Não há como moderar o Império de Zuckerberg

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/10/2021)

Daniel Oliveira

Numa só semana, o mundo confrontou-se com dois dos maiores perigos do poder concentrado em alguém: ser tão intensivo que pode destruir pessoas e regimes, ser tão extensivo que pode parar o planeta.

A entrevista de Frances Haugen, uma denunciante que vem de dentro do Império de Mark Zuckerberg, ao “60 Minutes”, assim como o seu depoimento no Senado norte-americano, veio confirmar o que já se sabia. Que os responsáveis do Facebook não tomaram qualquer medida efetiva de controlo do discurso de ódio e as que anunciaram, em 2018, com a entrada em funcionamento de um novo algoritmo, acabaram por ter o efeito contrário, destacando ainda mais os discursos extremistas ou negacionistas.

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Anunciado pelo próprio Zuckerberg, para tentar estancar o escândalo causado pela influência do Facebook na eleição de Trump, o novo algoritmo foi apresentado como uma nova fase na vida da plataforma, doravante mais virada para destacar a interação familiar e entre amigos. O resultado foi precisamente o inverso e a empresa sabe-o há muito, como revelou o “Wall Street Journal” numa excelente série de investigação há poucas semanas.

Em condições normais, um post publicado no Facebook fica visível apenas para uma ínfima minoria dos seguidores. A forma de contornar esse torniquete, montado pela empresa de acordo com os seus interesses comerciais, é pagar publicidade ou ter conteúdos bombásticos e que gerem reações. Quanto maior o número de comentários, “gostos” e partilhas, mais o Facebook aligeira o torniquete e mais pessoas acedem a esse conteúdo, resultando numa crescente promoção de conteúdos extremistas ou com teorias mirabolantes sobre as eleições ou vacinas.

Os algoritmos estão pensados para fomentar o choque de opiniões e a reação emotiva, garantindo assim a viralidade que oferece receitas através da inclusão de anúncios. Sobre esta parte das revelações de Haugen, não há rigorosamente nada que não tenha sido dito, redito, dito de novo sobre o que esta empresa está a fazer à democracia e ao espaço público, com plena consciência e intencionalidade dos seus proprietários.

Frances Haugen também disse que, no Facebook, sabiam dos efeitos nefastos para a saúde mental dos internautas, sobretudo a ansiedade e a insegurança criadas entre os adolescentes, alimentando a autoimagem negativa, distúrbios alimentares, bullying online. Segundo documentos internos da empresa, 32% das jovens dizem que, quando se sentem mal com o seu corpo, o Instagram piora a sensação. Mais uma vez, nenhuma novidade. Desde 2019 que se sabe que cerca de 13% dos adolescentes no Reino Unido e 6% nos EUA associam pensamentos suicidas à utilização do Instagram.

“Por que nos preocupamos com os pré-adolescentes? Eles são um público valioso, mas inexplorado”, explicava candidamente um documento interno do Facebook, agora revelado pelo WSJ. Nada escapa à ambição de controlo e de expansão de uma empresa onde todas emoções humanas são para ser usadas e convertidas em transações convertíveis em lucro, mesmo as de crianças protegidas legalmente. Acreditar que o Facebook se autorregula faz tanto sentido como os seus posts mais populares, associando a vacina para a COVID a uma mirabolante teoria conspirativa. O design do Facebook é feito para ser aditivo, causando depressões e aligeirando do código moral.

Depois destas “revelações”, que ameaçam abrir os olhos do legislador norte-americano (da União Europeia podemos continuar a esperar sentados), somada a uma desvalorização em setembro, Zuckerberg caiu um degrau no clube dos mais ricos. Ainda não refeito deste revés, veio o “apagão”, na última segunda-feira. Metade da humanidade ficou sem Facebook, WhatsApp, Instagram, Messenger e Oculus. O erro foi da empresa – diz que “fecharam o carro com as chaves lá dentro” –, mas é indiferente para o debate que interessa.

A ONG NetBlocks, que se dedica à cibersegurança, estima que a economia mundial terá perdido mais de 950 milhões de dólares em apenas seis horas. E só se mede aqui o efeito em negócios de empresas que dependem destas redes sociais. Milhares de milhões ficaram sem acesso a informação, sem conseguir contactar com aqueles que lhe são queridos, sem capacidade de interagir em grupos de trabalho ou de amigos. Claro que há alternativas, mas a esmagadora maioria das pessoas está presa a estas plataformas e a liberdade de escolha, existindo teoricamente, é impraticável para quem não tenha os instrumentos culturais e tecnológicos para sair do único mundo que conhece.

Para uma boa parte da população mundial, a Internet são as plataformas detidas por Zuckerberg. E mesmo para quem tenha a capacidade de escolher, a escolha é quase uma falácia. O Facebook e o Instagram correspondem a 70% do mercado das redes. O Twitter, concorrente mais próximo, corresponde a 14%. O mesmo se aplica ao WhatsApp em relação a concorrentes como o Signal ou o Telegram. Ao contrário do que muitos pensam, a lógica da rede tende para a concentração. Quem tem a maioria dos clientes tenderá a ter quase todos, porque a função da plataforma é conectar pessoas e organizações e quanto maior for o seu universo mais eficaz é o seu funcionamento. Mudar de fornecedor é não só desistir da informação acumulada – conexões sociais, memórias, imagens e vídeos –, mas perder eficácia no serviço que se recebe.

E a estratégia do Facebook tem sido a de comprar a concorrência antes que ela se torne uma ameaça séria, para acelerar o processo de controlo de toda a rede. Nisso, como em tudo o resto, não tem encontrado resistência firme dos reguladores. O litígio com a Comissão de Comércio Federal dos EUA promete prolongar-se, apesar da evidência do monopólio. Na União Europeia, a Comissão está demasiado ocupada a controlar os apoios de Estados a empresas e a trabalhar para concentração empresarial nos países mais poderosos para se dedicar a estas minudências.

Mas sejamos pragmáticos: se a ideia da pedagogia digital é totalmente desadequada para lidar com um grupo com este poder abissal – é como ensinar a usar um chapéu de chuva contra o ataque nuclear –, a da regulação começa a aproximar-se disso mesmo. A regulação de quase monopólios só pode ser uma: impedir que sejam quase monopólios. Tudo o resto é fantasia.

Com 15 anos de experiência em algoritmos, Frances Haugen propôs a alteração dos feeds de notícias para se tornarem cronológicos e não dependentes de algoritmos sem controlo humano de supervisão e curadoria. E criar um órgão governamental para supervisão de tecnologia. Mas basta acompanhar o debate que coisas bem menos intrusivas provocaram para perceber como há muita gente a acreditar que tem poder ou capacidade de escolha na rede.

A responsabilidade legal das empresas pelo conteúdo gerado pelos usuários das redes, única forma de obrigar o grupo a gastar o correspondente à sua dimensão estratosférica e proteger as vítimas, tem sido outra proposta, que me parece indispensável. Trata-se de assumir que as redes não são como linhas telefónicas, mas plataformas com responsabilidades editoriais. Tanto o são, que já assumem o poder de retirar conteúdos por violarem as suas regras. Esta é a charada de que temos de sair: não há lei sem responsabilização. Não há democracia sem mediadores. As redes sociais são mediadoras. Isto não tem nada de novo se impedirmos que sejam elas a determinar as linhas com que nos cosemos.

O senador democrata Ed Markey, que se tem concentrado nesta luta, deixou uma mensagem forte a Mark Zuckerberg: “O seu tempo de invadir nossa privacidade, promover conteúdo tóxico e predar crianças e adolescentes acabou. O Congresso vai agir. Não permitiremos mais que sua empresa prejudique nossos filhos, nossas famílias e nossa democracia.” Talvez estas palavras animem muitos. Deixam-me na mesma. O tempo de regular o monstro também já acabou. Ele não tem dimensão para ser regulado e já deu todas as provas que não o aceitará.

Mark Zuckerberg tem, sozinho, metade da humanidade na mão, parte da economia global por um fio e a sobrevivência das democracias dependentes de algoritmos que ninguém controla ou fiscaliza. Alguém com este poder nunca o entrega de livre vontade. E nem o mais poderoso dos imperadores teve tanto poder. Mas, mostrando a fragilidade de um capitalismo global desregulado, ele não encontra uma resistência semelhante à do passado, que levou a guerras com milhões de mortos.

Hoje, nem uma lei decente se consegue produzir para contrariar este poder imenso. Somos Chamberlain a brincar ao gato e ao rato com a figura mais perigosa para a democracia que conhecemos desde que um austríaco com um bigode ridículo deu um tiro nos miolos. Zuckerberg não terá a crueldade de Hitler, mas tem mais poder. Estranhamente, há quem julgue que pode ter a sua colaboração para o moderar.


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Um pensamento sobre “Não há como moderar o Império de Zuckerberg

  1. Este texto está simplesmente fantástico. Há já algum tempo que reflicto sobre o poder das redes sociais e a sua influência sobre as democracias, principalmente nos momentos eleitorais, cujos danos foram demonstrados com a desinformação que prolifera nas redes sociais, provocando o Brexit, eleição de Trump e Bolsonaro, etc…

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