, o presidente do Chega, como se o seu próprio programa do mesmo ano não quisesse oferecer as escolas públicas a quem lhes pegasse, acabar com o ministério da Educação, e impor, no ensino superior, propinas diferenciadas consoante os cursos fossem considerados “úteis” ou “inúteis” (“As propinas terão em conta as necessidades de Portugal nas áreas e técnicas a que essas propinas digam respeito. As propinas a pagar por um curso de engenharia civil ou informática terão necessariamente de tender para zero, enquanto que as propinas a pagar por um curso de Sociologia terão de tender para o custo real do curso”).

Arvorado em campeão do Estado Social perante o presidente da IL, Ventura mantém no entanto a causa comum: a defesa de uma baixa radical de impostos. Escusa-se é de explicar como é que financiaria, nesse caso, a sua súbita e assolapada paixão pelas prestações sociais: só a proposta de equivaler as reformas mais baixas ao salário mínimo implicaria pelo menos um acréscimo de seis mil milhões de euros anuais – algo que corresponde a quase metade da coleta de IRS em 2019 e 2020 (respetivamente, 13 171 e 13 562 milhões) e implicaria aumentar em 33,3% o valor despendido pelo Estado em pensões (18 mil milhões em 2019).

É fácil prometer tudo a toda a gente se não se tem a mínima intenção de cumprir e, sobretudo, se se fez um programa postiço para disfarçar o verdadeiro – que é obviamente, no caso do Chega, o de 2019, o da destruição do Estado Social.

Já vimos isto acontecer com a retórica pré-eleitoral de Passos e Portas, que estavam muito preocupados com as pensões e com os cortes nas prestações sociais e o aumento de impostos até chegarem ao poder – quando subiram brutalmente o IRS, cortaram o subsídio de desemprego e as pensões e propuseram até uma diminuição definitiva das mesmas. E, recordemos, antes das eleições também PSD e CDS garantiam que bastava, para evitar aumentar impostos e baixar pensões e prestações sociais, “cortar nas gorduras do Estado” – o correspondente à retórica populista do Chega que garante bastar a diminuição do salário dos políticos e do RSI dos pobres (que nem chega a custar 400 milhões anuais) para o dinheiro jorrar do céu.

Parece impossível, mas esta conversa continua a levar pessoas ao engano – e nisso o Chega não está só. Está aliás muito bem acompanhado pela Iniciativa Liberal, que nas 600 páginas que este domingo à noite colocou online insiste na menina dos seus olhos – a baixa radical de impostos, da “flat tax” de 15% no IRS à descida do IRC e IMI e à abolição do IMT para a compra de casa própria, além de outras reduções fiscais.

Ao contrário do Chega, cujo atual programa tem 9 míseras páginas, a IL afunda-nos em palavreado e apresenta algumas contas e referências. Por exemplo no caso da flat tax garante que a introdução transitória de um sistema de duas taxas de IRS (15% até 30 mil euros de rendimento anual bruto e 28% acima disso), teria um impacto, em 2022, de menos 2 mil milhões de euros nas receitas do Estado – uma estimativa que parece no mínimo otimista.

Mas a questão vai para além da perda de receitas do Estado e do seu quantitativo, à qual acresceria a correspondente à descida de outros impostos; perguntemos em primeiro lugar quem beneficia com esta proposta e, consequentemente, quem é prejudicado – direta e indiretamente.

É que não só as vantagens que a IL alega deverem-se à introdução de uma taxa fixa estão longe de ser inquestionáveis – vários estudos internacionais, nomeadamente do Banco Mundial, do Banco Central Europeu e da OCDE, põem em causa, com base nas experiências existentes em países europeus quer os miríficos resultados económicos mencionados quer até a simplificação fiscal que supostamente resultaria da sua aplicação, sem esquecer que menos impostos arrecadados implicam cortes nas prestações sociais -, como até as contas de uma consultora financeira, a Deloitte, demonstram que quem ganha com uma taxa fixa de 15% são os contribuintes com maiores rendimentos, com o impacto direto sendo residual ou mesmo neutro para os de menores ou médios rendimentos.

Isso mesmo se percebe com dados básicos: por exemplo em 2018 a taxa efetiva de tributação dos que pagaram IRS – e que correspondem a cerca de metade dos agregados portugueses, já que a outra metade está abaixo do limiar mínimo de tributação (quem ganha o salário mínimo não paga IRS) – foi de 12,56%. Dos que pagam, mais de 60% dos agregados ficavam pelo primeiro escalão; cerca de 75% do IRS coletado diz respeito aos escalões de 28.5% a 45%. É aqui portanto que se verá a grande alteração ocasionada por uma taxa fixa – mas sobretudo nos que têm rendimentos entre os 100 mil e 250 mil euros anuais, porque são esses que pagam taxas médias mais altas.

Em 2017, de acordo com contas apresentadas em 2019 pelo Jornal Económicoesses contribuintes (correspondendo nesse ano a 40 932 agregados) foram responsáveis por uma coleta de IRS de 5 166 milhões de euros; aqueles com rendimentos acima de 250 mil euros anuais (3217 agregados) pagaram 630 milhões de euros. Somando as duas parcelas, chegamos a quase 6 mil milhões de euros de IRS pago, ou seja um pouco menos de metade do valor total deste imposto – 12 230 milhões. Não restam pois dúvidas sobre quem ganharia com a introdução de uma taxa fixa, e quem perderia: o valor que o Estado receberia a menos iria direitinho para as contas bancárias dos que auferem mais de 100 mil euros. Por outras palavras, um subsídio direto para os pobres dos ricos.


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3 pensamentos sobre “Sol na eira e chuva no nabal liberal

  1. “quem ganha com uma taxa fixa de 15% são os contribuintes com maiores rendimentos”. Não, não eram esses que mais ganhariam!
    Se um trabalhador por conta de outrem aceitou trabalhar por 10.000€/mês, é porque aceitou ganhar 5.500€ líquidos de IRS (antes de TSU). No regime de 15% para todos, esse trabalhador receberia 8.500€ líquidos de IRS, ou seja, passava a receber mais 3.000€/mês. Isso se o patrão não lhe viesse com a conversa de querer para si a parte de leão desse aumento, com o seguinte argumento “se te consideravas bem remunerado com 5.500 deves continuar a receber esse valor, baixando o salário nominal de 10.000 para 6480”. O empregado ia aceitar, porque ganhava na TSU, passando de 1.100 para 712. Além disso baixava o desconto para IRS porque passava da taxa de 45% para uma menor.
    Moral da História, o principal ganho ia para o patrão que pagaria menos cerca de 800€.

    A Segurança Social, essa, perdia 1188€ (387 do empregado e 800 do patrão)!

    Este “número acrobático” dos 15% para todos tem mais que se lhe diga…

  2. Este Joaquim Cotrim de Figueiredo (JCF) é um cómico, quando no debate com Rui Rio afirmou – se calhar ninguém reparou, mas eu tive o cuidado de reter a sua afirmação – “os jovens emigram por causa dos baixos salários, mas se tiverem salários elevados ou virem os seus salários aumentados, emigram na mesma, porque pagam ou vão passar a pagar mais IRS”. (sic)
    Ou seja, só JCF sem qualquer despautério ousaria afirmar, que os jovens, por um lado, emigram por causa dos baixos salários, mas, por outro, se tiverem salários elevados ou virem os seus salários aumentados, emigram na mesma, porque pagam ou vão passar a pagar mais IRS.
    Mas, quando defende a taxa única de IRS de 15%, que se aplicaria a todos os rendimentos e para todos os contribuintes de forma igual, afirmando que tal reduz o IRS de todos os portugueses, é que a vontade de me rir da sua comicidade desaparece definitivamente.
    Isto porque se trata de uma mentira descarada, uma vez que 46% dos portugueses não pagam IRS, não têm coleta de IRS e, portanto, dizer a esses 46% que vão pagar menos, é mentira, porque estes não vão ter um alívio de 1 cêntimo sequer, com a proposta da IL.
    Quanto aos outros 54%, o que aconteceria é que, existiria um alívio fiscal que seria exponencialmente mais favorável quanto mais elevado fosse o rendimento, em que o nível de alívio fiscal seria directamente proporcional à medida que vai aumentando o rendimento dos contribuintes. Para se perceber do que estou a falar, basta pensar no ex. de um CEO de uma empresa, com um rendimento anual de 2 milhões. De acordo com as regras atuais, sobre este rendimento, este pagaria de imposto 845.471 €., e com a proposta da IL, passaria a pagar 267 mil €, isto é, uma redução de -29 pontos percentuais de IRS, que corresponderia a uma perda de receita fiscal de 578 mil €, por contribuinte deste tipo. Mas para alguém com um rendimento mensal de 1.500 € (anual de 21.000 €), a redução seria apenas de -1,83 (de 1.329 € para 945 € por aplicação da taxa plana dos 15%).
    Portanto, esta proposta tem uma agenda escondida, que é o de acenar com uma baixa de 300 € “no patamar de baixo” para esconder borlas fiscais na ordem dos 500 mil € “nos patamares de cima”, sendo fácil concluir que se trata de uma proposta a pensar apenas no alívio fiscal dos mais ricos em Portugal.
    Quanto à perda de receita fiscal para as contas públicas, segundo a consultora Deloitte, a criação de uma taxa única de 15% no IRS, proposta pela IL, iria retirar até 3,5 mil milhões em receita aos cofres do Estado.
    Dá vontade de perguntar, em que país é que vive JCF e esta gente da IL.

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