Eutanásia: Marcelo pode ser sonso, mas os deputados falharam-nos

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/12/2021)

Daniel Oliveira

Levamos muitos anos de debate sobre a eutanásia. Na sociedade e na política. Para os opositores, o debate será suficiente quando chegarmos à mesma conclusão que eles. A minha primeira reação ao veto do Presidente foi de indignação. Só que os seus argumentos não são políticos, pessoais ou jurídicos. A sua leitura pode ter sido sonsa, mas a lei está mesmo mal feita.


Já levamos muitos anos de debate sobre a legalização e regulamentação da eutanásia. Debate na sociedade, com movimentos contra e a favor a apresentarem argumentos. Eu próprio já participei em vários, nestes últimos dez anos. O meu primeiro texto sobre este tema tem quase 17 anos. Não fui um visionário. Já então era um debate público em todo o mundo ocidental e em Portugal também. O Movimento Direito a Morrer com Dignidade, de que fui subscritor, nasceu há sete anos, já numa fase avançada do debate público e os seus dois principais promotores – João Semedo e Laura Ferreira dos Santos – já nem estão entre nós.

Debate político, também não faltou. Quatro votações no parlamento – a primeira, em 2018, quando foi chumbada; a segunda, em 2020, quando foi aprovada (com votação final global em janeiro de 2021); a do referendo a esta lei, em 2020; e a da versão que pretendeu responder às objeções do Tribunal Constitucional, recentemente. Entre a primeira votação e a segunda houve uma campanha eleitoral e a posição dos partidos e dos seus líderes já era pública quando foram a votos, por causa da primeira votação e do debate a ela associado. Isso não impediu que surgisse o argumento da falta de legitimidade da Assembleia da República votar o tema. O argumento é sempre o mesmo: não houve debate suficiente. Parece que os opositores a esta lei só acharão que o debate existiu quando chegarmos à mesma conclusão que eles.

Tanto as posições dos partidos eram conhecidas que, logo no dia das eleições, eu e muitos observadores concluímos imediatamente que a lei da eutanásia ia ser aprovada nesta legislatura. Bastava fazer as contas. E foi, por larga maioria. Depois, ainda passou por mais dois testes. O do envio ao Tribunal Constitucional e o de uma proposta de referendo de uma lei já aprovada, deslegitimando, mais uma vez, a democracia representativa.

Existe, nos sectores mais conservadores da sociedade, a convicção de que são guardiões da moral e que nem os eleitos têm legitimidade para pôr em causa as suas convicções. Sempre que um tema os incomoda, seja a interrupção voluntária da gravidez ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, exigem referendos. Acham que os temas que lhes são politicamente caros não são política, apesar do debate ser sempre sobre leis e o papel do Estado. A escolha de cada um não é política, a forma como essa escolha é regulada e limitada pela lei e pelo Estado é o âmago da política. A escolha de cada um é uma questão de consciência, o resto é o que de mais político pode existir. E elegemos deputados também para nos representarem nestas decisões.

O referendo foi chumbado, apesar de ter contado com o temeroso voto favorável da Iniciativa Liberal – entregar uma liberdade individual que não afeta terceiros ao escrutínio referendário é o que de menos liberal pode haver –, mas o Tribunal Constitucional, para onde o Presidente enviou, mandou tudo para trás, para que várias coisas fossem clarificadas. Na altura, considerei que este era um passo justo, para dar maior solidez à lei.

A minha primeira reação íntima ao veto do Presidente da República, anunciado esta semana, foi de incómodo ou mesmo de indignação. Se a questão era jurídica, cabia ao Tribunal Constitucional avaliar. Se era política, o Presidente aproveitava o momento para devolver a lei a um parlamento que ele ia dissolver, impedindo a confirmação da lei, como a Constituição permite. E pareceu-me que Marcelo violava o seu compromisso, declarado em plena campanha para as eleições presidenciais, de aceitar a decisão dos deputados.

Sabemos que Marcelo, por convicções religiosas e moral, não quer esta lei. Sempre soubemos que iria procurar qualquer falha para não assumir o veto político. E sabemos que se a questão fosse constitucional não era a ele que caberia avaliar, por mais brilhante constitucionalista que seja. Só que os seus argumentos não são nem políticos, nem pessoais, nem jurídicos. A lei está pura e simplesmente mal feita. Ao contrário do que diz a ex-deputada Galriça Neto, do defunto CDS, é possível uma lei da eutanásia bem feita. Tanto é possível que ela existe noutros países. A divergência com os pontos de vista mais conservadores não é uma impossibilidade jurídica. Talvez tenha sido mal feita porque o trabalho de correção que o Tribunal Constitucional exigia foi deixado para a última da hora. Dizem-me que o essencial estava fechado antes do verão. Então, houve tempo para rever muitas vezes o que tinha sido feito.

Na alteração que lhe foi feita, a lei falha onde não podia falhar: na clareza dos conceitos quando define a condição para a eutanásia poder acontecer. A “doença fatal”, que era condição para que a morte pudesse ser antecipada, desaparece das definições apesar de existir no diploma, para surgir apenas “doença incurável” ou até apenas “doença grave”. É verdade que essa confusão vem de antes, só que ela subsiste no novo artigo criado por causa do Tribunal Constitucional, com as definições, onde a “doença fatal” desaparece. E aí é que isso não poderia acontecer. Para que isto fizesse sentido, a “doença fatal” deveria ter desaparecido do articulado. Para se manter a “doença fatal”, teria de aparecer clarificada nas definições.

É óbvio que não se pretendeu alargar o âmbito da lei. Mas a ausência de clareza é desleixo. E se desleixo é inadmissível em legislação penal, é especialmente grave num debate tão sensível. A incompreensão de Marcelo é sonsa. Quem leia de boa-fé percebe tudo o que ali está. Quando se fala em “doença grave ou incurável” ela surge como “doença grave que ameace a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade”. A doença é fatal, mesmo que a morte não seja iminente (talvez seja esse o desejo do Presidente). Mas numa lei como esta a incompreensão é fácil e pode ser perigosa. E enfraquece-a.

Este mau trabalho não é só um erro. É uma falta de respeito por todos os que sofrem e precisam desta lei. E implica todos os deputados que defendem esta causa fundamental. Falharam-nos. Felizmente, parece ser esse o consenso entre os juristas, um decreto de lei aprovado não fica sem efeito com o fim da legislatura. O próximo parlamento tem o dever de corrigir o que tem de ser corrigido. Aos que vierem dizer, como disseram em todas as sucessivas votações, que os eleitores não sabiam da posição de cada um, já não sobram mais créditos para esse argumento pouco democrático. O PCP e o Chega são contra, o BE, o PAN, o PEV e a IL são a favor, o PS e o PSD estão divididos, com esmagadora maioria dos socialistas a favor e larga maioria dos social-democratas contra, sendo os dois líderes favoráveis. Para aqueles para quem esta lei é fundamental, está tudo mais do que claro. Nem precisa ser tema de esclarecimento em campanha.


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2 pensamentos sobre “Eutanásia: Marcelo pode ser sonso, mas os deputados falharam-nos

  1. SÉNECA a eutanásia e o veto cínico do sátrapa de Belém
    Lucius Annaeus Seneca foi um dos mais reputados escritores, filósofos e intelectuais do Império Romano (condenado à morte por Nero, foi obrigado a cometer o suicídio, o que fez com o ânimo sereno com que defendia a morte na sua filosofia).
    Impressionante é conhecer como são actuais alguns dos seus pensamentos sobre a morte, explicando que “morrer antes de tempo não tem nada que ver com a dor mas, justamente, com poder morrer de forma digna”, aquilo que hoje, e passados séculos, nos defrontamos no debate sobre a eutanásia:
    “A questão não é morrer mais cedo ou mais tarde”, escreve Séneca numa carta ao amigo Lucílio. “O que importa é morrer bem ou morrer mal. E morrer bem é escapar ao perigo de viver mal.”
    “Não usarei a morte para escapar à doença, desde que a doença seja curável. Morrer apenas por causa da dor é admitir a derrota. Mas se sei que a minha condição vai durar para sempre, abandono a vida. Não por causa da dor propriamente dita, mas porque isso me vai tirar as razões para viver. É o homem fraco que morre por causa da dor, mas é o homem tolo que vive em nome da dor”, escreve ao amigo.
    Noutra carta diz: “Viver não é uma coisa boa em si mesma, mas sim viver bem.” E, por isso, “sábio é aquele que vive até onde deve, não até onde pode”.
    “Uma vida mais longa não é necessariamente melhor e uma morte mais longa é necessariamente pior”, afirma Séneca, tentando persuadir o amigo de que a vida deve ser medida pela qualidade e não pela quantidade, e que o seu prolongamento não deve ser um fim em si mesmo.
    “Só há uma forma de dizer que a vida que vivemos foi longa: se foi suficiente.” A vida, diz, “é longa se for cheia” e fica cheia se se for “bom cidadão, bom amigo e bom filho”.
    “Antes de ser velho, fiz por viver bem; agora que sou velho, faço por morrer bem. E morrer bem significa morrer com vontade.”
    “A vida é como uma história: o importante é como é feita, não se é comprida. Mas dá-lhe um bom fim.”
    “Se o nosso corpo se torna incapaz de desempenhar as suas funções, não será correcto retirar dele a nossa alma torturada?
    Talvez isso deva ser feito ligeiramente antes do momento em que tem de ser feito, porque quando tem de ser feito já não somos capazes de o fazer”, diz Séneca. E logo a seguir pergunta ao amigo: “Achas que há alguma coisa mais cruel a perder na vida do que o direito de acabar com ela?”
    Fico naturalmente incrédulo como Séneca, há tantos séculos atrás, conseguiu antecipar filosoficamente a questão da eutanásia (ou seja, “como dar dignidade aos vivos na hora da morte”) ao arrepio daqueles que ainda hoje – como o sátrapa de Belém – em pleno séc. XXI a continuam a contestar!

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