É a logística, estúpido!

(António Guerreiro, in Público, 08/10/2021)

António Guerreiro

Face ao colapso da cadeia de abastecimento (a supply chain), com mais forte incidência na área dos combustíveis, o Reino Unido teve de recorrer à logística militar. Também dos Estados Unidos, do Japão e da Alemanha nos chegam notícias desta “crise da supply chain” (afectando, nestes dois últimos países, a indústria automóvel, por falta dos componentes electrónicos). Boris Johnson, que conseguiu a vitória do Brexit erguendo bem alto duas bandeiras, o restabelecimento das fronteiras e um endurecimento das restrições à entrada de trabalhadores migrantes, abre agora concursos (aliás, sem sucesso) para contratar milhares de motoristas estrangeiros de modo a assegurar as necessidades logísticas.

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É na logística, nas infra-estruturas impessoais, materiais e tecnológicas, que reside hoje o poder, o que significa também que só detém um contra-poder — mesmo o de natureza sindical — quem a pode imobilizar ou sabotar. O poder tradicional, das instituições políticas e estatais, de natureza representativa, já pouco conta. Tão importante é este domínio que já deu origem a um campo disciplinar: os Logistic Studies. No início do ano, um dos grandes pensadores da configuração logística do capitalismo global, o filósofo italiano Sandro Mezzadra, deu duas “lições”, via zoom, sobre o tema, a convite do Teatro do Bairro Alto. O que diz Mezzadra? Que a “revolução logística” da fase madura da globalização do capitalismo começou nos anos 70 do século passado com os containers, os navios porta-cargas, e consumou-se com as inovações tecnológicas (aquilo a que outras chamaram o “capitalismo das plataformas”); que se multiplicaram os tipos e a composição do trabalho, retirando assim validade à ideia do fim do trabalho, vaticinada num célebre livro do sociólogo e economista Jeremy Rifkin, The End of Work (livro de 1995 que suscitou muitos aplausos e muitas críticas, a mais pertinente das quais é a de que o autor confunde trabalho com emprego); que o desaparecimento das fronteiras, prometido pela globalização, não se cumpre e, embora abolidas em grande parte as de carácter nacional, vão surgindo outras fronteiras muito heterogéneas no interior do capitalismo global contemporâneo.

A logística é então o melhor observatório das operações do capitalismo. E está ligada quer às plataformas digitais quer à instituição de zonas extra-territoriais e de campos para trabalhadores migrantes. Na verdade, a logística compreende hoje também os seres humanos reduzidos a mercadoria, transportados em massa de acordo com os fluxos sazonais e tratados como uma infra-estrutura material. O que a pandemia trouxe ao de cima, confirmado pelo colapso da cadeia de abastecimento, no Reino Unido, e por outras manifestações da mesma ordem, embora ainda não tão graves, noutras partes do mundo, é que há afinal muito trabalho que não faz parte da categoria do smart work, aquele que pode ser feito à distância, mas falta muita gente para assegurar o volume de trabalho requerido nos chamados países desenvolvidos. Começa a ser visível a falta de trabalhadores. É uma constante em todo o tipo de trabalho físico e manual, nos ofícios especializados ou não, mas vai alargar-se a todos os domínios, impulsionada por um decrescimento demográfico. Decrescimento, seja ele em que domínio for, é o que o capitalismo global não consegue incorporar. Até da China, que desenvolveu a sua original forma de capitalismo à custa da massificação do trabalho que o excesso de população assegurava, nos chegam notícias de que, graças à política do filho único (e ao crescimento de uma média burguesia, que reduz drasticamente, de maneira voluntária, a natalidade), há já falta de gente, e cidades colossais, construídas de raiz para albergar trabalhadores, estão completamente vazias.

Nos últimos anos, estivemos tão virados para os desenvolvimentos do capitalismo digital que deixámos de olhar para o lado material da logística e para as formas produção que não podem prescindir do trabalho tradicional. E, de repente, descobrimos que sem os motoristas, por exemplo, toda a cadeia da produção, distribuição e consumo soçobra, colapsa.

Que o governo britânico não tenha percebido isto antes, só pode ser explicado por incompetência, induzida por cegueira ideológica. Veremos para onde nos leva o “inverno demográfico” que já se anuncia, até nas regiões antes sobrepovoadas.



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4 pensamentos sobre “É a logística, estúpido!

  1. A suposta invisibilidade do trabalho nunca passou de uma táctica neoliberal de desvalorização do mesmo. Quando digo desvalorização, não me estou a referir apenas a simbólica e filosófica, mas em termos de valor monetário mesmo.

    O facto de também se ter tornado invisível para uma certa esquerda indica o grau de contaminação ideológica conseguido pela direita.

    Durante décadas tentaram fazer-nos querer que o único que realmente trabalhava e produzia riqueza era o gestor, o empreendedor. Os trabalhadores, perdão, os “colaboradores” estavam lá como uma esmola do patrão pelo que deviam estar gratos.

    Uma das coisas que estranhei na pandemia foi a súbita surpresa com que a sociedade “descobriu” o óbvio – que afinal trabalhos arrogantemente desprezados como repositor e caixa de um supermercado são vitais para a sociedade.

    Não era preciso tanta surpresa. O povo sempre soube a vossa “grande novidade”. É tão óbvio que, evidentemente, não existiriam biliões de postos de trabalho desse tipo no mundo inteiro se não fossem necessários. A menos que seja tão imbecil cono as supostas elites que acreditam que esses postos de trabalho existem como “um favor” que as elites fazem aos pobrezinhos.

    Se são tão estúpidos que acreditam mesmo nessa campanha de “desvalorização pata baixar salários” ao menos oiçam a voz do povo… NOS TÁXIS E NOS CAFÉS, Ou no seu equivalente moderno que são aa redes sociais.

    O que nos remete para o segundo assunto do Guerreiro, o da caixinha, a descredibilização dos partidos – que está ligado ao primeiro, da desvalorização do povo por parte das elites.

    Estou constantemente a ver referida com superior desprezo a célebre “conversa de taxista e de café”, até neste blog.

    Bem, quem é que tem essas desprezadas “conversas de café”?

    Naturalmente o povo. Por isso escrevi em maiúsculas.

    Vindo da direita esse desprezo seria natural, visto que acredita na desvalorização do povo, dos seus empregos desprezíveis e naturalmente das suas opiniões.

    Vindo da esquerda apenas demonstra que no fundo funciona mecanicamente da mesma maneira que a direita.

    Uma elite apodera-se do poder e faz-se passar por representante da “boa” sociedade. A que interessa. O resto, o POVO, passa a ser tratado como um reles e desprezível “conversador de café”.

    Isto como se a conversa em restaurantes de luxo, gabinetes empresariais e governamentais, mesas redondas na TV ou congressos partidários não pudesse ser tão merdosa como a do pior bêbado do mais pobre bairro popular.

    Basta ver que até à pandemia e à falta de motoristas do brexit a maioria das elites acreditaram mesmo que biliões de postos de trabalho existem não por serem necessários mas porque as empresas são bondosas e por pura bondade de coração “proporcionam um modo de vida” aos desprezíveis “conversadores de café”.

    Não estou com isto a dizer que a conversa de café do desprezível repositor de supermercado não seja muitas vezes uma bosta. Estou a dizer que a de muito gestor ou professor catedrático muitas vezes também é e a que distinção é apenas a de lugar de poder.

    Basta ver a surpresa da maior parte dos economistas perante a mais do que expectável crise do subprime. Ou perante os efeitos negativos do excesso de austeridade num período de recessão.

    Qualquer taxista com umas cervejas no buxo teria explicado a muitos professores catedráticos de economia como realmente funciona a economia. Ah. E podia também explicar que se o senhor professor catedrático está a pagar a viagem de táxi é porque se calhar a viagem de táxi lhe dá jeito e não porque é uma esmola ao desprezível taxista.

    Tudo isto remete aos partidos que começam a ser percepcionados como instrumentos desta elite arrogante de merda. E daí a sua descredibilização.

    Isto aplica-se tanto aos de esquerda como aos de direita.

    Porque se a direita despreza o povo e o seu trabalho, a esquerda não faz melhor quando desata a chamar fascista e racista a toda a gente, literalmente a todo o povo quando vem com as tretas pseudo-freuidiano-estruturais de que toda a sociedade é fascista e racista, o que implica naturalmente que todo o povo o seja. É que a sociedade somos nós todos… São acusações graves e injuriosas que a esquerda dispara alarve e irresponsavelmente igualando-se à direita em arrogância e agressividade contra o povo.

    O direitista finje que não vê o repositor do supermercado e diz que o seu magro salário não passa de uma esmola imerecida e demasiafo grande.

    O esquerdista chama privilegiado fascista ao desgraçado do repositor do supermercado. Francamente não sei o que será mais estupidamente agressivo.

    Sei que esquerda e direita cada vez mais se unem no desprezo do povo que murmura pelos cafés – e redes sociais.

    E francamente cada vez se torna mais dificil votar porque um “desprezível” como eu cada vez sente mais que está a ser gozado e ofendido por estas elites de merda de todos os quadrantes politicos.

    Para já estou a refugiar-me no PAN, porque qualquer cão tem mais valor que estas elites de merda. Mas se este se revelar como os outros partidos acho que fecho a loja como eleitor. Enfim, talvez vote de vez em quando se houver muito risco de o Passos voltar ao poder.

    Agora que não me sinto representado por esta corja de esquerda e de direita, isso não sinto. E não estou sozinho.

    É o que se ouve pelos cafés onde pára o povo “desprezível”.

  2. 100 foram os motoristas disponibilizados pelas FA para “ajudar” na distribuição de combustiveis, quando a falta dos mesmos se situa na casa dos milhares.Uma pura manobra de propaganda,portanto.Já em Junho a organização patronal dos transportadores tinha avisado o Governo da crise que se ía abater sobre o país.Com o aumento do gás, mais de uma dezena de retalhistas declararam súbitamente falencia.A resposta do Governo foi transferir automáticamente as contas dos consumidores,(São centenas de milhares),para algum dos fornecedores sobreviventes.Hoje ainda não sei a quem estou pagando as contas.
    Como se o ver as prateleiras dos supermercados meias vazias não fosse suficientemente deprimente,temos agora a angustia de não saber onde encontrar combustivel para o carro ,com as estações de serviço , ou encerradas, ou com filas quilométricas.
    Entretanto o Governo aumentou a contribuição para a Seg. Social, o que vai afectar os mais vulneráveis, ao mesmo tempo que corta 20 libras semanais nas ajudas sociais com um impacto directo e brutal para a sobrevivencia de 6 milhões de cidadãos mais pobres.
    Entretanto o que diz Boris ? Que nada disto se deve ao Brexit,mas que é devido exlusivamente à pandemia. Mais mentira,menos mentira, vinda dele, já ninguém liga.

  3. Bom artigo. Acrescente-se apenas que o “inverno demográfico” quando chegar será bem-vindo, excepto como é lógico para aqueles que defendem a procriação como contributo para o sistema económico. Aliás, ter filhos no mundo actual deve ser cada vez mais uma opção ética.

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