(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 29/06/2021)

É em tudo um caso de estudo e o que aprendemos não é bonito: um homem morreu a trabalhar e 10 dias depois não sabíamos sequer qual o seu estatuto laboral nem que auxílio garante a lei à família. Para quê perder tempo com isso se ia um ministro no carro que o atropelou e se o morto pode ser usado como arma política?
Nuno Santos, 43 anos, atropelado na autoestrada, enquanto trabalhava, pelo carro oficial do ministro da Administração Interna.
Era isso que sabíamos, dez dias depois da sua morte, deste homem: a identidade do automóvel que o atropelou. Isso e a chusma de gestos políticos que se foram sucedendo à volta do caso. Como o comunicado do MAI que, com uma investigação a decorrer por parte de uma polícia sob a sua tutela, garantiu ter o morto atravessado inopinadamente a estrada e não existir sinalização dos trabalhos (informação que a Brisa desmentiu publicamente esta terça-feira) – sem porém nos certificar que o automóvel não circulava em excesso de velocidade. Ou o anúncio do partido que, depois de no sábado o Correio da Manhã fazer manchete com a viúva a dizer que as filhas do casal iam “morrer à fome” pela falta do salário do marido, veio nesta segunda-feira dizer ter criado “um fundo” para apoiar a família.
Sucede que, independentemente das responsabilidades de outra ordem – por eventual condução perigosa – que possam existir na sua morte, Nuno era um trabalhador a trabalhar quando morreu. Pelo que à partida, antes de qualquer outra consideração ou averiguação sobre as circunstâncias da sua morte, é de um acidente de trabalho que se trata. E os acidentes de trabalho prevêem a responsabilização dos empregadores, via seguros obrigatórios, pelas despesas, compensações e pensões dos sinistrados e/ou suas famílias.
É isso que determina a lei laboral – aquela que muitos dos que procuram usar a morte de Nuno, nomeadamente um certo demagogo de extrema-direita, propõem eliminar, em total liberalização das relações de trabalho, para quiçá as substituírem por caridade à la carte.
É pois bastante extraordinário que durante dez dias, de 18 de junho, dia da morte, até esta segunda 28, nada tenhamos ouvido da parte das empresas responsáveis pelos trabalhos na A6 – de limpeza da vegetação das bermas – em que se ocupava o trabalhador Nuno: a Arquijardim, que o contratava diretamente e cujo nome pouco apareceu nas notícias até agora, e a Brisa, contratante indireta. Mais que não fosse para nos dizerem qual o vínculo contratual do malogrado trabalhador, se o processo relativo ao acidente de trabalho está já em marcha – como deve estar – e se estão a dar algum apoio à família até o assunto, que implica a intervenção da seguradora e do tribunal (é assim em casos de morte por acidente de trabalho), se resolver.
Poder-se-ia dizer que não falaram por ninguém lhes ter perguntado, mas quando liguei à Arquijardim, ao fim da tarde de segunda, e perguntei essas duas coisas básicas, não houve resposta. Até o nome dos responsáveis da empresa recusaram dizer, como se fosse segredo (é só ir ao portal do Ministério da Justiça e consultar os atos societários). Poucas horas depois, no entanto, surgia no site da SIC, sem atribuição de fonte, a notícia de que esta empresa está a pagar à família o vencimento do trabalhador – que era seu efetivo há dois anos – e se encarrega das despesas do enterro “enquanto se processa o apuramento das responsabilidades da parte das seguradoras”.
Não sabemos de quando data a decisão da Arquijardim e quando informou a viúva, ou se soubemos antes dela – mas é a primeira boa notícia neste caso. Porque um acidente laboral implica um processo que, apesar de urgente, será sempre demasiado moroso para uma família privada de rendimento. E se a lei prevê que possa ser atribuída, pelo tribunal (se não houver acordo à partida),uma pensão provisória, a ser adiantada pelo Fundo dos Acidentes de Trabalho, até à fixação da que deve ser paga pela seguradora, tal implica não existir contestação em relação à caracterização do sinistro como acidente de trabalho. Já foi noticiado, porém, na sequência do citado comunicado do MAI, que a seguradora envolvida quer perceber se houve da parte do trabalhador um comportamento, negligente ou temerário, que possa eximi-la de pagar.
Essa possibilidade – de a família de Nuno Santos ter de enfrentar um longo processo de averiguação por parte da seguradora e o contencioso que poderá seguir-se – demonstra que há muito mais neste caso para questionar do que a velocidade a que ia o carro que transportava Eduardo Cabrita e se este deve ou não demitir-se se se provar que houve condução perigosa e, consequentemente, que o comunicado do MAI falseia os factos. Mas, claro, a proteção que a lei confere às vítimas de acidentes de trabalho é um assunto complexo e maçudo, que exige estudo e não faz manchetes sexy nem se presta a retóricas populistas, muito menos de partidos que combatem os direitos dos trabalhadores.
Como Ihor Homeniuk, cuja morte só ganhou dimensão mediática e política quando pareceu que o ministro podia cair, Nuno Santos e a sua família não durarão um fósforo na via rápida do oportunismo.
Outro dia, quando li , no CM ( Tânia Laranjo), a notícia sobre este acidente, fiquei deveras preocupado com a comunicação social. Pensei: estamos lixados, cada vez há mais jornalistas incompetentes.
Não deixei de ressalvar, felizmente, que ainda havia, por aí, alguns bons, mas cada vez mais raros.
Aqui está uma que ainda me faz comprar jornais.
Parabéns, Fernanda Câncio.
Excelente artigo o de Fernanda Câncio. Honra o jornalismo.
Gostariamos muito, nós os leitores de “ouvir” o ministério a que pertence o carro , o motorista e o ministro sobre todo este assunto!